"Era sempre o homem da última palavra – mesmo que esta lhe saísse do único pulmão que tinha, como um sopro
Já não é a primeira vez que aqui falo de Nel Tarleton, a quem toda a gente tratava simplesmente por Nel, mas vendo bem não há nenhuma regra estabelecida para a quantidade de vezes que posso trazer a esta coluna as mesmas personagens, era o bom e o bonito se o fosse, olhem lá vir o diretor a dar-me nas orelhas e a dizer. Isto partindo do princípio que o diretor não tem mais do que fazer se não andar com um lápis azul à moda dos esbirros atrás dos nomes que aqui publico, algo que não faz o feitio dele nem o meu, afinal quase que nascemos juntos. Nel tinha aquele Tarleton que o meu querido amigo/irmão Luís Miranda (por extenso Perain) classificaria como batizado a quem caiu de uma árvore e se esbarrondou em cheio na terra batida. Por causa do TON, estão a ver? O miúdo devia chamar-se Tarle, mas como despencou lá do alto de um carvalho das charnecas do Merseyside quando era criança fez TON! quando bateu com o toutiço no antiquíssimo solo da velha Albion. Passou a Tarleton e ponto final. Embora, como já disse atrás, toda a malta o apelidasse de Nel, tipo tramado para a porrada, talvez por causa dos desequilíbrios mentais surgidos após ter vindo lá do alto do imponente carvalho, assim desamparado. Nascido em fevereiro de 1906 qualquer motivo era bom para armar uma cena de pancadaria à moda antiga, tendo-se tornado um especialista em ‘uppercuts’, vindo buscar o punho cá abaixo – o que não era difícil pois fisicamente era uma meia-leca, muito mais enfezado do que os outros – e erguendo-o com toda a força em direção às queixadas contrárias fazendo cortar línguas a meio com os dentes isto se, no final da trajetória, ainda sobrassem dentes na boca do infeliz que resolvera meter-se com ele.
Aos 20 anos deixou-se de brincadeiras. Ou seja, resolveu tornar-se profissional de murros na tromba e ei-lo entusiasmadíssimo com o seu primeiro combate contra George Sankey, em St. Pauls Square, Liverpol Stadium, um ‘scouser’, ou natural de Liverpool como ele. George era um estilista. Nel era um desenrascado. Aliás, dois pormenores marcaram definitivamente a sua vida e a sua carreira. O primeiro ter ficado sem o pulmão direito, algo muito pouco confortável como poderão imaginar, ainda por cima para alguém que quer fazer do desporto o seu ganha-pão. O segundo ser teimoso como um muar e nunca ter perdido um minuto que fosse a aprender os que os velhos mestres do boxe tinham para lhe ensinar. Subia ao ringue, saltitava de um lado para o outro com aquele estilo de finguelinhas, ia evitando que lhe acertassem em cheio – o que poderia provocar resultado desastrosos – e combatia como se fosse uma máquina de coser, assim quase cerzindo, um gancho aqui, um jab ali, uma verdadeira, como dizer, ‘pain in the arse’, batendo e fugindo logo de seguida para se expor segundos depois às punhadas de um adversário cada vez mais frustrado, mais irritado, mais obrigado a cometer erros, mais sujeito a ser golpeado, mais frequentemente humilhado por aquele cinco-réis-de-gente, mais e mais vítima do escárnio do povoléu que rodeava o ringue. Nel podia ter só um pulmão mas, caraças!, parecia que nunca lhe faltavam os bofes! Sendo resistente como um pneu de trator, mantinha-se minutos infindos sem nunca ser tocado. Não demorou muito tempo a ser um especialista em ganhar combates aos pontos. Ah! Não… não era fácil meter a mão nas ventas do homem que só tinha um pulmão.
Nos anos que se seguiram, Nel Tarleton tratou de apepinar todos os grandes pesos-leves britânicos do seu tempo, Dave Crawley, Freddie Miller e John King conquistando por três vezes o título britânico da especialidade, dando cabo, pelo caminho, do americano Freddie Miller que correu atrás dele a todo o redor do ringue com o público a rir às gargalhadas como se estivesse a assistir a um filme do Buster Keaton. Claro que Freddie não caçou Nel e, ainda por cima, sofreu dois murros bem assentes nos sobrolhos que fizeram espichar sangue para cima das fatiotas dos senhores todos bem paginados da primeira fila.
Ninguém esperava que Nel vivesse durante muito tempo e ele tratou de dar razão aos mais pessimistas ao tomar a barca de Caronte aos 49 anos. Até lá ganhou, perdeu e recuperou o título de pesos-leves por três vezes. Era tão convencido da sua eternidade que não perdia a hipótese de dar umas baforadas num cachimbo ou num cigarro, usando e abusando do único pulmão que tinha e lhe foi retirado com apenas três anos de idade por não ser capaz de se desenvolver e se manter num irritante raquitismo. Sentado no pub até que a campainha soasse pelas ‘last orders’, Nel podia não ser um homem de coração grande (embora tivesse espaço no peito de sobra para ele crescer) mas era sempre o dono da última palavra. Saía-lhe sempre do coração esquerdo. Como um sopro."
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