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quinta-feira, 30 de julho de 2020

Três motivos, três alíneas e duas adendas sobre a toxicidade dos programas de TV

"O fim anunciado dos programas que colocam, frente a frente, adeptos dos três grandes, tem sido um dos temas mais falados da semana. Entre opiniões favoráveis e discordantes, não deixa de ser interessante olhar para isto de uma forma mais distante e abrangente.
Mas comecemos pelo princípio. Porque é que faz sentido terminar com este tipo de formatos?
1. Porque incorrem, desde sempre, numa enorme injustiça, que apenas acentua o fosso existente entre grandes e pequenos.
Só FC Porto, SL Benfica e Sporting CP veem as suas cores representadas naqueles palcos. Não têm o contraditório de adeptos das restantes equipas. A grandeza desportiva, os pergaminhos e o mediatismo desses emblemas não estão em causa, mas todos os outros também têm a sua história, dignidade e objectivos. Todos têm adeptos.
A imprensa deve assumir o seu papel no equilíbrio de forças, promovendo igualdade de oportunidades em antena, ainda que isso implique, a espaços, trocar valor por valores. Não é para quem quer, é só para quem pode.
2. Porque há excessos de linguagem e um nível de agressividade inadmissíveis em programas desportivos.
A televisão é perigosa para a liberdade de expressão de quem tem dificuldade em controlar as suas emoções. Não faltam exemplos disso. Quando a razão se perde, o debate e a troca salutar de ideias dão lugar a outra coisa qualquer. É aí que emerge o lado negro de cada um, mais descontrolado, insultuoso e ofensivo. Para quem está cá fora, essa conduta é péssima. Se é péssima, não pode nem deve ter tempo de antena.
3. Porque há a ideia enraizada que alguns dos "adeptos-comentadores" mais não são do que meros porta-vozes dos seus emblemas.
Uma espécie de extensão dos seus departamentos de comunicação, que aproveitam o espaço e mediatismo que dispõem para difundir as suas mensagens.
A questão, em si, não choca: é perfeitamente normal o alinhamento de ideias entre um conhecido adepto e a equipa do seu coração. O que incomoda é quando é notória a intenção de passar mensagens estratégicas e conflituosas, semear confusão, lançar suspeitas ou mascarar insucessos desportivos apontando o dedo a terceiros. Isso é outro nível e uma estação de televisão independente não o deve permitir.
Dito isto, importa agora referir o seguinte:
A - Estes formatos não começaram hoje nem ontem. Existem há décadas, como sabemos. E existem porque funcionam bem, que é como quem diz, produzem resultados (leia-se "audiências").
Ora, sob o ponto de vista empresarial, de quem oferece o produto, a opção é legítima e inatacável. A minha sugestão é que se reflicta sobre o outro lado, o de quem o consome. Porquê é que as mesmas pessoas que tanto o criticam são, no fundo, as que lhe dão audiências? O que é que isso diz sobre elas, sobre a sua cultura desportiva? Sobre a forma como estão no futebol e no desporto?
O mal está em quem descobre um formato vencedor ou em quem o mantém vivo, vendo-o todas as semanas? Acham mesmo que existirião programas destes se ninguém os visse?
Nota - As audiências já não são o que eram. Nota-se alguma saturação nas pessoas, o que não deixa de ser um bom sinal. Digo eu.
B - O fim de alguns programas desportivos com adeptos não será o fim do ambiente tóxico no futebol, embora já se tenha percebido que ajudará a despoluir a atmosfera.
A verdade é que há outros formatos desportivos, com comentadores alegadamente independentes, que parecem não ser mais do que meras caixas de ressonância de outros interesses. Essa perda de independência, porventura até subconsciente, alimenta suspeitas de ligações cinzentas que o desporto bem dispensa.
Isso é notório não apenas em televisão, como também em toda a restante imprensa. E é notório não apenas em analistas televisivos, como em alguns jornalistas. Não sou eu que digo, é o mundo que o vê e sente há demasiado tempo. Eu apenas concordo.
C - É injusta a acusação populista que, em televisão, não se fala de jogo jogado mas apenas de assuntos negativos e tóxicos. E é injusta por dois motivos:
I - O primeiro é que não são nem os jornalistas nem os comentadores que inventam notícias escabrosas: é o futebol que insiste em oferecê-las.
As guerrilhas entre clubes assumiram proporções épicas, porque há agora mais meios para difundir mensagens de ódio; há novidades constantes no que diz respeito a processos em tribunal, mau comportamento de claques, buscas em empresas e domicílios, críticas à gestão de clubes, constituição de arguidos em processos na justiça, deterioração de relações entre clubes e SAD's, etc, etc.
Há, na verdade, uma lista crescente de assuntos infelizes que teima em surgir, ora sustentada em fundamentos palpáveis, ora apenas baseada em rumores.
A imprensa não pode sonegar essa avalanche de informação, apenas para difundir conteúdos simpáticos e positivos. Todos gostamos da magia do futebol e todos sabemos bem o que queremos e devemos valorizar, mas o jornalismo de qualidade tem o dever de informar com qualidade e verdade. 
II - Falta de conteúdos. Porventura o mais sensível dos temas aqui em causa.
As televisões - aliás, a imprensa em geral - não dispõem de "material" para fazer mais e melhor. Para mostrar o outro lado, o lado bom, das coisas boas, que o adepto tanto gosta de ver.
Falta-lhes o mais importante: autorização e acesso.
Autorização para entrevistar jogadores, treinadores e árbitros no ativo. Acesso para fazer reportagens fantásticas nos bastidores, no relvado, nos estádios, nos treinos ou no dia-a-dia dos protagonistas. 
Falta-lhes matéria-prima para fazerem mais e melhor. Os melhores conteúdos são vedados a jornalistas, rádios, televisões e jornais. Essa é uma porta que está fechada em permanência, desde sempre. Porquê? A quem serve?
Há muita reflexão para fazer, de facto.
Terminar com (alguns) programas que incentivam mais ao ruído do que à pacificação é um pequeno passo, sem dúvida, mas falta tudo o resto... e o resto é muito."

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