"Quem nos tira o nosso Flamengo, tira-nos tudo, não é verdade?
Pelo menos, desde há umas semanas para cá.
Apesar do grande rival Vasco da Gama ter sido fundado por portugueses e andar há mais de um século de caravela ao peito a representar a comunidade lusa do Rio de Janeiro, subitamente somos todos rubro-negros por cá.
O Vasco foi até pioneiro a derrubar a barreira do racismo no futebol brasileiro, com a inclusão de jogadores negros. Mas isso é coisa de antigamente e a nossa memória é tão curta que já mal se recorda de que há um par de anos Jorge Jesus era tido quase como um vilão por boa parte da comunicação social portuguesa. Parece que foi noutra encarnação.
«Agora, ele é o herói», adaptando Chico Buarque – que é do Fluminense. No fundo, para efeitos imediatos e mediáticos, é isso que interessa.
Mesmo descontando a proximidade histórica e cultural com o Brasil, não deixa de ser surpreendente esta súbita paixão nacional pelo Flamengo, apesar de nos ter passado sequer pela cabeça sermos do Shanghai SIPG quando Vítor Pereira ganhou na China ou do Al Ahly quando Manuel José dominou no Egipto. Mesmo em solo brasileiro, jamais nos motivou algum interesse as curtas (e fracas) prestações de Paulo Bento no Cruzeiro ou de Sérgio Vieira no América Mineiro.
Mas a história de Jesus é boa e todos simpatizamos com ela: um português chega ao Brasil, é atacado pelos seus pares e com o seu «toque de Midas» consegue fazer história no mais popular clube do mundo. Uma lição bem dada.
Na verdade, o essencial são as notáveis conquistas da Libertadores e do Brasileirão e agora a disputa do Mundial de Clubes frente ao Liverpool, que dão boleia à elevação do orgulho pátrio. Ainda assim, se o Flamengo merece honras de abertura de telejornais, reportagens, entrevistas, horas e horas de emissão, seria interessante talvez mostrar o contexto do nosso novo clube.
Poderíamos, por exemplo, trocar só algumas daquelas vazias e recorrentes intervenções com adeptos com prognósticos sobre o resultado do jogo para perceber como a extrema-direita brasileira se aproveita da popularidade e das façanhas da equipa de Jorge Jesus.
Perceber como o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que é do Palmeiras e do Botafogo, surge com Sérgio Moro na bancada do Estádio Mané Garrincha, em Brasília, ambos vestidos com o manto rubro-negro, dias depois de rebentar o escândalo «Vaza Jato».
Ou sublinhar a oferta de outra camisola do Fla por parte de Bolsonaro ao presidente chinês durante uma recente visita oficial.
Podíamos também tentar perceber como o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que é do Corinthians, aparece no relvado do Estádio de Lima a ajoelhar-se aos pés de Gabigol, que o ignora, mas acaba por viajar no avião da equipa e no dia seguinte está no trio eléctrico com os jogadores e restante staff técnico, de medalha ao peito, a comemorar em plena Avenida Presidente Vargas.
Para conhecer melhor o clube de todos nós, teria sido útil aproveitar esta janela mediática para perceber como a direcção do Flamengo se tem recusado a alcançar um acordo conjunto com as famílias dos jovens que foram vítimas de um incêndio no centro de estágios do clube.
A 8 de Fevereiro deste ano, a tragédia, provocada por uma falha no ar condicionado, matou dez jovens da formação do clube, entre os 14 e os 16 anos. Nota importante: o local não tinha certificado contra incêndios e já havia sido interditado em 2017, após o clube ter sido multado quase 30 vezes por falta de alvará.
A 5 de dezembro, antes de serem determinadas as indemnizações definitivas, o Flamengo foi condenado no imediato a pagar dois mil euros mensais às famílias das vítimas mortais, mas… recorreu.
A título comparativo, a direcção que se recusa a pagar um total de 350 mil euros por ano às famílias de jovens que estavam a seu cargo nas instalações do clube e que morreram numa tragédia evitável, está ao mesmo tempo a oferecer oito milhões de euros num contrato de renovação a Jorge Jesus.
Há uns meses, Cristiano Esmério, pai de Christian, de 15 anos, uma das vítimas mortais, lamentava: «O Flamengo gasta 200 milhões (45 milhões de euros) a contratar jogadores e eu vou chorar a vida inteira pelo meu filho.»
Já que em Portugal damos tanto tempo de antena ao Flamengo, poderíamos ter prestado uns minutos de atenção a estes pais e à absoluta indignidade perpetrada pelo nosso novo clube.
A missão do jornalismo, seja qual for a especialidade, passa por dar contexto e novas perspectivas. Mas para isso há que reduzir um pouco ao deslumbramento e aumentar o grau de informação."
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