"O Mundial tinha começado há dois minutos e logo um adepto do Equador foi filmado a fazer um gesto de dinheiro roubado, com os dedos, no meio da bancada do Al-Bayt, duas filas abaixo de um grupo de locais, reagindo à anulação do golo de Enner Valência por causa de um fora de jogo só detectável pelo VAR semi-automático, numa sugestão de que aquilo estava tudo comprado a favor do Catar.
Parecia Paulo Bento a saudar Lucílio Baptista por causa de um penálti martelado nos tempos do pré-VAR. Percebeu-se o incómodo, numa bancada sem separação de claques, e estivemos perto de uma primeira escaramuça transcontinental, entre sul-americanos coloridos e emotivos e árabes circunspectos, imperturbáveis nos seus cafetões da cor da pureza, as túnicas brancas a que eles chamam “Kandoora”.
Nas redes sociais dispararam os “mêmes”, dois deles muito expressivos: uma imagem dos tempos da Al-Qaeda em que o VAR é a vítima de joelhos sob a ameaça de ser decapitada por um árabe de cara tapada; e outra de um jogador do Equador enfiado numa banheira cheia de notas de dólar da FIFA como compensação pela derrota frente aos donos da bola.
Foi tudo um exagero, felizmente, porque a equipa do país “organizador” é tão fraquinha, talvez a pior de sempre num Mundial desde o Haiti de 1974, que não haveria complô que a salvasse.
Depois de vermos as repetições televisivas e a exposição gráfica percebemos que a decisão do VAR foi boa. Mas a suspeição em torno do futebol, mesmo à escala mundial, está muito longe de ser erradicada.
A profecia de que o futebol nunca mais será o mesmo, por causa do VAR, espécie de “kandoora” vestida da cabeça aos pés pela FIFA de Infantino, ainda está longe de ser confirmada, porque é abissal a diferença tecnológica entre as competições de elite e as provas domésticas.
Este “esforço” pela transparência do jogo, apresentado numa parte do mundo onde os homens vestem de branco sem nódoas um traje que pode significar a portuguesíssima “candura” (“qualidade do que é puro, de quem é inocente, ingénuo, crédulo”), é, isso sim, uma perfeita metáfora da actividade global da FIFA, despejando dinheiro, às claras, em cima de um mundo obscuro de contradições, abusos e violações.
E o que fica, como expressão simbólica deste primeiro episódio, é que “os ricos não roubam”."
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