"Aqui e ali, quando me cruzo com um ou outro jogador de fim-de-semana, lá surge a pergunta:
— A que horas jogas?
Posso estar enganado, algo que acontece com frequência, tenho, ainda assim, a convicção de que, a partir de certa idade, ninguém parece interessado em saber onde e com quem jogamos ou qual a nossa posição em campo. Já o dia e, sobretudo, a hora são um tópico quase incontornável de conversa. Uma característica inerente à condição de jogador. «Olá, boa noite, chamo-me João Ferreira Oliveira, ex-guarda-redes convertido em médio centro, tenho pouca técnica, péssimo jogo de cabeça, mas compenso com uma razoável capacidade de passe e visão de jogo e excelente disponibilidade física. Ah... e o mais importante de tudo: jogos às quintas-feiras, das 23h às 00h.»
Ainda me custa, confesso. Ou custa-me mais do que nunca. Havia um período, algures entre a adolescência e a idade adulta, em que nada disto era questão. Jogador que é jogador tinha consciência de que só havia um dia e uma hora para jogar à bola: o sábado à tarde. O sábado à tarde era uma entidade, uma instituição, um conceito com luz, regras, ritmo e tempo próprios que todos reconheciam e respeitavam. Uma hora não correspondia necessariamente a uma hora, os ponteiros do relógio avançavam e recuavam consoante o ritmo do jogo, o sol ou a chuva, podendo passar num ápice ou durar uma eternidade. Ainda há quem continue a jogar ao sábado à tarde, adultos que esticam a herança e privilégios da adolescência e da masculinidade até ao limite, mas, o normal, é que a vida, os filhos, a família e relações reclamem o fim-de-semana para si. No máximo, conseguimos empurrar o sábado à tarde para o domingo de manhã, uma solução de compromisso capaz de manter a ilusão de que o desporto é algo alheio à rotina e ao dia-a-dia. Um fim-de-semana dentro do fim-de-semana.
O sábado à tarde fica, contudo, colado à nossa pele, mesmo que joguemos há décadas a meio da semana, como é o meu caso
— Às 23h?! — exclamam, espantados, quase chocados, quando, por fim, lhes sacio a curiosidade. — Isso é tardíssimo!
Têm razão. Já percorri todo os dias da semana (menos a sexta, um péssimo dia para jogar à bola), mas há muitos anos que não entrava em campo tão tarde. Nos tempos da faculdade, sim, jogava às 23h ou mesmo à meia-noite. Terminado o jogo, fazíamos o percurso a pé, uma hora de caminho Covilhã acima, até à rua da Saudade, e só chegávamos a casa por volta das duas e pico quase três, ainda a tempo de sair à noite. Mais do que uma necessidade, jogar a horas tão tardias era um statement, uma forma de mostrar ao mundo (quando o mundo era pouco mais do que a nossa rua) que os nossos dias não eram limitados pelos horários e que 24 horas sabia a pouco.
Continuo a gostar de jogar a esta hora, a sensação de que estamos a roubar uma hora ao dia e à rotina, a vestir os calções quando a maioria da cidade enfia o pijama, mas não é fácil, admito. Tenho colegas que receiam adormecer antes do jogo. Que, arrumada a cozinha e deitados os filhos, não resistam à tentação de se recostar um pouco no sofá e, de ténis e caneleiras, acabem por passar pelas brasas. Já aconteceu, logo num dia em que estávamos à conta. E nada é mais ridículo do que jogar com menos um às onze da noite.
No meu caso, o problema não é tanto o pré, mas o pós-jogo. A partir dos 40, com crianças em casa e um corpo que, depois de praticar desporto, se recusa a desligar e a dormir, o dia seguinte é uma pesada fatura que nos faz questionar e colocar tudo em perspetiva. Fico de ressaca, como se estivesse esvaziado a garrafeira ou carregasse às costas todos os jovens e jogadores de fim-de-semana do mundo. Só volto a ser eu lá para o sábado à tarde ou domingo de manhã."
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