"Nesta sociedade de consumo compra-se tudo. Até barulho.
Mão e pedras
1. - 'Estar com quadro pedras na mão', que provérbio curioso, Excelência. Estar agressivo.
- Uma forma de hospitalidade ao contrário.
- Estar com quatro pedras na mão.
- É o que diz o povo.
- Mas parece tarefa difícil.
- Difícil?
- Sim, Excelência, se olharmos com atenção para a anatomia do ser humano e para o peso e volume das cosias.
- Neste caso, das pedras.
- Exacto.
- As pedras... explique lá, excelência.
- A mão que segure em quatro pedras estará basicamente anulada.
- Anulada?
- Sim, inutilizada por completo devido a toda essa invasão de peso, largura, comprimento e altura das pedras. Quatro pedras é muita coisa e a mão é pequena.
- Compreendo.
- Ou, de facto, a mão tem nela mesmo quatro minúsculas pedras, e se não minúsculas...
- ... não são ameaçadoras.
- Exactamente. Ou, então, mais vale não ter quatro pedras na mão, mas uma apenas. Uma.
- Uma?
- É o que parece.
- Uma questão de estratégia.
- E anatomia.
- Exacto, excelência! Uma pedra na mão, uma pedra consistente e ávida, é bem mais ameaçadora e terrível, é bem mais ameaçadora e terrível do que uma enorme quantidade de objectos naturais de possível percussão na cabeça de alguém.
- A pedra na mão como um dos mais antigos instrumentos de percussão: vai da mão de um à cabeça do outro...
- E provoca um som...
- ... um som maligno.
- Instrumento de violência, a pedra, quando atirada de longe e com pontaria.
- Pois, mas em termos de eficácia não há dúvida. Menos é mais: uma na mão em vez de quatro, por favor.
Comprar confusão
2. - E sobre algumas pessoas se diz que estão constantemente a... comprar barulho. Estranho, não?
- Sim, nesta sociedade de consumo compra-se tudo. Até barulho.
- Um disparate, excelência.
- Comprar barulho. Comprar, portanto, confusão.
- Comprar! Ou seja, não é de graça, tem um custo.
- Podemos pensar literalmente, excelência e imaginar uma personagem inversa.
- Inversa?
- Sim, um consumista, também. Que compra, portanto, mas que quer comprar... silêncio e calma.
- Silêncio e calma? Quanto custa?
- Não estou dentro dos preços.
- Pensar num homem que quer comprar música versus um homem que quer comprar barulho., etc. Muitas variações.
- Alguém que diz: em vez de comprar barulho, hoje quero comprar música. Uma mudança, radical, parece-me.
- Quanto custa o barulho?
- Quanto custa o silêncio?
- Quanto custa comprar a calma, quando custa comprar o alvoraço. O que será mais barato?
- Depende dos ambientes. Num ambiente de alvoroço médio alto, e calma é caríssima. Num ambiente normal de calma e tranquilidade, o barulho tem um custo mais elevado.
- O comprador de alvoroço, um nome mais estimulante.
- E bonito.
- Estava a pensar, excelência, que seria interessante se fosse possível vender-se um barulho específico: o barulho que o vizinho faz, por exemplo, quando decide fazer mudanças de mobílias pesadas a partir das onze e meia da noite.
- Vender barulhos próximos tal como se vende música, uma bela possibilidade.
- Vossa excelência ficava no mesmo sítio, mas ao vender o barulho que o seu vizinho faz, ficava mais tranquilo.
- Exactamente.
- Mas também se pode pensar não em vender, mas em alugar.
- Alugar?
- Alugar barulho; alugar complicações, etc.
- Que conceito estranho, mas curioso, excelência: alugarmos ou vendermos preocupações.
- Isso! Um mercado por explorar na área do aluguer.
- Estou a imaginar, excelência, uma pessoa que se aproxima de outra e pergunta se quer alugar as suas preocupações durante dois anos.
- Durante dois anos preocupa-se em minha vez com os meus assuntos, poder ser?
- Isso, exactamente. Que quer alugar as minhas chatices?
- Podemos pensar, excelência, que quem tem dinheiro pode fazer isso: vender ou alugar preocupações e chatices. Pago-te para te preocupares em minha vez.
- Eis uma boa utilização da riqueza, parece-me.
- Pois bem, mas, excelência, falávamos de quem comprar... barulho, de quem compra confusão.
- Sim. Que disparate, excelência, que consumista tão pouco sensato. Com tanta coisa para comprar e compra... barulho.
- Sim, excelência, tão pouco sensato este consumo em pleno século XXI. Tão pouco sensato!"
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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