"Se se discutir um tema em que também abundam paixões, vísceras e venenos vários – a justiça –, o caldo entorna de certeza.
O meu avô Ramiro, que era pouco letrado mas sabia muito (aliás, as letras em abundância não garantem só por si saber suficiente, como bastante se constata), costumava dizer que há três coisas que se não devem discutir, por ser impossível (eu diria, mais cauto, por ser difícil) alinhar dois ou três argumentos razoáveis sem que paixões, vísceras e outros venenos do senso logo toldem o raciocínio e inquinem a discussão: futebol, política e religião. Por sinal, três áreas que (salvo por razões profissionais) pouco ou nada frequentei, não por não lhes reconhecer importância ou por menor respeito, longe disso, ou mesmo antes pelo contrário, mas por falta de inclinação; e, se calhar, também por causa daquelas palavras. Que sabemos nós dos caminhos que seguimos ou não em função de quem foi importante na nossa criação? E eu, além de pais, tive a felicidade de nela ter tido também vários avós. Aliás, o meu pai, Francisco, que igualmente sabe muito, também sempre me disse mais ou menos o mesmo acerca da dificuldade de troca de ideias razoável sobre aqueles três temas. E tinha um e tem ainda outro toda a razão, sendo certo que, hoje, e passados mais de 20 anos sobre a morte do meu avô, sobre religião já se consegue discutir alguma coisa, mas sobre futebol e política, nem tanto, mais a mais quando as duas de alguma forma se cruzam ou relacionam. E então se, por artes da vida ou da imaginação, se meter outro tema em que também abundam paixões, vísceras e venenos vários – a justiça –, o caldo entorna de certeza, e pode até entornar muito. Querem exemplos? Precisam de exemplos? Eu diria que não, seria desperdiçar papel, até porque, como dizem os juristas, o que é público e notório não carece de alegação nem de prova.
E, depois, o grau de impossibilidade de discussão razoável depende muito dos intervenientes e das suas motivações, e não tanto do assunto em si. É que os três assuntos toldam o senso, mas toldam mais ou menos consoante o que cada um carrega consigo na discussão, pois todos temos uma parte boa e outra má, e, em cada qual de nós, uma e outra não ocupam o mesmo espaço. É verdade que sou um encantado leitor de Italo Calvino. É verdade que ele escreveu O Visconde Cortado ao Meio, onde conta a história do visconde Medardo de Terralba que, na guerra entre a Áustria e a Turquia, é cortado ao meio na Boémia por uma bala de canhão turca. Por artes da fantasia literária do autor, as duas metades sobrevivem, mas só uma metade do visconde regressa a casa, passando a governar os seus domínios após a morte do pai. Mas a outra metade, bem mais virtuosa, aliás (e porventura em excesso), acaba mais tarde por aparecer também, e terminam a enfrentar-se à espada, no Prado das Monjas, batendo-se pelo amor da pastorinha Pamela Marcolfi. E, em resultado da refrega sangrenta, as duas metades acabam reunidas num ser só, com ajuda das artes médicas do Doutor Trelawney, e assim temos de novo o visconde pleno e total. Nas palavras do narrador, seu sobrinho: “Deste modo, meu tio Medardo se transformou novamente num homem inteiro, nem mau nem bom, mas antes uma combinação de bondade e de maldade, isto é, não muito diferente em aparência daquilo que fora antes de ter sido cortado ao meio. Mas possuía a experiência de uma e outra das metades agora reunidas num só corpo, e por isso devia ser bastante sábio”. Pois é, magnífico livro, estupendo escritor, mas nem sempre a arte imita a vida. Sobretudo se estiverem em discussão dois dos temas que, avisadamente, o meu pai e o meu avô sempre nomearam, futebol e política, e mais a mais se se lhes juntar essa nova religião popular, cheia de crenças, dogmas e alguma superstição, que é a justiça."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!