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sábado, 4 de julho de 2020

O martelo de Nietzsche IX

"1. Vítor Serpa foi condecorado no passado dia 29 de Junho pelo Sr. Presidente da República com a comenda da Ordem de Mérito. Jornalista há quase cinquenta anos e líder do jornal A Bola há vinte e oito anos, Vítor Serpa na linha daquilo que já havia sido o seu pai o jornalista Homero Serpa, é uma figura ímpar no desporto nacional. Ao longo dos cinquenta anos do exercício da sua profissão de jornalista falei circunstancialmente com ele três ou quatro vezes. Assim sendo, a consideração e admiração que por ele tenho e que, agora, me apraz registar, nada tem de pessoal ou emocional, pelo contrário, tem tudo de impessoal e racional. Em primeiro lugar, considero e admiro Vítor Serpa, pelo facto de ele ser, há 28 anos, director de uma entidade privada da economia do lucro que pelo que tem de responder não só a todos aqueles que lidera bem como a uma administração que superintende o jornal. Em consequência, ele é avaliado, todos os dias, todos os meses e todos os anos, o que lhe confere um estatuto de elevada competência porque, se assim não fosse, o mercado já o tinha afastado do lugar que ocupa. Num Sistema Desportivo que ignora o que é uma avaliação independente e nunca nenhum dirigente é responsável por coisa nenhuma Vítor Serpa é um exemplo. Em segundo lugar, considero e admiro Vítor Serpa pelo seu amor à democracia que é a liberdade de opinião. Colaboro n’ A Bola (on line) há vários anos, já publiquei na mais plena liberdade dezenas de artigos de opinião praticamente todos politicamente contundentes. Quer dizer, na linha da democracia liberal republicana, o jornal A Bola tem uma chancela de liberdade de opinião que lhe é garantida pelo seu diretor. O que, nos tempos que correm, não é fácil. Em terceiro lugar, considero e admiro Vítor Serpa porque, sendo ele um amante do futebol, não é por isso que deixa de ter uma visão politicamente descomprometida no que diz respeito ao desporto nacional onde o futebol se integra. As suas crónicas do “Porque Hoje é Sábado” são, de há muitos anos a esta parte, a prova semanal da sua visão, ideologicamente descomprometida, do desporto nacional numa perspectiva global. Delas respigo títulos como, por exemplo: “O desporto pelas ruas da amargura” (2017-08-13); “Política desportiva do Governo…. é bola!” (2017-09-16) ou; A Questão dos dirigentes em Portugal (2019-04-13)”. Todavia, nos últimos anos, a crónica que mais me tocou, na medida em que, de uma forma aberta, pôs em equação um dos principais legados de Pierre de Coubertin, foi a que, referindo-se aos Jogos Olímpicos, encimou com o título “O importante não é participar… é ganhar! (2016-08-17). É sobre este título que considero ser uma das principais premissas do legado de Coubertin que, com a devida vénia, me permito explanar um conjunto de argumentos que, a partir do pensamento de Coubertin, reforçam a tese de Vítor Serpa.
2. Para Pierre de Coubertin, os Jogos Olímpicos deviam ser um evento espiritual com o objectivo primordial de transformar os princípios, os valores, as normas, os procedimentos e os rituais olímpicos do agôn da Grécia antiga, numa certa religiosidade laica a fim de colocar o praticante desportivo moderno numa situação competitiva de superação pessoal e social em busca da excelência a que os gregos chamavam de areté. Não se tratava de participar, tratava-se de superar, de ultrapassar limitações, de competir até ao limite em busca da vitória com um sentimento que na sua dimensão transcendental, em termos competitivos, ultrapassava em muito o narcisismo terreno que anima o espírito competitivo dos atletas dos nossos dias. E, por isso, Coubertin foi um contemporâneo do futuro.
3. A frase “…o importante nos Jogos Olímpicos não é ganhar, mas sim participar…” não é da autoria de Coubertin. É da autoria de Ethelbert Talbot, bispo da Pensilvânia (EUA). Foi proferida num sermão dirigido aos atletas numa cerimónia religiosa realizada na Catedral de Saint Paul a fim de atenuar os conflitos competitivos que estavam a acontecer entre atletas ingleses e americanos nos Jogos Olímpicos de Londres (1908). Coubertin limitou-se a aproveitar a ideia do bispo e reconstruiu a frase de acordo com o seu pensamento: (1º) Substituiu os Jogos Olímpicos pela luta que é a vida; (2º) Substituiu a palavra participação pela palavra combate. E disse: “L' important dans la vie, ce n'est point le triomphe mais le combat; l'essentiel, ce n'est pas d'avoir vaincu mais de s'être bien battu” / “O importante na vida não é triunfo, mas o combate; o essencial não é ter conquistado, mas ter lutado bem”. Assim, Vítor Serpa levou à estampa do desportivo de maior prestígio nacional o verdadeiro pensamento de Coubertin que, por motivos, hoje, bem conhecidos, foi completamente deturpado. Na realidade, se bem quisermos interpretar o pensamento de Coubertin, na linha da posição de Vítor Serpa, nos Jogos Olímpicos “o importante não é participar… é ganhar”.
4. Para Coubertin, se o espírito democrático da promoção do desporto devia ser universal (“todos os desportos para todos”, dizia ele), o espírito dos Jogos Olímpicos devia ser conduzido pela excelência competitiva dos eleitos e não pela fragilidade dos praticantes de base ou intermédios. Todavia, ao longo de mais de cem anos, a generalidade dos dirigentes políticos e desportivos tem-se utilizado da frase do Bispo Talbot sem qualquer rigor deturpando o pensamento de Pierre de Coubertin. E os resultados têm sido desastrosos. Felizmente, de vez em quando, há quem como Vítor Serpa tem o conhecimento e a coragem de dizer que “o importante não é participar… é ganhar!”. O problema é que os doutos dirigentes olímpicos não se dignam ouvi-lo. Em consequência, as Taxas de Descarte de jovens desportistas em países como Portugal atingem valores escandalosamente superiores a 90% na medida em que, “como o mais importante é participar” a esquizofrenia do aumento do número de atletas das Missões Olímpicas, para além de não premiar a qualidade, promove a mediocridade e destrói a prática desportiva de base de Sistemas Desportivos geridos por gente ignorante e, do ponto de vista ético-moral, insensível.
5. A este respeito também Thomas Bach presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), com a sua famigerada Agenda 2020, na linha dos seus antecessores, demonstrou não ter tido a capacidade para apontar os caminhos de futuro para o Movimento Olímpico internacional. E, agora, constrangido por uma crise à escala global que provocou a implosão dos Jogos Olímpicos, anda a correr atrás dos acontecimentos sem ter a certeza de nada e de coisa nenhuma. Quer dizer, foi capturado pelo gigantismo de um evento que deixou de poder ser objecto de qualquer espécie de previsão, planeamento ou controlo minimamente credíveis. E porquê? Porque os dirigentes políticos e desportivos nunca perceberam que na linha do pensamento de Pierre de Coubertin, para além de todos os desportos deverem ser para todos, conforme recordou Vítor Serpa, nos Jogos Olímpicos “o importante não é participar… é ganhar!”. Quer dizer, o Espírito Olímpico deve privilegiar a qualidade e não a quantidade estabelecendo uma relação virtuosa entre os praticantes de base e os de elite que se designa por Nível Desportivo.
6. Relativamente aos Jogos da XXXII Olimpíada, para além de todos os problemas desportivos, económicos, financeiros, jurídicos e sanitários, segundo uma informação veiculada pela “Inside the Games”, surgiu mais um problema que, certamente, será o maior de todos. Mais de metade (51,7%) dos moradores de Tóquio deseja o cancelamento ou adiamento dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Ora, como se sabe, um novo adiamento para 2022 é uma hipótese que já foi rejeitada por Thomas Bach. À parte de qualquer teoria da conspiração, esta informação surge assim como que a preparar a opinião pública para o cancelamento dos Jogos da Olimpíada de Tóquio. Porque, quanto mais se protela a decisão definitiva mais problemas vão surgir. Só 15,2% da população apoio a realização dos Jogos à escala tradicional. Mas também há aqueles (31,1%) que defendem a realização em 2021 de uma versão dos Jogos Olímpicos simplificada. O problema é, em cima da hora, saber quem (desportos, eventos e atletas) vai ser simplificado, quer dizer, excluído. A minha recomendação é simples: Tenham em consideração a premissa de Vítor Serpa: Nos Jogos Olímpicos “o importante não é participar… é ganhar!”. Aos Jogos não se vai para participar, quer dizer, para fazer número. Aos Jogos deve-se ir para competir de igual para igual e, se os deuses assim o quiserem, vencer. Para que tal possa acontecer os países devem ter uma política pública verdadeiramente séria em matéria de desporto.
7. Entretanto, para uma versão simplificada dos Jogos, já surgiram mais de duzentas ideias o que só por si expressa a dimensão e complexidade das decisões a serem tomadas. Está-se perante problemas de ordem operacional no quadro do Programa dos Jogos bem como no domínio logístico que Thomas Bach, finalmente, já percebeu que se trata de um "enorme quebra-cabeças em que todas as peças têm de encaixar" sem que elas estejam todas identificadas. A filosofia d’ ”o importante é participar” conduziu os Jogos Olímpicos a uma dimensão gigantesca que, por paradoxal que possa parecer, acaba por ser uma afronta às condições de vida e de prática desportiva em quase todos os países do mundo. A memória da imagem da população de uma favela do Rio de Janeiro a ver ao longe a luzes do fogo de artifício da Cerimónia de Abertura dos Jogos do Rio (2016) representa bem quanto o Movimento Olímpico moderno, construído por Coubertin para a generalidade das pessoas, se afastou delas.
8. A actual crise veio alertar para quanto o COI e a generalidade das Federações Internacionais (FIs) e dos Comités Olímpicos Nacionais (CONs), hiper estandardizados nas suas regras, concentrados e maximizados nos seus processos, centralizados nas suas decisões e progressivamente cada vez mais especializados nos seus eventos, estão impreparados para desencadear um processo de mudança à escala mundial porque aquelas organizações vivem na incoerência olímpica do paradoxo entre a qualidade e a quantidade. Sabem que a qualidade que desejam promover não se coaduna com a quantidade que, por razões de marketing são obrigados a assumir. Hoje, como refere Vítor Serpa, “o importante é vencer” e esse sempre foi o espírito de Coubertin. Para quem o “mens sana” de Juvenal era “uma máxima excelentemente higiénica, mas nulamente atlética”.
9. Considerando as dúvidas e hesitações de Thomas Bach quando teve de tomar a decisão de adiar os Jogos da XXXII Olimpíada e os posteriores desentendimentos com o Governo japonês, percebe-se que o COI está a viver uma das maiores crises de sempre. E tudo isto resulta da incapacidade demonstrada de compreender o Movimento Olímpico moderno a partir da lógica desencadeada por Coubertin na metáfora que ficou conhecida como a Pirâmide de Coubertin: “Para que cem se dediquem à cultura física, cinquenta têm de praticar desporto; Para que cinquenta pratiquem desporto, vinte têm de se especializar; Para que vinte se especializem, é necessário que cinco se mostrem capazes de realizar proezas extraordinárias”. Quer dizer, como refere Vítor Serpa, não se trata de participar trata-se de competir para vencer.
10. Do ponto de vista da organização do futuro, é necessário fazer ver a muitos membros do COI, bem como a muitos líderes das FIs e CONs que têm de deixar as mordomias do convívio com os deuses do Olimpo e regressarem ao planeta Terra. Assim que chegarem recomendo-lhes que, para começar, assumam a premissa de Vítor Serpa “ o importante não é participar… é ganhar!” e dela saibam tirar as devidas conclusões na certeza de que o Olimpismo é uma filosofia que, de acordo com a Pirâmide de Coubertin, deve colocar o desporto ao serviço do desenvolvimento humano."

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