"O Código de Ética Desportiva, uma oportuníssima publicação editada pela Secretaria de Estado do Desporto e Juventude procura uma síntese do que deverá entender-se por espírito desportivo: “O Espírito Desportivo encerra em si mesmo um conjunto alargado de valores e princípios, que deverão ser assimilados e vivenciados, na prática desportiva. Trata-se de um conjunto de valores que têm a função de imprimir um sentido positivo à prática desportiva e que, sem os quais, esta perde a sua finalidade primordial: contribuir para o desenvolvimento harmonioso e universal da pessoa humana. O Espírito Desportivo deve ser vivido por todos os agentes, elementos-chave no exemplo a dar aos mais jovens. Deve ser concretizado dentro e fora da competição desportiva, devendo nortear a sua prática e constituir a “espinha dorsal” da mesma. O Espírito Desportivo é pois respeitar códigos, regulamentos, honrar a palavra dada e os compromissos assumidos, recusar o recurso a quaisquer meios ou métodos, ainda que legais, no sentido de vencer ou tirar vantagem, bem assim como repudiar esses comportamentos ou atitudes, junto daqueles que prevariquem ou que influenciem terceiros nesse sentido” (p. 10). Ora, este Desporto, que pretende contribuir ao desenvolvimento harmonioso e universal da pessoa humana, ainda existe? Largas manchas das claques, ou os adeptos cegamente apaixonados, onde se incluem aqueles comentadores televisivos que nos chocam com o jorro de críticas passionais, de comentários injustos e insultuosos e de suspeitas veladas ou ostensivas – não são desportistas, com toda a certeza. E os desmandos praticados pelos bandos de energúmenos que subvertem todos os valores (recordo o Humano Demasiado Humano, de Nietzsche) – não são de desportistas também. E aqueles dirigentes, extremamente ciosos da sua autoridade e que procuram aproveitar em seu favor o que o clubismo desportivo, de grandes dimensões, tem e pode dar? Acaso podemos ver neles exemplares desportistas? E aqueles “homens de letras” que criticam com aparente lógica impecável, mas sem preparação científica para tanto, podem eles, assim, servir o Desporto, desconhecendo o paradigma que o norteia?
Há pessoas, seguras no falar, mesuradas nos gestos, criadoras de conceitos lapidares e até que se cultivam intensamente, segundo um ideal de humanidade, que ainda não descobriram que o Desporto também é ciência e consciência: para mim um sub-sistema do sistema “motricidade humana” (definindo a motricidade humana, como “o movimento intencional e solidário da transcendência”) e com um papel indispensável a desempenhar, na educação e na saúde, no lazer e no espetáculo e numa intrínseca relação com os aspetos culturais, sociais e políticos. que historicamente o encarnam. A dignidade da pessoa humana é reconhecida como uma preocupação transversal a todos os documentos que, seriamente, o investigam e estudam. Neste nosso mundo onde o “ter” vale mais do que o “ser” e onde portanto um poder económico atordoante parece ser a melhor maneira de exibir valor social (o campeão desportivo, mediaticamente endeusado, é um reflexo de tudo isto) - o jogo, um dos elementos fundamentais do Desporto, pode ensinar-nos que há vida também e saúde e felicidade, no “homo ludens”. O espetáculo desportivo, na forma de altíssima competição, praticado por superdotados e supertreinados, “reproduz e multiplica” as taras da sociedade capitalista onde o deus-lucro impera e reina. De facto, se a alta competição, no mundo todo, não amaina, como há-de deixar de germinar, na prática desportiva? O Desporto não está-aí “diante da cultura”, nem “acima ou abaixo da cultura”, nem “contra a cultura”. O Desporto encarna, em si mesmo, tudo o que é cultura, na sua diversidade e universalidade. E assim, como deixar de perguntar: tem o Desporto, atualmente, a eficácia necessária, para contribuir a uma transformação do homem, da sociedade e da história? O que constitui o radical fundante do Desporto é o jogo, no movimento da transcendência. Portanto, se bem penso, se não há jogo e transcendência, no Desporto, não há Desporto. Assim, percecionar o Desporto, como jogo, no movimento da transcendência, significa que, porque no desporto atual a dimensão competitiva chega a esmagar qualquer dimensão lúdica, pode pôr-se em dúvida que sejam Desporto muitos dos espetáculos que por aí andam mascarados de prática desportiva…
Corroboro as opiniões dos especialistas que afirmam não encontrar progresso sem alta competição. Mas, acrescento eu, alta competição suavizada, enobrecida, pela companhia de uma transcendência física, moral e espiritual, ou seja, de uma transcendência que humanize e não aliene ou manipule. Segundo a Carta Internacional da Educação Física e do Desporto da UNESCO: “O desporto de alta competição e o desporto praticado por todos devem ser protegidos de todos os desvios. As sérias ameaças que pairam sobre os valores éticos, a sua imagem e o seu prestígio, fenómenos tais como a violência, a dopagem e os excessos comerciais, deformam a sua intrínseca natureza e alteram a sua função pedagógica e sanitária. As autoridades públicas, as associações desportivas voluntárias, as organizações não-governamentais especializadas, o Movimento olímpico, os educadores, os pais, os clubes de adeptos desportivos, os treinadores, os quadros desportivos e os próprios praticantes devem esforçar-se por erradicar estes flagelos. Os media têm um papel importante a desempenhar, em conformidade com o artigo 9º, na defesa e difusão destes esforços”. Aquilo que constitui o específico da motricidade humana e, portanto, do Desporto e o que nada nem ninguém lhes poderão recusar é que eles operam sobre “o homem todo e todos os homens”. Por isso, num Desporto que humanize, há lugar para um exame escrupuloso e metódico, tanto das nossas capacidades, das nossas qualidades, como das nossas debilidades e fraquezas. Daí que seja tentado a dizer que há tantas maneiras de praticar Desporto quantas são as ideias que se têm do ser humano. “Homo sum, humani nihil a me alienum puto” (Sou homem, nada do que é humano me é alheio). Este pensamento de Menandro, imortalizado no verso de Terêncio, o Desporto pode fazer seu. Também ao verdadeiro desportista nada do que é humano lhe é alheio. O licenciado em Desporto, o doutor em Motricidade Humana estudam uma nova ciência hermenêutico-humana. Como escreve a Profª. MargarIda Miranda, da Universidade de Coimbra: “As Humanidades não nos tornam servos; tornam-nos livres. Livres para pensar na sociedade e para denunciar as iniquidades presentes nela” (Brotéria, Novembro de 2018, p. 567).
Até pelo património moral inestimável do Desporto, sempre aconselhei os alunos das minhas aulas a acompanharem os seus estudos das obras dos grandes nomes da filosofia, da literatura, das artes. “Precisamos de saberes que alimentam o espírito, que reivindicam o bem comum da humanidade, o respeito pela pessoa humana, o sentido de responsabilidade social, a solidariedade entre as gerações, a paz. Essa é a inutilidade das Humanidades: tornar possível que continuemos a preferir o bom ao útil, escreveu Nuccio Ordine” (Margarida Miranda, op. cit., p. 568). Precisamos de saber por que nasceu, em pleno seio do racionalismo, a expressão “Educação Física”; precisamos de ler a História da Filosofia, para entendermos a História da Educação Física e do Desporto; precisamos de pesquisar o que representam Maine de Biran e Maurice Merleau-Ponty, no desenvolvimento dos trabalhos que encetámos; precisamos de saber (o que leva ao pasmo alguns patetas) que na História das Ciências, de quando em vez, há ruturas epistemológicas, há mudanças de paradigma, há revoluções científicas, ou seja, que não sofre de continuísmo a história de qualquer ciência. Um treinador desportivo, um técnico de dança, um profissional de “Educação Física”, se não são especialistas numa ciência hermenêutico-humana, ou social e humana, em que grupo de ciências se fundamentam eles? Se não se sabe, ou se quer, responder a esta pergunta, pode também levantar-se a questão: é, ou não, o ser humano a razão do nosso estudo?... E, porque de um ser humano se trata, ensinamo-lo a “durar”, ou a “viver”?... Não pode perder-se o nosso elo vital com a Natureza. Aprendi-o, há muitos anos já, com o meu Mestre Pierre Teilhard de Chardin. Mas Natureza que, pela transcendência, destila Espírito. Os cursos universitários de Desporto e Dança (dois exemplos, entre mais) deverão transformar-se, o mais depressa possível, em percursos de descoberta do Homem pelo Homem. Para nos apercebermos da mentira despudorada de um certo desporto. Mesmo aquele que se tenta objetivar com rigor. É que um homem (ou mulher) objetivado tão-só, corre o risco de nunca ser conhecido. Mais uma pergunta, para terminar: onde está o Desporto?"
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