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sábado, 11 de janeiro de 2020

Uma questão de igualdade… dentro e fora do campo de jogo

"A quadra natalícia permitiu-nos a visualização do filme “Basis on the sex”, entre nós difundido sob o título “Uma Luta Desigual”, lançado nos Estados Unidos da América precisamente no dia de Natal do ano anterior, em 25 de dezembro de 2018.
Centra-se no extraordinário trabalho desenvolvido por uma das primeiras mulheres a ser admitida à Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e uma das mais prestigiadas defensoras dos direitos das mulheres, focando a sua actividade na defesa da igualdade entre homens e mulheres e na eliminação das diferenças baseadas em razão do género, tendo-se tornado, posteriormente, Juíza do Supremo Tribunal Federal Norte-Americano.
Seria impossível não associar este filme à reunião realizada no final de 2019 entre a Comissão Consultiva do Comité Olímpico de Portugal – Mulheres e Desporto (CMD) e a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG).
Se nos finais dos anos 50 do século passado se enfrentavam todos os obstáculos legais para a afirmação da igualdade dos homens e das mulheres em face da lei, não só nos Estados Unidos da América, como entre nós, a realidade do século XXI transporta-nos para outros desafios.
Já não são as diferenciações arbitrárias previstas na lei a fonte das desigualdades baseadas no género, por estas terem sido eliminadas em todos os Estados soberanos democráticos, mas as limitações e dificuldades colocadas pelas mentalidades, que ainda hoje perduram, na implementação efetiva da igualdade afirmada na lei.
A evolução da sociedade exigiu do legislador e do juiz que consagrasse na lei e assegurasse na decisão judicial a igualdade entre homens e mulheres, erradicando do ordenamento jurídico as diferenciações arbitrárias e sem racionalidade.
Porém, os comportamentos sociais, que emanam dos fenómenos sociais próprios das várias actividades humanas, não seguiram tão fortemente essa tendência.
Daí que a realidade prática esteja ainda longe de corresponder à realidade que foi conquistada no parlamento e nos tribunais.
Os estereótipos baseados em diferenciações baseadas no género não foram, total, nem definitivamente ultrapassados, pelo que, muitas décadas volvidas, a sociedade portuguesa não foi ainda capaz de eliminar as diferenciações infundadas e, por isso, ilegítimas.
A diferentes níveis de actuação, as instituições europeias emanam instrumentos de vária natureza que visam a implementação de políticas de igualdade de género, como no âmbito das relações laborais, mas, também em geral, dirigidas a todas as formas de actuação humana, incluindo o desporto, considerando a sua natureza de grande fenómeno social de massas.
Assim, independentemente da área em que a discriminação baseada no género se faça sentir, ela é transversal aos diversos fenómenos de actuação humana, não sendo o desporto uma excepção.
Numa busca de tentar compreender a actuação fiscalizadora e sancionatória das entidades nacionais competentes em matéria de discriminação baseada no género no desporto, qual o número de processos de contraordenação instaurados e em que áreas ou domínios, é-nos revelada uma realidade que revela as dificuldades que a problemática ainda hoje enfrenta.
Não sendo o ordenamento jurídico dotado de um quadro normativo que habilite a CIG a uma actuação mais enérgica, por não ser dotada de poderes sancionatórios e coercivos, sob a forma de actos de autoridade, as deliberações tomadas são meramente recomendativas, sem força jurídica impositiva para os seus destinatários.
O quadro normativo apresenta-se pouco robusto e estruturado a uma actuação mais incisiva da CIG, baseando-se na outorga de poderes para a emissão de pareceres e de recomendações, desprovidos de força vinculativa ou no exercício de prerrogativas de autoridade.
No entanto, a Lei n.º 14/2008, de 12 de Março, que proíbe e sanciona a discriminação em função do sexo no acesso a bens e serviços e seu fornecimento, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2004/113/CE, do Conselho, de 13 de dezembro, consagra um importante mecanismo de defesa, ao estabelecer no seu artigo 9.º, n.ºs 1 e 2, a inversão do ónus da prova.
Segundo tal preceito, cabe a quem alegar ter sido lesado por um ato de discriminação directa ou indirecta apresentar os factos constitutivos do mesmo, incumbindo à parte demandada provar que não houve violação do princípio da igualdade de tratamento.
Do mesmo modo, em caso de ato de retaliação, em que o lesado tem de apresentar os factos constitutivos da forma de tratamento ou da consequência desfavorável e indicar a queixa ou o procedimento judicial que levou a cabo para exigir o cumprimento do princípio da igualdade, incumbindo à parte demandada provar que não existe nexo de causalidade entre uns e outros.
Tal mecanismo de inversão do ónus da prova não se aplica, porém, aos processos penais, neles valendo as garantias processuais de defesa decorrentes do direito constitucional.
Além disso, é conferida no artigo 11.º da citada Lei n.º 14/2008, legitimidade processual às associações e organizações não governamentais cujo objecto estatutário se destine essencialmente à promoção dos valores da cidadania, da defesa dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e da igualdade de género, para a defesa dos direitos e interesses colectivos, para a defesa colectiva dos direitos e interesses individuais legalmente protegidos dos seus associados e para a defesa dos valores protegidos pela referida lei.
Com vista a assegurar mecanismos de efectividade de implementação da lei e assegurar o seu respeito, prevê-se a possibilidade de ser instaurada uma acção de responsabilidade civil extracontratual, nos termos gerais (artigo 10.º), assim como ser instaurado processo contraordenacional por parte das entidades administrativas cujas atribuições incidam sobre a matéria objecto da infracção (artigo 12.º), da qual deve ser dado conhecimento do processo já instruído, acompanhada do respectivo relatório final, à CIG.
Nos termos do artigo 20.º da citada Lei n.º 14/2008, de 12 de Março, compete à CIG acompanhar a aplicação da referida lei.
No entanto, tendo o artigo 22.º da referida lei previsto que no prazo de 90 dias o Governo procederá à aprovação das normas regulamentares necessárias à sua boa execução, decorridos quase 12 anos a Lei n.º 14/2008 não foi ainda regulamentada.
Um outro passo foi dado pela Lei n.º 26/2019, de 28 de Março, ao aprovar o regime da representação equilibrada entre homens e mulheres no pessoal dirigente e nos órgãos da Administração Pública, pois não obstante o seu âmbito de aplicação ser direccionado para as entidades públicas, constitui um relevantíssimo passo para a efectividade da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.
Do mesmo modo que a Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030 «Portugal + Igual», aprovada a 8 de Março de 2018 e publicada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/2018, de 21 de maio, constitui o principal instrumento de definição estratégica da acção governativa na promoção da igualdade entre homens e mulheres.
Especificamente, no que ao desporto respeita, o Comité Olímpico Internacional (COI) assumiu que o desporto constitui uma das mais poderosas armas para promover a igualdade de género e reforçar o empoderamento das mulheres, reconhecendo-o como um direito humano básico de profunda importância e um Princípio Fundamental da Carta Olímpica.
Foi com esse propósito que em Março de 2018 o COI aprovou o seu documento “Gender Equality Review Project”, formulando 25 recomendações que visam impulsionar o progresso na promoção da igualdade de género no desporto, em termos de equilibrar o número total de atletas participantes, visando criar condições para o desenvolvimento de liderança, campanhas de consciencialização e, mais recentemente, nomeando mais mulheres para papéis de liderança na administração e governança.
Daí que, mais do que uma questão legal, a promoção e defesa da igualdade de género é uma questão de mentalidades, dentro e fora do campo de jogo."

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