"1. A vida é feita de recordações. Sabemos que «a recordação é o perfume da alma». Mas ela também é feita de desejos. Já Aristóteles no seu 'Tratado da Alma' nos dizia que «só há um princípio motor: a faculdade de desejar». E, neste domingo, comungo recordações com desejos. E, legitimamente, tenho a faculdade de desejar. Que o Benfica reconquista a nossa Liga. Há precisamente trinta e um anos - em 1984 - festejei, com muita alegria, a conquista do bicampeonato nacional de futebol. O Benfica foi campeão, salvo erro, a 6 de maio empatando com o Sporting no Estádio da Luz com golos do 'nosso' Chalana e de Kostov. E fomos descansados a Portimão e lá ganhámos por duas bolas a zero com golos de Nené e de Shéu. Mas recordo bem que em finais de abril, a três jornadas do fim, fui - fomos! - a Guimarães e perdemos por quatro bolas a uma. O golo de 'honra' do Benfica foi marcado por Pietra bem perto do apito final de Carlos Valente. Recordo que o treinador do Benfica, Eriksson resolveu 'inventar' no Estádio Municipal de Guimarães ao jogar com três defesas - Pietra, António Bastos Lopes e Álvaro - cabendo a Shéu recuar para o centro da defesa. Aos vinte minutos de jogo já perdíamos por três bolas a zero e por volta da meia hora Chalana substituiu José Luís e ao intervalo Nené entrou no lugar de Veloso. Vencemos o campeonato nacional então com dezasseis clubes. Alguns deles 'desaparecidos' das competições profissionais como o Águeda (!), o Sporting de Espinho, o Varzim ou o Salgueiros. E outros que continuam no segundo escalão como o Farense ou o já referenciado Portimonense. E vencemos o campeonato com mais três pontos (52-49) que o Futebol Clube do Porto - Vermelhinho, Frasco, Sousa e Walsh marcaram nesse ano ao Benfica! - marcámos 86 golos e o Futebol Clube do Porto 65 e o Porto sofreu apenas nove golos e o Benfica 22! E na primeira volta o Benfica goleara o Vitória de Guimarães por oito a zero com dois golos de Nené, outros dois de Diamantino, outros dois de Manniche e com Stromberg e José Luís a motivarem os outros dois festejos de golo. Recordo que a viagem a Guimarães era bem mais difícil e longa do que é hoje. Agora de Lisboa à cidade do berço da nossa nacionalidade viajamos, com portagens, apenas em auto estradas. É quase um instante. Nesse dia quase final de abril de 1984 a viagem foi muito longa. Estou firmemente convicto que na noite deste domingo os milhares de benfiquistas que vão a Guimarães verão confirmados os seus desejos. E respeitada, se for o caso, a sua alegria legítima. Como se fosse possível haver 'territórios proibidos' neste tempo de radicalismos condenáveis - e bárbaros - em diferentes Estados ou 'pretensos Estados' deste Mundo em profunda mudança! Toda a equipa, toda a estrutura técnica do Benfica - a começar por Pietra! - terá bem presente que a «recordação é o perfume da alma». E a alma benfiquista está a um pequeno 'passo' de uma conquista bem relevante. Aqui recordada. E como tem acontecido nas últimas jornadas combinando o Benfica humildade com sagacidade, sofrimento com solidariedade, talento com respeito, maturidade com prudência, experiência com consciência.
2. Nesse ano de 1984 acompanhei o Benfica nos quartos de final da então designada Taça dos Clubes Campeões Europeus. E pela primeira vez entrei em Anfield Road, o mítico Estádio do Liverpool. Nunca mais esqueci esses dias de Março. Ali estava na cidade dos Beatles, nos seus bares singulares, numa cidade em que combinam os 'vermelhos', o Liverpool, com os 'azuis', o Everton. Há cinco anos voltei a Liverpool acompanhando o Benfica nos quartos de final da Liga Europa. Jorge Jesus, Luisão e Ruben Amorim são, salvo erro, os únicos que 'resistem' dessa presença! Mas essa equipa tinha, entre outros, David Luiz e Dí Maria, Aimar e Ramires, Javi Garcia e Fábio Coentrão, Cardoso e Carlos Martins. E recordei tudo isto ao ver ontem na BTV os emocionantes minutos iniciais do último jogo de Steven Gerrard com a camisola do Liverpool. Desde os sete anos de idade que jogou com a camisola do clube da sua cidade. Sempre lhe foi fiel. Mesmo sendo assediado. Sempre dedicado. Foram 706 jogos. Uma vida! E aquele momento em que Gerrard sobe as escadas e entra no relvado com as suas três bonitas filhas é, em si mesmo, um 'hino ao futebol'. Um instante de amor. Da sua família e da família do Liverpool. Dos seus fiéis adeptos. Marcados, como sabemos, por momentos dramáticos e dolorosos. É toda esta história que se sente, arrepiando-nos, quando escutamos naquele Estádio singular o You'll Never Walk Alone!
3. É que os hinos, de Anfield à Luz, são, também, instantes de honra. E a 'honra é a poesia do dever'! Tendo todos nós a consciência da recordação, o perfume da felicidade, a faculdade de desejar e o direito de festejar. Nos momentos certos e em todos os lugares. Mesmo que alguns sejam simbolicamente singulares!
4. Na segunda liga, hoje pela manhã, também haverá em alguns lugares deste nosso Portugal a faculdade de desejar. De legitimamente sonhar. De Tondela à Covilhã, da Feira à Madeira o 'sonho' comandará a manhã deste domingo. Com a consciência que as contas finais também estão próximas! Sempre a faculdade de desejar!"
Fernando Seara, in A Bola
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