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terça-feira, 29 de março de 2016

Um nome para a literatura...

"Dificilmente se escreveu, em Portugal e no mundo, tão belas páginas sobre um atleta do que as que foram dedicadas a Eusébio. Voltemos a ele, portanto. Inesquecível, sim; irrepetível, também.


Eusébio. Voltemos a falar de Eusébio. É sempre bom recordar Eusébio. O mais fascinante personagem que vi sobre um campo de Futebol. Figura antediluviana... Absoluta!
Durante o Campeonato do Mundo de 1966, Joseph-Marie Filippi, no insuspeito «Le Monde», escreveu: «Eusébio, melhor marcador do Mundial, esse atleta excepcionalmente dotado cujo nome ressoa como o de uma personagem de Musset. O Mundo inteiro procurava o título. Numerosos países mobilizaram as suas forças para o conquistar. Cada equipa foi apoiada pelo entusiasmo de milhões de adeptos. E um jogador escuro, de um pequeno país, impõe a sua lei frente a essas multidões febris. Creio ser necessário dizer obrigado a Eusébio. Ele demonstrou-nos que os empreendimentos humanos não devem tudo à máquina, nem ao gregarismo de uma sociedade anónima, e quanto podem ainda contar, sobre o velho instrumento da calúnia, com o esforço do homem e o valor individual de enfrentar obstáculos. Sim, as exibições de Eusébio talvez tenham um significado simbólico. Nesta época da 'Marcha da Paz' e da 'Marcha Contra o Medo', não é apenas com os pés que se defende a Humanidade».
Ainda dizem que o Futebol não tem literatura... Se isto não é literatura, onde está a literatura?
A dimensão de um nome!
Eusébio.
Há nomes assim: esse ponto final parágrafo aí em cima poderia ser um ponto absolutamente final. Porque a Eusébio nada se acrescenta.
Exagero, subjectivo!, exclamarão alguns. Estão no seu direito.
E aqui estou, subjectivamente, a escrever de novo sobre Eusébio. A dimensão de um nome.
Convenhamos: Eusébio escreveu-se a si próprio.
Outro nome fundamental: Nélson Rodrigues. A ele se devem as mais belas páginas escritas em português sobre Futebol. E, ao contrário do que possam pensar, futebol e literatura têm muito em comum.
Nélson Rodrigues: «Em Futebol, o pior cego é que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespearina. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentissímo do sobrenatural». Era aqui que queria chegar: Eusébio é demasiado complexo para se poder ser objectivo.
Ficaremos, portanto, no reino mágico da subjectividade.
Revejam o filme do primeiro golo de Eusébio contra o Brasil, em 1966, no Campeonato do Mundo em Inglaterra. Ou melhor, revejam-no depois do golo.
Ele corre, de braço no ar. A cabeça está erguida, imperial, reparem bem: há no seu olhar, que abraça todo o estádio de Goodison Park, em Liverpool, a consciência de que a história está a passar por ele, pela sua passada elástica, veloz, o redor move-se em câmara lenta, só ele tem vida para além da vida corriqueira, insignificante, só ele ganha luz para além dessa vidinha de que falava Alexandre O'Neill e que acabrunhava o país triste.
Corre, corre, corre, Eusébio corre. Está apenas a comemorar um golo, mas até disso dir-se-ia depender a sua própria existência. Aquela corrida parece durar horas e horas.
Prestem bem atenção, agora: ele eleva-se no ar como se tivesse as asas nos pés de um Mercúrio negro. O seu braço erguido estende-se para lá do estádio, quase tocando o céu num soco vigoroso, vibrante. Não tirem os olhos dele: deixam-no ficar assim para sempre na parece lisa da vossa memória. Dificilmente Eusébio poderá ser tão Eusébio.
Lá está o que disse Nélson Rodrigues: «O pior cego é o que só vê a bola».
A bola aqui pouco importa: estava colada no fundo da baliza de Manga, guarda-redes do Brasil. De forma irreversível.
Personagem de Musset ou apenas personagem destas pobre crónicas, Eusébio eleva-se para lá do tempo. Os anos passam... a sua imagem não!"

Afonso de Melo, in O Benfica

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