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quinta-feira, 9 de abril de 2020

José Antonio Camacho | O primeiro do Renascimento

"Muito em voga, os treinadores frontais da nova era continuam sem conseguir reunir em si a integridade de outros tempos, onde a impulsividade não era desculpada com o feitio. A frontalidade e a fúria justa de José Antonio Camacho eram mais que rótulos bacocos: aglomerava o carácter e alma dos grandes, humildade de braço dado com uma dignidade sem paralelo.
No final de 2002, era precisamente de alguém assim que o SL Benfica precisava. Ele estava livre, depois das polémicas na Coreia e Japão, onde a Roja se viu vergada a uma Coreia do Sul impune e apoiada de forma descarada nos bastidores. “As minhas equipas serão sempre como eu: honradas, disciplinadas, sérias e trabalhadoras”, afirmou em princípio de carreira nos bancos, postura vincada e demonstrada no ano e meio que experienciou o Estádio da Luz.
O chamamento do clube do coração catrapiscou-o e permitiu a entrada de Trapattoni, que aproveitou as bases por si criadas para ser campeão. Voltou como D. Sebastião em 2007, mas a velha máxima de que nunca se deve voltar a um lugar onde se foi feliz prevaleceu. O clube estava de pantanas e ele nunca tolerou desorganização e interesses cruzados.
Aquele 24 de Novembro foi farrusco. A chuva que inundava a Luz não ajudava ao futebol pobre da equipa naquela terceira eliminatória da Taça. A depressão era tanta que há quem diga que os adeptos do Gondomar SC estavam em maioria. Eufóricos ficaram com o golaço de Cílio aos 10 minutos: o 0-1 manteve-se até final, fruto da impotência dos titulares e da inépcia de Jesualdo Ferreira, que viria a ser despedido ainda nesse dia.
A Chalana pediram para tomar conta enquanto se ultimavam pormenores em relação ao contrato com o novo técnico – bastou ao Pequeno Genial um jogo para descobrir em Miguel um lateral-direito de estirpe internacional, numa vitória caseira frente ao SC Braga.
Na segunda semana ao comando da equipa, José Antonio prepara-se para realizar o último derby no velhinho Alvalade. Uma exibição contundente permitiu aos encarnados uma vitória clara por 2-0, jogo que servia de premonição do que aí viria: com Camacho, o Benfica estaria sempre mais próximo de ganhar pela sua atitude.
No descalabro da demolição da antiga Luz e da necessidade de andar com a casa às costas, o treinador espanhol foi sempre o farol de competência que permitiu cumprir os objectivos e manter o clube nos mínimos olímpicos. O segundo lugar final de 2002-03 permitiu uma classificação uefeira que já não se via desde 1999-00, marcando o inicio da retoma do clube e do seu prestígio.
A consolidação da espinha dorsal daquele plantel – Moreira, Ricardo Rocha, Petit, Tiago, Geovanni, Simão e Nuno Gomes, à qual se juntou Luisão depois – foi tarefa que levou a cabo com muita dedicação e trabalho, dotando o clube de uma nova identidade que se manteria até finais da década e que permitiu os sucessos seguintes.
Se não chegou para ultrapassar a SS Lazio, na pré-eliminatória da Champions, permitiu uma caminhada digna na Taça UEFA, só bajulando aos pés do Inter de Milão nos oitavos-de-final. A equipa cumpria em solo nacional, conquistando a Taça de Portugal nesse ano e só não almejando mais dada a concorrência do FC Porto de José Mourinho.
A capacidade de trabalho com a qual José António dotou a equipa permitiram a conquista de classificações importantes em termos pontuais: 75 e 74 pontos (respectivamente) que o clube não almejava desde 1995-96 e que permitiriam conquistar o título em 2001-02, 2004-05, 2006-07, 2007-08 e 2008-09, a título de exemplo.
Com todas as dificuldades inerentes à mudança de Estádio e à desorganização total da estrutura, o treinador espanhol teve ainda que lidar com um assunto ultra-sensível como a morte de Miklos Fehér, naquela noite fria de Janeiro em Guimarães.
Teve que ser ele, enquanto líder inquestionável e, a partir daí, figura paternal de todo o staff e jogadores, a entregar a mensagem a todos. Na viagem de autocarro de regresso a Lisboa. No meio de toda a tristeza, conseguiu manter a honra e terminar a época de forma positiva, onde abundaram as demonstrações de afecto e união de todos.
O segundo lugar final, ganho em cima da meta frente ao Sporting CP de Fernando Santos já no novo Alvalade, foi a definitiva prova de superação de um grupo atingido pela tragédia. O futebol, sendo a coisa mais importante das menos importantes, serviu como catarse da tristeza profunda sentida no seio do grupo.
Como sempre, Camacho arregaçou as mangas, determinou todas as vitórias como homenagem a Miklos e puxou pelo brio dos colegas. Só com um plantel psicologicamente blindado e unido como nunca seria possível a vitória no Jamor frente a Mourinho, duas semanas antes de Gelsenkirchen e da conquista portista da Liga dos Campeões.
A competência e o estrondoso trabalho cumprido chamaram a atenção do seu clube de sempre. De Chamartín, depois de despedirem Carlos Queiroz, veio o chamamento do coração e ele optou, como todos o faríamos. Por cá ficaram as bases que alavancaram o clube rumo ao título nacional do ano seguinte e das campanhas europeias precedentes.
Trappatoni pegou no seu onze titular organizado em 4-2-3-1, deu-lhe a manha que só a experiência das principais ligas entrega e o espírito campeoníssimo da Velha Raposa permitiu a feliz conjugação de contextos nos três grandes para o triunfo final, 11 anos depois.
Em termos estatísticos, foi o pior campeão de sempre: seis empates e sete derrotas. Caricato, mas a recompensa tardia de um enorme trabalho feito. José António Camacho, como Simão, foram as figuras do rejuvenescimento do Benfica.
A amizade que o ligava a Luís Filipe Vieira serviu como bóia de salvação para o descuidado planeamento de 2007-08. Não resultou. Demitiu-se e, à saída, nos idos de Março, alegou não ter mais poder na motivação da equipa. Não quis descortinar outros motivos para a debandada. Mas, percebeu-se sempre que conflitos internos se sobrepunham aos seus valores e, assim, fez mais uma vez jus de uma das suas máximas: «Quando não me sinto bem no sítio onde estou, mudo-me»."

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