"Ninguém diz isto como Valdano: “entramos num desvio perigoso da modernidade, agitada pelo protagonismo da big data, em que a ciência pretende apoderar-se do jogo. Tudo é mensurável, analisável, portanto, memorizável, portanto, previsível, portanto”. A questão é o que está em causa: a estatística? os dados GPS? observação e análise? a estratégia levada ao limite? os perfis de jogadores etiquetados pelos especialistas em scouting? Será um pouco de tudo isso.
Claro que há hoje uma imensidão de dados – alguns capazes de surpreender até os mais apaixonados pelo jogo - que não podem ser desprezados. O espanhol El Confidencial fez contas há uns dias e concluiu que mais de 230 olheiros e analistas, com idades entre os 21 e os 23 anos (sim, são os millennials da bola!), trabalharam a tempo inteiro no ano passado só para os clubes das cinco maiores ligas europeias (inglesa, alemã, espanhola, italiana e francesa). Não há como fugir ao estudo do jogo, é nova gente de um novo tempo, que chega e acrescenta. A necessidade é que não se pode reduzir o jogo a uma equação matemática - em que se “x” corre “y” e chuta “z” logo “g”, de golo - ou o jogador a um autómato dividido em parâmetros fixos. É obviamente útil saber quantos quilómetros foram percorridos e a que velocidade. Ou o número de passes e remates efectuados e em que zona do campo. E quais os atletas que estão a perder rapidez nos deslocamentos durante o jogo. Ou antes dele começar, quantificar o “índice lesional”. O problema é que, somado tudo isso parece restar pouco, quando o que acontece é exactamente o inverso: sobra quase tudo o que é essencial. É que, só pelos registos, posso saber quem corre mais mas não sei quem corre melhor, quem mais passa e remata (até com que acerto) mas não se a melhor decisão era passar assim ou finalizar naquele momento.
Contra os registos frios, emoção quente, que o talento fatiado em dados podia ter-nos privado de Sócrates ou Riquelme, Pirlo ou Rui Costa, Baggio ou Romário. Eu quero lá saber quantos quilómetros corre Messi? Eu quero é ver Messi, mesmo a passo. E se aprecio os centímetros do salto de Ronaldo é mais porque chega ao golo que por superar a fasquia histórica de Javier Sottomayor. Saltos há muitos, daqueles é que não. Há cem anos que este jogo resiste e se regenera com base nas ideias antes dos números, porque as ideias podem tornar-se números e o inverso não. Este é um jogo de homens, logo subjectivo, jogado por vários, o que multiplica as interacções, e preferencialmente com o pé, o que reforça a aleatoriedade. Não há dados que superem a visão de quem sabe. O algoritmo não pode valer mais que o olho clínico.
O jogo que adoro é mais técnica que aritmética, mais táctica que matemática, sempre mais intuição que equação. Se assim não for, mais vale formar gestores para o futebol que treinadores e inaugurar business schools do pontapé na chincha. Até porque vejo dirigentes, presidentes mesmo, a justificar decisões estranhas agarrados a tabelas de dados ou folhas de Excel. Não há nada mais perigoso, diz-me sempre um amigo, que dar argumentos a quem não tem razão. Mas haverá: alguém com conhecimento escasso a invocar alegados factos, munido de dados pretensamente objectivos. Nada do que é absolutamente humano se reduz à razão, quanto mais a números. O futebol é o tal jogo de homens e não de máquinas, produto de decisões permanentes, na maioria emocionais. A única verdade absoluta deste jogo é a força do treino, que deixa marcadores somáticos bem mais fiáveis que as migalhas de Hansel e Gretel a caminho da casa de chocolate. Não há pássaro que nos roube a orientação se rotinarmos o caminho. O GPS não me diz o destino, apenas pode ajudar-me a chegar mais rápido. Se souber para onde vou, pode falhar o 4G que não me perco.
Nota colectiva:
Releio a crónica que escrevi há oito dias e constato que o Benfica se manteve forte a triangular entre Taarabt-Chiquinho e Pizzi, porque os melhores juntos jogam melhor ainda. E que o Porto cresceu na mesma linha, com os regressos que sugeria, de Uribe, Díaz e sobretudo Nakajima, único a explorar as entrelinhas e a enriquecer a equipa com jogo interior. E que dizer de Marcus Edwards? Acredito que pode até acabar a época consagrado como um dos melhores que já vestiram a camisola do Vitória. Qualquer analista gosta que a realidade lhe dê razão. Conto-vos o segredo: é sempre mais fácil acertar quando se valoriza o talento., seja em que actividade for.
Nota individual:
Roberto Firmino – é o craque invisível da melhor equipa da actualidade. São mais exuberantes a liderança de Van Dijk, as acelerações de Alexander-Arnold, a disponibilidade de Fabinho ou Henderson, a classe de Alisson, o génio concretizador de Salah e Mané, mas Firmino está para o magnífico colectivo como a roda de balanço para um relógio de corda. É ele que possibilita o funcionamento atempado de toda a engrenagem, ligando as partes tanto nas ações protagoniza como em tantas que apenas influencia com os movimentos que faz. Ontem no Qatar, como no ano passado no Dragão, houve uma equipa sem ele em campo e outra quando entrou o brasileiro que não tem sequer nome de futebolista. Chamam-lhe Bobby, os que o idolatram em Liverpool."
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