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quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Jogar à Benfica na vida


"O Benfica tem uma qualidade reconhecível que mais nenhuma equipa tem no nosso país e que poucos têm no mundo. Curiosamente, este fim de semana não foi a exibição do meu clube que me relembrou este facto inquestionável. Foi o jornalista Fernando Alves, entrevistado pelo Público, ao contar a história dos primórdios da TSF, rádio da qual é fundador e que me fez querer ser radialista em criança. Explica Fernando Alves ao recordar o início desse percurso: «Jogávamos à Benfica: havia uma vertigem para o golo. Pegava-se numa história e não se largava. Íamos ao osso com uma alegria tremenda.»
Ando a pensar nisto desde a manhã de domingo, quando li a entrevista. Parece óbvio como algumas grandes ideias que toda a gente assimila sem pestanejar, ou linear como alguns pensamentos simples que invejamos por não serem nossos. Não é surpresa que Fernando Alves escolha bem as palavras e a forma como as diz. Mas, apesar de pensar no Benfica muitas vezes por dia, e de poder dizer que o meu clube me inspira de diferentes maneiras, nunca me tinha ocorrido pensar no Benfica exatamente assim. Tenho que partilhar esse entusiasmo, o de ter acedido a mais uma nova dimensão de Benfiquismo.
Perdoem-me os adeptos de clubes adversários, ou não me perdoem. Neste caso é-me indiferente. Isto é matéria inegociável. Nem que a minha vida dependesse disso eu saberia explicar o que é jogar à Sporting. Se quisesse ser mauzinho, diria que é jogar como nunca e perder como sempre. Quanto ao FC Porto, estou familiarizado com o conceito. Os mais convictos ideólogos do clube explicarão que jogar à Porto é uma questão de raça, mas, se um desenhador de retratos robô me pedisse para descrever este jogar, acho que a imagem da raça seria um jogador a agredir um colega de profissão, alguém a tentar enganar o árbitro, ou um dirigente experimentado a abusar do expediente de truques ao seu dispor para vencer custe o que custar.
Acreditem que o problema não é meu. Se alguém fizesse o tal desenho com base na minha descrição, toda a gente saberia de que clube estava a falar. Jogar à Benfica é coisa que envaidece. É sobre futebol e, como lembrou Fernando Alves, é também sobre a nossa relação com diferentes momentos das nossas vidas, sobre o que escolhemos ser nessas ocasiões. Felizmente o clube tem hoje vários atletas formados no clube, e outros adotados, que corporizam esse jogar: antes de mais na humildade, na cultura de respeito, na educação, na ética e no desportivismo; depois, na procura de um futebol que tenha a tal vertigem do golo, procurando ferozmente a bola quando está nos pés do adversário e tentando encurtar o caminho entre nós e a baliza, com uma ideia coletiva clara em que ninguém fica para trás, ninguém está sozinho, e que ninguém acredita poder resolver o jogo apesar dos colegas de equipa, mas sempre, e sobretudo, com a sua ajuda. É isso que valoriza cada um dos participantes nesta ideia. Este texto é tanto sobre futebol quanto sobre a vida, mas não consigo deixar de referir uma das mais recentes ocasiões em que nos vi jogar à Benfica, numa recuperação de bola em Salzburgo em que só o João Neves parece acreditar. Ainda alguns de nós duvidavam que essa recuperação de bola fosse possível e já ele sabia a quem a queria passar.
A vontade de vencer, a vertigem do golo, a pressão alta com gana e sem hostilidade, e a inteligência de compreender num instante que aquele lance seria esquecido se a bola não chegasse rapidamente a um colega mais próximo da baliza. Não foi só ali que ganhámos um jogo muito importante, mas ali esteve a explicação da vitória. Nada do que acabo de descrever equivale a dizer que tudo resulta desde que os princípios sejam colocados em prática. Não sou especialista em autoajuda e não prescrevo fórmulas infalíveis de sucesso. Os princípios não são o meio nem o fim, mas são o respeito por uma ideia original com 120 anos, que hoje, de forma extraordinária, permanece tão jovem e pertinente como em 1904. Cosme Damião explica, numa entrevista publicada por este mesmo jornal em março de 1945: «Veio primeiro a ideia do jogo, pelo prazer de jogar. A ideia do clube seguiu-se ao prazer do triunfo. Houve desde logo a certeza de que pela união nos podíamos tornar mais fortes. Neste sentimento inicial se pedia a escolha da divisa do novo clube - um por todos, todos por um.» Jogar à Benfica não é vencer sempre. É um jogar por todos e todos jogarem por um. E é jogar sempre para ganhar. Nada na vertigem do golo, a mesma de que falava Fernando Alves, garante uma goleada, mas garante uma coisa quase tão importante: uma equipa capturada por esta vertigem do golo será sempre o prolongamento mais fiel dos adeptos que carregam o Benfica para toda a parte. Na semana em que se assinalou uma triste década sem Eusébio da Silva Ferreira, um dos maiores responsáveis por esse jogar à Benfica, veio-me à memória um dos jogos da minha vida, a vitória de 11 Eusébios frente ao FC Porto em 2014.
Lembro-me bem dessa semana, do quanto toda a comunicação social quis mostrar cada segundo da despedida, das despedidas sucessivas dos amigos, de quem lá estava à chuva, já de noite, no momento de enterrar o maior ídolo do clube, e lembro-me bem, poucos dias depois, de uma vitória categórica a 12 de Janeiro. Lembro-me desse jogo porque me emocionei, eu e milhões, ao ver os 11 Eusébios em campo, mas também porque todos compreenderam a gigantesca importância daquele momento. Já vi muitas vitórias fáceis do Benfica, mas repito a principal recordação que fica dessa tarde: poucas vezes tive tanta certeza de que o Benfica venceria um jogo. Num dos dias mais tristes, esteve lá a vertigem do golo. Num dos dias mais tristes, fomos ao osso com uma alegria tremenda, pelo Rei Eusébio e para cumprir mais uma vez a história do Benfica, contada no jogar inconfundível e na vida de cada um dos felizardos que o testemunham. Obrigado por isso ao Fernando Alves por nos ter dado a TSF e por mais uma vez ter feito ecoar as suas palavras. Ando a pensar nisto desde a manhã de domingo e não consigo imaginar aspiração mais digna: jogar à Benfica na vida. Vou tentar enquanto me lembrar. É o mínimo."

Vasco Mendonça, in A Bola

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