"Na edição da Taça de Portugal de 1970-71, o Benfica andou a acumular goleadas até à final surpreendentemente perdida para o Sporting por 1-4. Mais uma vez teve de se cruzar com um clube das colónias: o Independente de Porto Alexandre, a quem a Federação Portuguesa ofereceu casa em Marvila.
Ah! Que bela tarde na zona oriental de Lisboa, Poço do Bispo, Xabregas, Beato, Bairro da Madredeus lá mais ao alto, Marvila...
Gente aos magotes pela Azinhaga dos Alfinetes. Desta vez não era o chamado do Oriental que se ouvia, era o chamado do Benfica, que, como sabemos, às vezes parece ser uma espécie de canto de sereia, ou irresistível como o feitiço de Circe que quase enganou Ulisses.
A malta ia por ali acima, para um jogo curioso, eram sempre curiosos os encontros que traziam à Metrópole os campeões das colónias, para participarem na Taça de Portugal, desta vez coubera ao Independente de Porto Alexandre viajar até à capital do império para enfrentar o Benfica, a Federação Portuguesa de Futebol, convenhamos, não tinha grande paciência para o futebol africano, nem dava possibilidades iguais a esses clubes, fazendo-os disputar as partidas em Portugal Continental, emprestando-lhes um campo para fazerem de conta que jogavam em casa, como era agora o caso do Independente, instalado no Carlos Salema.
Não faltava entusiasmo aos angolanos que vinham lá das areias do Mamibe que chegam até ao mar, hoje em dia Porto Alexandre tem outro nome, como seria de esperar após a independência, é a cidade de Tómbua, e o Independente mediocrizou-se como tantos clubes descentralizados.
Bandeirinhas drapejando ao sopro da brisa do sul. Eusébio no banco, veja-se bem o luxo, Diamantino Costa, José Torres, Artur Jorge e Praia no quarteto ofensivo.
Como seria adivinhável, o entusiasmo angolano não chegou para incomodar demasiado os encarnados. Golo cedo de Torres, logo aos 6 minutos, 2-0 por Artur Jorge, aos 35, e eis as águias a preguiçar sob o sol de Marvila, aborrecendo os espectadores protegidos com aqueles chapelinhos cónicos de cartão e elástico para segurar ao pescoço, uns a boçejar, outros à procura do homem das queijadas e do nougat, finalmente mais alguns e recuperarem o ânimo ao perceberem que Eusébio ira entrar. Entrou mesmo, aos 63 minutos, para o lugar de Messias. A tempo de disparar duas fogachadas que provocaram uns 'ooohs!' de espanto não escutados até aí.
E na volta, houve Eusébio
Essa edição da Taça de Portugal foi das mais estranhas da história do Benfica. Nas duas primeiras rondas, jogadas a um só encontro, viu-se a braços com clubes do Barreiro. No dia 16 de Maio, desmanchou por completo o Luso por 11-0 com José Torres a somar, só à sua conta, nada menos de sete golos. Do quilé!, como diria o meu amigo e mestre Fernando Assis Pacheco. Em seguida, no dia 22, teve de ir ao Campo D. Manuel de Melo, defrontar o Barreirense, e a folia manteve-se: 7-1 com golos de Nené(2), Artur Jorge(2), Vítor Martins, Eusébio e Simões.
Era nessa jornada da competição que os «teams» das colónias entravam em liça. O Ferroviário de Lourenço Marques foi batido pelo FC Porto por 1-4, os infelizes cabo-verdianos do Mindelense levaram para assar do Sporting, com um disparatado 0-21, e só o surpreendente Independente conseguiu a proeza de eliminar o União de Coimbra, por 1-0.
Dia 4 de Junho: eis os angolanos na Luz.
Ninguém esperava outra coisa que não fosse um saco de golos.
Quando o intervalo surgiu, com apenas 1-0 para os encarnados, o povo fez sentir a sua desaprovação. Vendo bem, havia quem estivesse na expectativa de repetir o resultado do Sporting...
O problema é que, com tudo controlado os jogadores do Benfica resolveram jogar a passo. Apesar de tudo, o toque de calcanhar de Eusébio que deixara Artur Jorge cara a cara com o golo ainda levantou alguns rabos do cimento que fervia de calor.
Osvaldo, o guarda-redes do Independente, era um saltidão. Queria abusar da elasticidade para dar nas vistas, mas, na maior parte dos lances, largava a bola e tinha de ir em busca dela como se andasse a tentar apanhar uma galinha aos ziguezagues Armandinho e Mário José deixaram os bofes em campo e saíram com a língua a rojar pelo chão, mas nada puderam fazer contra o acerto ainda que molengão de Eusébio, que, no segundo tempo, despachou serviço com 5 golos, fixando o resultado em 6-0. Pois, pois... para o Pantera Negra não havia preguiça que lhe tirasse a fome dos golos.
Nas meias-finais, o Benfica eliminou o Tirsense com uma perna às costas: 1-3 em Santo Tirso, 5-1 na Luz.
O percurso fora impressionante: 6 jogos, 6 vitórias, 34 golos marcados. Depois, no Jamor, derrota perante o Sporting por 1-4. Como se tivesse de pagar os custos de, até aí, viver um sossego supremo. Custos pagos com os juros de uma derrota muito dolorosa."
Afonso de Melo, in O Benfica
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