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sexta-feira, 24 de abril de 2020

O olhar de Judite (para os meus alunos)

"Cada um verá naquele olhar – que contém mil possibilidades - coisa diferente e, se calhar, hoje uma coisa, amanhã outra.

Judite e Holofernes é um dos quadros de Caravaggio que mais me interpelam e desafiam (refiro-me agora ao quadro “canónico”, não ao discutido quadro do sótão francês). É uma composição a óleo, que datam de 1599, e que reproduzirá uma cena do Livro de Judite, do Antigo Testamento. A viúva judia terá seduzido e levado à embriaguez o general assírio, durante o cerco à sua cidade, e acaba por decapitá-lo, ajudando, assim, a salvar o seu povo. O quadro retrata o momento da decapitação, sendo de notar – sublinho, pois aprecio muito a arte sub-reptícia de cruzar o sagrado e o profano – que se diz que o ousado pintor usou uma cortesã como modelo para Judite. Mas, voltando ao quadro, e à degola do malvado às mãos da mulher determinada, dir-se-ia: belo quadro (como se pode constatar na ilustração), e fim de história. Ou talvez não – e que me perdoe Sontag no seu alerta contra o excesso de interpretação – porque, no quadro, o que mais me seduz, prende, fascina, intriga, dói, deleita, é o olhar de Judite; ou melhor, as muitas possibilidades que ele contém.
Sim, muitas – diria, metaforicamente, mil. E que relação tem isso com a dedicatória acima, ou seja, com os meus alunos, que devo orientar na descoberta e no cultivo da retórica, no seu mestrado forense? Tem toda a relação, e não é preciso ser versado em Aristóteles ou noutros mestres para o saber. Basta viver e estar atento. Retórica é comunicação, linguagem, emoção, interpretação, vida. É olhar e ser-se olhado, ouvir e ser-se ouvido. É ser-se todo, em si, mas com “o” e “no” outro. É o objeto no sujeito – como se este fosse o único ninho possível daquele. E é sedução, combate, superação, medo, surpresa, repulsa, luxúria. Donde, as mil possibilidades do olhar de Judite são as mil possibilidades da vida, das emoções, da comunicação, das armadilhas, dos enganos; e da interpretação (sim, Susan, desculpa-me, da interpretação). E, também, ou sobretudo, a (im)possível conjugação simultânea de três verbos: dever/poder/querer. Verdadeira quadratura, não de um círculo, mas de um triângulo que, não por acaso, é um dos maiores desafios da geometria.
Cada um verá naquele olhar coisa diferente e, se calhar, hoje uma coisa, amanhã outra. Judite majestosa, destemida, orgulhosa, vingativa, libertadora – dizem alguns sobre o quadro. Eu não vejo bem isso. Vejo mais assombro, repulsa e até incredulidade. A criada que segura o saco e espera mostra-se nervosa – dizem alguns. Eu não vejo bem assim, vejo mais crueldade, ou mesmo a precária vingança dos fracos sobre os fortes. E mais, e mais, um mundo de possibilidades, uma espiral de olhares e de leituras. Mas isto é o que me parece agora; noutro dia, talvez seja coisa diversa. Vejo e ouço o que quero, o que posso ou o que devo? E que conjugação entre os três? E como, onde e quando? Muitos são os caminhos, acidentado e armadilhado se apresenta o terreno, caprichoso se põe o clima – como bem ensinava Sun Tzu, numa arte da guerra que é a arte da vida. São tantas, são sempre mil, ou mais, as possibilidades, e é esse o fascínio, mas também o perigo. Tanto deleite quanta cautela, tanta paixão quanto senso. Vertigem e abismo – de mãos bem enlaçadas. É assim ser-com--os-outros, mas também, em igual ou maior medida, é assim ser-connosco. Como diria Walt Whitman, (des)arrumando definitivamente o assunto, todos os assuntos:
“Do I contradict myself?
Very well, then I contradict myself,
(I am large, I contain multitudes.)”
Como Judite, como todos nós."

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