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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

A dança imparável dos fantasmas brancos


"Setembro de 1957. O Benfica recebeu num Restelo bem iluminado o grande Barcelona. A exibição foi empolgante, e o resultado, escasso para tantas oportunidades perdidas (até um penálti): 4-0. Os catalães saíram de Lisboa arrasados.

Benfica no Restelo. Não, não era normal. Mas veio a dar jeito, por causa da iluminação: o Benfica recebia o Barcelona num daqueles jogos amigáveis que, nesse tempo, atraíram gente dos borbotões, uma visita catalã que andava a ser adiada por isto ou por aquilo de há uns meses a essa parte, o enquadramento era lindo sobre o Tejo, a contento de um desafio que era esperado com inusitada expectativa.
Esse era também um tempo em que dizer que alguém era de cor não dava direito a ir parar às caldeiras de Pêro Botelho. Por isso, Tavares da Silva, um daqueles enormes jornalistas que para aqui trago tantas vezes, plumitivo que nunca disfarçou ou escondeu o seu devotado sportinguismo - nem precisou disso para ser de uma integridade ímpar -, ao entrar no estádio deu de caras com o grandíssimo Guilherme Espírito Santo, que já abandonara os relvados e as pistas de atletismo, e deixou-se invadir pela nostalgia: 'Nome inesquecível do futebol português, jogador que aliava às suas condições atléticas de desembaraço e velocidade uma grande mestria no domínio da bola que nos faz conservar na memória e graça alada e o donaire do jogador de cor e cuja saudade de o ver em campo nos arrasa os olhos de lágrimas'.
Abraçaram-se e tornaram os seus lugares.
Era o dia 5 de Setembro de 1957.
Ninguém imaginava o que estava à beira de assistir.
Faltava, do lado catalão, o húngaro Kubala, mágico do golo. Mas não faltavam, por exemplo, Luisito Suárez ou o brasileiro Evaristo, nem Estanislao Basora ou Justo Tejada. De pouco lhes serviu.
O Benfica destruiu por completo o conjunto catalão: 4-0.
Resultado que peca por escasso, diriam os radialistas de hoje. O público que ia, no final, abandonando as bancadas do Restelo parecia estar-se completamente nas tintas para a escassez do resultado. Despachar o gigantesco Barcelona com uma goleada daquelas chegava e sobrava para que o povo regressasse a casa do sorriso aberto de orelha a orelha.

A tontura dos catalães
Tavares da Silva escrevia: 'O Barcelona era, verdadeiramente, uma imagem de futebol esfrangalhado, impotente, com os vários sectores desligados, e as suas unidades mantinham-se em campo só para cumprir a obrigação. Apenas aos noventa minutos é que acabou a tortura dos espanhóis. Uma única equipa vivia em campo. A outra estava morta'.
Bela prosa! Bela prosa!
Nesse ano, o Benfica perdera a final da Taça da Latina para o Real Madrid: 0-1 em Madrid, Chamartín. Há uma espécie de maldição sobre os encarnados nessa coisa de terem jogado finais europeias no campo dos seus adversários. Os homens que tinham ido a Madrid pôr o Real em sentido despachavam de uma penada o Barcelona do Restelo. 'O Benfica deve ser, neste momento presente, a equipa com melhor predisposição para enfrentar estrangeiros, pois não se importa com a classe ou a categoria seja de quem for. Foi um prazer observar os encarnados (que ontem eram brancos) jogando com a desenvoltura, facilidade e descontração de quem se reconhece com a força para criar as condições de KO ao adversário'.
Estava a disputa ainda morna quando Palmeiro ter um centro para a grande área adversária. O keeper Ramallets defendeu a soco, e a bola subiu e subiu, como um balão, caindo depois à velocidade que a gravidade lhe imprimiu. Coluna estava à sua espera: de primeira, sem a deixar tocar o chão, desferiu um pontapé monumental e indefensável. Golo! E que golo! O público saltou dos seus assentos numa reacção colectiva de espanto e alegria.
Estavam decorridos 35 minutos.
Nove minutos mais tarde, José Águas ergueu-se com a sua elegância de flamingo por entre os centrais adversários. A sua cabeçada perfeita resultou no 2-0.
De um momento para o outro, com intervalo para o meio, tudo parecia fácil para o Benfica. O Barcelona caíra de joelhos aos pés dos lisboetas.
No primeiro minuto da segunda parte, Cávem surgiu na esquerda para chutar rasteiro e fazer o 3-0. Três minutos passados, Calado meteu a bola milimetricamente na frente de Águas: 4-0.
Até onde poderia ir o resultado? Era a questão que se espalhava pelas bancadas do Restelo. Não sofreria alterações, a despeito de o Benfica voltar a ter mais algumas oportunidades. A verdade é que, em embates deste género, entre clubes carregados de pergaminhos, há uma espécie de acordo tácito de cavalheiros. Reduzindo a velocidade do seu jogo, o Benfica poupou o Barcelona a uma humilhação que ficaria, com certeza, para sempre dependurada na parede branca da história do futebol. Não era caso para isso. A superioridade portuguesa fora tão límpida, tão clara com os olhos da Elizabeth Taylor. Até um penálti foi desperdíçado a dobrar: José Águas acertou no poste, e Palmeiro, na recarga, chutou à trave.
A escuridão descera sobre a cidade. Ficavam ainda, presos às lembranças, os movimentos incontroláveis, dignos de um bailado, daqueles fantasmas brancos que traziam águias sobre o lugar onde fica o coração."

Afonso de Melo, in O Benfica

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