"Na trapalhada monumental de mover um Mundial para o inverno que tanto derrame de críticas nos extraiu com a mira posta no Catar e na FIFA, não pensámos, à distância, o que seria a atazanante tarefa de ir caçar um novo selecionador quando o futebol, salivando pela normalidade nas agendas, retomasse o seu decurso ainda com metade da temporada por completar e objetivos por alcançar. Ter de arranjar um treinador que não um livre e desempregado para, em dezembro, se comprometer com a seleção pelo menos até ao verão do próximo ano, quando se espera uns pontapés na bola no Europeu, seria um imbróglio.
Indo embora o mais titulado, longevo e enraizado técnico que a seleção já teve logo após o Campeonato do Mundo, quase sem aviso, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) ocupou as mãos com uma batata esquentada pelas circunstâncias e parca em possibilidades, por mais que o presidente Fernando Gomes tenha lido, no seu discurso preparado, que havia um “perfil definido” para o sucessor. Porque o contexto, já escrevia a minha colega da carteira Lídia Paralta Gomes faz uma semana, é mesmo tudo no futebol e na vida.
Os treinadores portugueses que hoje mais andam com labuta próxima da luta por títulos, em equipas onde a pressão é vizinha e tem de ser amiga, e que podemos encarar como estando na vanguarda dos métodos, estão a meio de projetos nos respetivos clubes e teriam de ser ‘roubados’ com pagamento de cláusulas de rescisão - apesar de vir a receber um prize money da FIFA pela chegada aos quartos de final do Mundial, no seu mais recente Relatório e Contas de 2021/22 a FPF reportou €3,6 milhões de lucro, menos do que os €4,6 milhões da época anterior.
José Mourinho, como Paulo Fonseca, Abel Ferreira, Luís Castro ou os ‘nacionais’ Sérgio Conceição e até Rúben Amorim implicariam despesa adicional caso houvesse vontade em abandonar os clubes a meio da temporada para irem lidar com um certo berbicacho contextual, engrandecido publicamente pelo homem a quem dariam o passou-bem para fechar o acordo. E já nem lá estaria no cargo de presidente quando o contrato do treinador com a federação terminar: o mandato de Fernando Gomes acaba no final de 2024 e, talvez por isso, pela primeira vez o ouvimos a balizar publicamente um objetivo: “pelo menos, aceder às meias-finais em qualquer prova, é esse o ADN que ambicionamos”. A levar o vínculo até ao fim, Roberto Martínez terá de lidar com uma chefia que não o contratou.
Apesar de limar, logo à primeira palavra, uma fasquia à qual o novo selecionador ficará agarrado, o líder da federação teve o cuidado de realçar a palavra que Humberto Coelho, João Pinto e José Couceiro tiveram na escolha de Roberto Martínez, puxando os diretores técnicos à responsabilidade de uma opção a que “nunca foi relevante o local de nascimento”. Mas o peso da história não é apagável e o simpático espanhol, notoriamente preocupado em criar empatia ao desculpar-se por falar castelhano e se comprometer a aprender o português, cumprimentando um a um os jornalistas presentes na sua apresentação, será apenas o terceiro treinador estrangeiro na seleção, depois de Otto Glória no Mundial de 1966 e dos cinco anos (2005-08) com Luiz Felipe Scolari, ambos brasileiros.
As 25 vitórias em 28 jogos oficiais em seis anos com uma Bélgica carregada de talento, em certos períodos com os então melhores futebolistas do mundo nas respetivas posições, diz tanto como a liderança do ranking da FIFA que ocupou durante uns quatro anos. Numericamente é vistoso, mas de palpável em campo pouco mostra. Relevante é a experiência de Roberto Martínez em conviver com jogadores do mais talentoso que há e ter de matutar formas de fazer render tanta gente tão capaz em tão pouco tempo de treino, com a vantagem de em Portugal não encontrar a fragmentação cultural e linguística que havia entre os belgas.
A fraturante questão que lhe sobrará na seleção nacional é o que terá habitado na cabeça dos vários treinadores que a federação sondou: os 38 anos de Cristiano Ronaldo que em quase todos dos últimos 19 foi a figura central de Portugal e cuja suplência, no Mundial, elevou o derradeiro grande ato da Fernando Santos a tragédia dramática nacional. Agora na periferia do futebol, o capitão que talvez só se vai estrear na Arábia Saudita, pelo Al-Nassr, daqui por duas semanas, terá dois meses de rodagem por lá quando chegarem os simpáticos jogos frente ao Liechtenstein (23 de março) e Luxemburgo (26), ambos de qualificação para o Euro 2024.
Esse é o tempo que o vantajoso estrangeirismo de Roberto Martínez, sem ligações emocionais e alheio às tricas conspiratórias do futebol português quanto à influência nas convocatórias de clubes, agentes e demais, terá para “conhecer os jogadores e contactar com todos” no “ponto de partida” que fixou nos 26 futebolistas que estiveram no Catar. A paz possível com Cristiano (ou Pepe e Rui Patrício, outros pesos-pesados da seleção) quanto ao papel que o desempenhará nesta fase da carreira, com esta idade, com o que é capaz, ou não, de oferecer à equipa em campo, vai determinar a suavidade da viagem do novo selecionador - apesar de o espaço para jogos particulares no calendário internacional ser cada vez menor, a presença de Ronaldo pode importar nas receitas que a FPF faça com partidas feitas no estrangeiro, por exemplo.
Sobre o futebol visto e praticado haverá tempo para debatermos. Caído na fase de grupos do último Mundial, a Bélgica de Roberto Martínez só saiu do torneio de há quatro anos frente à vitoriosa França, nas meias-finais, e apenas perdeu com a conquistadora Itália no recente Campeonato da Europa. O espanhol diplomatizou-se ao repetir a ideia de querer fazer de Portugal “uma equipa moderna” com “flexibilidade tática”, nada mais desenvolvendo para lá do expectável. Primeiro, há que conviver amigavelmente com as peças de um imbróglio. Coincidentemente, uma das fotos tiradas e enviadas pela FPF por motivos da sua apresentação tem-no a segurar na palma da mão duas peças de xadrez, com ar sorridente de quem delibera sobre a próxima jogada."
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