"Aos 36 anos, Nélson assume que vive há quase dois em exclusivo para os três filhos. Com a rotina instalada em Espanha, de onde não pensa sair, diz que gostava de ser treinador de crianças e que está a preparar-se para isso. Nesta viagem ao passado recorda as dificuldades que sentiu no início de carreira, quando chegou a Portugal, altura em que chegou a viver sem água, sem luz e a ir para os treinos sem tomar o pequeno-almoço. Fala da importância que treinadores como Jaime Pacheco ou Fernando Santos, entre outros, tiveram no seu amadurecimento e da fortuna que gastou a tentar recuperar o pai que ficou tetraplégico após uma queda. Lembra ainda os anos felizes que passou no clube do coração, o Benfica
Nasceu em Cabo Verde. Quem era a sua família?
O meu pai era funcionário da Shell, abastecedor de avião, e a minha mãe era doméstica. Eu sou o mais novo de 17 irmãos. Da parte da mãe, tenho cinco irmãos, da parte do pai, 12.
Foi criado por quem?
Eu vivia com a minha mãe e com o meu pai, porque eu sou filho do último matrimónio do meu pai. Vivi com ambos até aos meus 12, 13 anos, altura em que se separaram e continuei a viver com o meu pai porque a minha mãe foi quem saiu de casa. Ele é que praticamente me educou, mas estava todos os dias com a minha mãe.
Viveu em Cabo Verde até que idade?
Até aos 17 anos.
Quando se fala da infância, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?
Sinceramente, são os momentos bonitos que vivi no meu bairro, com os meus amigos, na Palmeira, uma zona piscatória da ilha do Sal.
E o futebol, claro, começa aí na rua.
Sim, com as equipas de bairro, de meninos, de crianças, e na escola.
Quando era pequeno torcia por que clube?
Pelo Benfica. O meu pai era fanático pelo Benfica e todos os meus irmãos são do Benfica. Só tenho um irmão que é do Sporting [risos], o resto é tudo do Benfica.
Quem eram os seus ídolos?
O meu grande ídolo sempre foi o João [Vieira] Pinto. Era a minha referência porque jogava a avançado, era o número 10. Na época alta do Benfica quando eu era criança, lembro-me que só se falava dele e do Rui Costa. Tive a oportunidade de jogar com o João e nem imagina a alegria que foi.
O seu sonho sempre foi ser futebolista?
Sempre. Desde pequenino que tive a bola na minha cabeça, sempre disse que era um dom que Deus me deu. Na escola os professores diziam: "Nélson, tu sabes que em Cabo Verde isso é difícil". Falavam que era uma coisa quase impossível mas eu sempre tive uma convicção muito grande.
Gostava da escola?
Eu ia para a escola porque era obrigado, preferia estar na rua a jogar à bola [risos].
Havia alguém na família ligado ao futebol?
O meu pai foi jogador na minha zona e sempre me disseram que era bom jogador. Nunca tive oportunidade de o ver jogar porque temos uma diferença de idade muito grande. Salvo erro, o meu pai tinha 40 ou 42 anos quando eu nasci. Tenho um irmão mais velho que também jogou futebol, mas profissionalmente fui o único. Na minha terra era complicado na altura.
Qual foi o primeiro clube onde jogou?
Com 15 anos estava a destacar-me em Cabo Verde, na minha equipa de bairro. Lembro-me que o Portimonense foi lá fazer uns jogos amigáveis e já me queria trazer para a formação. Mas fui depois fui jogar para o Palmeiras. Fui campeão pelo Palmeiras e revelação da ilha do Sal antes de ir para Portugal.
Quando o Portimonense o quis trazer, não veio porquê?
O meu pai não me deixou, eu tinha 15 anos. Dois anos depois comecei a fazer a minha primeira época como federado. Puseram-me na equipa da zona, o Palmeiras, e comecei a ser conhecido a nível nacional em Cabo Verde. Tinha um amigo meu, o Pulidio Brito, que jogava na selecção de Cabo Verde e que falou bem de mim ao seleccionador. Começaram a observar a ilha do Sal e então o seleccionador Óscar Duarte conseguiu trazer-me para Portugal, para uma equipa que se chamava Vilanovense, em Gaia, porque ele tinha contactos no Porto. Foi quando fui fazer uma experiência na equipa do Vilanovense.
Veio sozinho?
Sim.
Ficou a viver onde?
Num lar que o Vilanovense tinha. Era uma casa onde vivíamos sete jogadores das camadas jovens. Portugueses, brasileiros, angolanos, etc.
Foi muito difícil a adaptação a Portugal?
Foi muito difícil porque estava sozinho, acabava de ser pai, fui pai com 17 anos, deixei a minha filha, a Nelice, com uma semana de vida, e não imagina o que eu senti naqueles dias. Chorava diariamente. Deixei a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos, foi muito complicado para mim, sinceramente.
Chegou a pensar em voltar para Cabo Verde?
Quando o sol desaparecia e era hora de estar na cama, tranquilo, chorava. Batiam as saudades. Era muito convicto daquilo que queria e daquilo que ia fazer a Portugal, por isso quando estava a treinar não me lembrava de nada, só queria desfrutar e sentia que estava a viver um sonho. Era um momento de descontração, sentia que estava no meu mundo, sempre foi o meu sonho e só o jogar na relva já me fazia sentir realizado [risos]. Só quando chegava à noite é que me vinha abaixo, começava a lembrar-me da minha família…
Ficou no Vilanovense dois anos.
Sim, passados dois anos, o Vilanovense tinha muitos problemas financeiros e o meu pai é que teve de mandar dinheiro para eu ir de férias ver a família. Os meus irmãos disseram ao meu pai para não me deixar voltar, mas eu disse-lhes: "Vocês não vão me vou dizer quando é que eu vou embora ou não. É assim que eu quero, sei porque é que fui para Portugal e vou voltar”. E voltei mesmo contra a vontade deles.
Quando regressou a Cabo Verde, a sua filha reconheceu-o?
Claro, porque eu falava com ela constantemente. E com a minha mãe e a mãe dela. E sempre que ia lá tentava estar todos os dias o máximo de tempo com ela, porque durante seis anos seguidos só a via uns 15, 20 dias ao ano.
Estreia-se como sénior no Vilanovense?
Sim, eu treinava com os seniores e jogava com os juniores. Passados três meses de ter chegado, o Vilanovense foi para um torneio internacional de sub-20 em Itália, e eu fui. Fiz bons jogos e a Roma mostrou interesse em mim. Quando regressámos, em Fevereiro, a Portugal, o Vilanovense pôs-me na equipa principal e foi quando eu comecei a jogar.
Tinha empresário?
Não. Supostamente o meu empresário foi quem me trouxe para Portugal, mas o gajo deixou-me aqui. Trouxeram-me e deixaram-me aqui... Enfim, só tive empresário quando fui para o Salgueiros.
E como é que vai para o Salgueiros?
Foi uma história muito curiosa, porque nós passámos por tantas dificuldades... As pessoas não têm noção, para chegar aonde se chega, das dificuldades por que tu passas. Tinha um colega no Vilanovense, o Edu Castigo, que tinha um empresário, o Caldeiras, que trabalhava com o senhor Libório, que esteve na formação do Boavista muito tempo. Ninguém me conhecia mas sempre gostei muito de ver os meus jogos em casa e por isso tinha alguns DVDs com jogos meus. Tinha mais dois anos de contrato, mas o Vilanovense não nos pagava, estivemos nove meses sem receber, e esse amigo disse-me: "Vou apresentar-te ao meu empresário, ele vai ajudar-te". Eu nem tinha dinheiro para ir de autocarro, foi o empresário que pagou o autocarro de Gaia para as Antas. Depois levou-me para o escritório dele, viram os meus DVDs e disseram-me que iam tentar ajudar-me. Eles conheciam o treinador do Salgueiros na altura, que era o Norton de Matos, e convenceram o Norton a levar-me para lá, sem ninguém me conhecer bem. E foi assim que fui parar ao Salgueiros.
Nesse tempo todo que esteve no Vilanovense sem receber vivia de quê?
A nossa sorte era que o motorista do Vilanovense tinha um restaurante e ele é que nos dava de comer, porque o Vilanovense pagava-lhe no final do mês. Mas também deixou de lhe pagar e ele mesmo assim dava-nos comida grátis. Só que como o pequeno-almoço tínhamos de pagar, muitas vezes nós íamos treinar sem tomar o pequeno-almoço. Só tínhamos o almoço e o jantar porque era o motorista que nos dava. Por isso é que para ir de férias a Cabo Verde, teve de ser o meu pai a pagar.
No Salgueiros a realidade é completamente diferente?
Sim, muito diferente e o Salgueiros estava numa situação delicada porque não tinha estádio, o clube não estava tão estável, mas sempre era o Salgueiros, uma equipa que estava a lutar para voltar à primeira divisão. Tínhamos uma boa equipa e comecei a destacar-me nos treinos. O Norton começou a dizer: "Fogo, tem um pedaço de jogador aqui". Ele não me meteu logo ao início, porque dizia que eu não tinha experiência. Mas depois de ter jogado o primeiro jogo e o segundo jogo, destaquei-me e ele apostou em mim, nunca mais saí da equipa e fiz uma época muito boa. Fui a revelação da segunda liga e o Boavista contrata-me.
Foi viver para onde?
Fui viver para Leça da Palmeira.
Sozinho?
Não, o dinheiro não era tanto para pagar a renda. Tinha uma prima que vivia no norte com o marido e eles ajudaram-me. Fui viver com eles, ajudava-os a pagar a renda da casa e a comida. Tínhamos um vizinho que jogava comigo, o Madureira, acho que o pai dele era guarda-redes, e ele é que me levava todos os dias para o treino porque eu não tinha carta.
Quando chega ao Boavista o treinador era o Jaime Pacheco. Notou muita diferença dele para o Luís Norton de Matos?
São totalmente diferentes. O Norton era mais filosófico, um treinador busca talentos e o Jaime forma-te como jogador mais maduro e como homem também. A mim fez-me amadurecer muito. Eram totalmente diferentes.
Fê-lo amadurecer como?
Eu era muito inocente na hora de competir. Era muito novo, era um jogador que tinha muita habilidade e, por exemplo, o Jaime não me permitia fintar atrás. Era um risco que eu corria e ele fez-me ser mais maduro nesse aspecto, na hora de tomar decisões. Já com o Norton, não. O Norton dizia: “Tenho que explorar tudo o que tu tens”. Ou seja, dou-te liberdade total, não te preocupes, tens aqui o Nilton para te cobrir as costas. Mas ali era a primeira divisão e jogar numa equipa como o Boavista também era uma grande responsabilidade. O Jaime, nesse sentido, fez-me amadurecer muito e no princípio nem jogava, só no final é que acabei por jogar com ele.
Notou muita diferença da primeira para a segunda liga?
Sim, muita. Quando cheguei ao campo do Boavista, estava todo a tremer. A tremer quando entrei no estádio e quando fui falar com o presidente. Estava todo tímido e a tremer [risos]. Na minha conferência de imprensa, o presidente até começou a brincar comigo para eu descontrair, porque eu nem conseguia falar [risos]. E notei uma diferença brutal. O Salgueiros nem estádio tinha, jogávamos no estádio do Mar, que era o estádio do Leixões.
Ainda se lembra do seu jogo de estreia pelo Boavista?
Perfeitamente. Estava no banco e acho que o Frechaut se lesionou e a equipa estava a perder, 1-0, salvo erro, contra o Gil Vicente. O Jaime tirou o Frechaut e meteu-me. Foi quando comecei a desfrutar um pouco daquele ambiente e da primeira divisão.
Aí também lhe tremeram as pernas ou não?
Não, dentro do campo nunca me tremeram [risos], sinceramente. Foi o contrário, eu estava a vibrar naquele momento, estava a vibrar muito, porque eu sempre fui atrevido e sempre gostei de clubes grandes, então estava a sentir-me realizado, estava a sentir como se estivesse a viver um sonho, estava a desfrutar muito. Quando me meteram no campo, sabes quando podes correr 90, mais 90, e não te cansas? Eu era assim porque desfrutava cada momento, até nos treinos também desfrutava cada momento porque a minha vida mudou da noite para o dia.
Como se dá a passagem para o Benfica, logo na época seguinte?
Nós estávamos a treinar, o treinador era o Brito. Foi o Jaime, depois contrataram o Brito e nós estávamos na pré-época. Havia um secretário técnico, não me lembro do nome... Victor, era brasileiro. Um dia, depois do treino, fomos almoçar e ele disse-me: "Se tivesses oportunidade de ir para um grande, para onde ias? Para o Benfica ou para o FC Porto?" E eu: "Se tivesse de escolher, escolhia o Benfica, que mais podia ser?" [risos]. Passado uma semana, vem ter comigo o João Freitas e diz-me assim: "Nélson, sabes que tens de ir fazer o passaporte não sabes?"; Tenho de renovar o passaporte, mas porquê?"; "Porque nós vamos tratar da tua nacionalidade". Um dia depois do treino, almocei, depois fui descansar porque tínhamos treino à tarde e veio o Paulo Gonçalves buscar-me: "Nélson, vem, tens de ir renovar o passaporte, a Federação está interessada que tu tenhas nacionalidade portuguesa para jogares" e meteram-me no carro. Eu não conhecia Portugal, não conhecia nada, nem o Porto, e já estávamos a andar há uma hora de carro e perguntei: "Ó Paulo para onde estamos a ir?" E ele: "Sabes onde vais, não é?" E eu: "Como?" Comecei a desconfiar e a ficar com água nas mãos. "Vais para o Benfica"; "Como?!?" [risos]. Foi assim, pegaram-me de surpresa e levaram-me directamente para o estádio da Luz. Quando lá entrei, ali sim é que foi uma tremedeira, nunca me senti tão nervoso na minha vida, até aquele momento. E quando lá cheguei encontrei-me com o Veiga e com o senhor Shéu, assinei o contrato e fiquei em Lisboa com o Paulo. No dia seguinte foi a minha apresentação.
Ficou a viver onde e com quem?
Aluguei uma casa e veio viver comigo um primo que já estava a viver comigo no Boavista. Ele era cozinheiro de barco e tinha um amigo que estava sempre connosco. Quando vim para o Benfica convidei esse amigo para viver comigo. Como ele cozinhava e tinha carta de condução, ajudou-me muito.
Como é que foi quando entrou pela primeira vez no balneário do Benfica?
Sinceramente, quando entrei no balneário não fiquei tão assustado. Porque antes de ir para o Benfica tive uma conversa com o João Pinto. Ele jogou comigo no Boavista e então sentei-me a falar com ele, quando tive de voltar ao Porto para ir buscar as minhas coisas.
O que lhe disse o seu ídolo?
"Olha, Nélson, tu não te preocupes, és o mesmo jogador, és igual a eles. Vais lá e vais fazer aquilo que estavas a fazer aqui, tu és igual a todos eles que estão lá, percebes? E não te vais intimidar por nada, nem por ninguém". Sinceramente sempre foi assim, mas essa conversa de uma pessoa que foi o meu ídolo, que jogou na selecção, no Benfica, fortaleceu ainda mais aquilo que era a minha personalidade. Quando cheguei no balneário também tive sorte porque encontrei jogadores internacionais, como o Petit. O Paulo já tinha falado com ele para cuidar de mim também. Foi das pessoas que me pôs mais à vontade e depois comecei a ganhar confiança com todos eles, com o Nuno Gomes, o Simão, tinha um bom trato com todos.
Como era a abordagem do Koeman? Gostou dele?
Gostei dele como treinador, porque apostou em mim, mas no final já não gostei tanto [risos]
Porquê?
Porque ele deu-me a entender que eu era imaturo e havia desconfiança. Porque nós fizemos uma grande Liga dos Campeões e quando chegámos aos quartos-de-final o gajo meteu-me no banco. Respeitei mas fiquei chateado. Lembro-me que eliminámos o Liverpool e nos quartos-de-final jogámos com o Barça e eu não joguei esses jogos porque preferiu meter um central, para jogar com três centrais, em vez de me utilizar. Mas, no global, aprendi muito com eles, porque também havia um segundo treinador que era muito bom, um senhor mais velho [Bruins Slot], que tinha sido treinador no Barça, e sinto que aprendi muito com eles. Foi o meu primeiro ano no Benfica e é um ano muito bom na Liga dos Campeões, não foi tão bom o campeonato, porque ficámos em 3º, mas guardo boas recordações.
Como é que foi a adaptação a Lisboa?
Não foi difícil, foi fácil, porque também tinha um primo meu que estudava em Lisboa e ajudou-me a conhecer Lisboa. Em Lisboa há muitos cabo-verdianos a estudar, pessoas com quem lidava em Cabo Verde, por isso não foi tão difícil.
É nessa altura que também começam as primeiras saídas à noite ou não?
Claro, com 20 anos não vais sair à noite, como!? [risos]
Mas as noitadas já tinham começado no Porto ou foi mais em Lisboa?
Como todos os jovens, sempre que podia, não tendo a minha família comigo, não tendo ninguém, tinha de buscar forma de me distrair, com os meus amigos, por isso sempre que tinha folga e podia, saía com os meus amigos e ia divertir-me, sem problema nenhum.
Nunca teve problemas por causa disso?
Tive um problema no geral, porque lembro-me que uma vez, no Benfica, quando a equipa não estava bem, o presidente [Luís Filipe Vieira] chamou-me particularmente para me chamar à atenção porque lhe disseram que eu andava a sair à noite. Não neguei nada, disse-lhe que sim. "Sim, saio, mas saio quando sei que amanhã não vou treinar". E ele: "Mas não tens de fazer isso, porque estás no Benfica, o Benfica é uma instituição muito grande e vocês são exemplos, e se as pessoas te encontram na rua vão tentar chatear".
Não teve mais nenhum problema com isso, nem com o Koeman, nem com o Fernando Santos, no ano a seguir?
Não. Com o Fernando Santos também não tinhas tempo para nada porque estávamos em três competições. Isso foi no terceiro ano.
Como é que foi a segunda época no Benfica com o Fernando Santos?
O Fernando Santos comigo "era muito chato" [risos], porque dos titulares eu era o mais novo e era a quem ele chamava à atenção, para corrigir muitas coisas. Foi dos treinadores que mais me ensinou o que era jogar futebol, o que era competir. Ainda há pouco falámos do Jaime Pacheco, que começou a fazer isso comigo, o Fernando Santos deu continuidade. Lembro-me como se fosse hoje, nós ganhamos 2-0 ao Sporting e eu para mim: "Eish, que grande jogo fiz", todo contente a brincar com os meus colegas quando estávamos a ver o resumo. No dia depois do jogo, fomos treinar, o Fernando Santos chama-me à parte e corrige-me coisas do jogo, defensivamente falando. Depois chegou um momento em que disse: “Essas merdas dessas palhaçadas que te pões a fazer, tens de deixar de fazer isso, pá". Assim, de forma simples [risos]. "O futebol é básico, o futebol é objectivo". Não sei se se lembra de mim a jogar, mas quando eu jogava era muito divertido, era muito aquele típico jogador africano que gostava de fintar.
Foi nessa época que marcou o golo ao Manchester United, de que hoje ainda se fala?
Sim, foi. Ficou-me marcado por dois motivos. Por jogar na Champions, por ser no estádio do Manchester e também porque eu estava a passar por uma fase muito complicada da minha vida, porque o meu pai teve um acidente em Cabo Verde, ficou tetraplégico e ele estava comigo em Portugal, eu tinha-o trazido para uma clínica para recuperar. Lembrei-me logo dele quando fiz o golo e chorei.
Como é que o seu pai ficou tetraplégico?
Caiu desamparado, porque se sentiu mal, partiu a cervical e ficou tetraplégico. Passado sete anos, morreu.
Nesses sete anos esteve sempre na clínica ou esteve consigo?
Esteve na clínica durante três anos, depois mandei-o para Cuba, onde havia muitos especialistas nessa área, esteve lá um tempo mas viu-se que não podia recuperar e ficou muito mal quando voltou a Portugal, já só queria morrer. Eu já estava em Espanha nessa altura, falava com ele para ver se ele se animava, mas ele nem queria comer. Deu-se continuidade ao tratamento em Portugal, mas os médicos disseram-me que o que eu estava a fazer era gastar dinheiro, porque ele estava numa clínica privada onde eu pagava todos os meses 12, 13 mil euros. Então ele foi para Cabo Verde. Preparámos toda a casa dele para ter as condições de lá estar e passado, salvo erro, quatro anos, faleceu.
Voltando à carreira, o terceiro ano no Benfica foi mais complicado. Teve três treinadores...
Sim, foi um ano complicadíssimo para mim. E digo-lhe porquê. Quando o Fernando Santos começou a segunda época, passados dois jogos ou assim, foi-se embora. Lembro que empatámos no Bessa e ele foi embora antes de fechar o mercado de agosto. Eu tinha uma oferta do Aston Villa para sair. Tinham vindo em dezembro e depois voltaram em julho. Depois chegou o Camacho, que disse que contava comigo, que era um jogador indispensável no Benfica. Eu disse-lhe: "Olha, Camacho, vou contar-te a história que se passa aqui. Eu no ano passado falei com o presidente, que tinha oferta, ele sabia perfeitamente que eu não estava contente com o meu salário no Benfica e passaram-se umas quantas coisas que não foram do meu agrado. Eles ofereceram-me um aumento de salário mas não cumpriram com isso. Eu não estou contente e tenho esta oferta, que é boa para o clube e para mim. Vê lá se me podes ajudar com isso". E ele responde: "Ó Nélson, tranquilo, és importante para mim, vou falar com o presidente e em 20 dias resolvemos a tua situação". Fiquei no Benfica, perdi uma grande oferta, tudo porque eu queria continuar no Benfica.
E melhoraram-lhe o salário?
Não. Resolvi ficar no Benfica por dois motivos. Porque já lá estava há três anos, era um dos jogadores mais importantes do clube e sentia que podia fazer a minha carreira no Benfica, porque é a minha equipa. Mas afinal fiquei e não se resolveu nada, o Camacho foi-se embora, veio o Chalana e no final da época o Benfica chamou-me para renovar o contrato, só que a oferta que eles me fizeram não era o correto e no final eu e o meu empresário falámos com o Benfica para buscar a melhor solução. A melhor solução foi sair. É quando venho para o Betis.
Ainda tinha quantos anos de contrato com o Benfica?
Dois anos.
Que tal Espanha? Foi sozinho, foi com alguém?
Falei com o tal meu primo que era cozinheiro nos barcos. Apesar de ser primo é como se fosse pai, é muito mais velho do que eu, cuidava bem da casa, era um bom cozinheiro, então falei com ele. Ele aceitou a proposta que eu lhe fiz para vir viver comigo. Era ele que cuidava de tudo, dos deveres de casa, ele é que organizava tudo. E ficou a minha mãe em Portugal com a minha filha.
A sua filha foi viver consigo quando estava no Benfica?
Sim, como já tinha possibilidade de ter a minha família, trouxe a minha mãe e a minha filha. Ela chegou a Lisboa e passado um ano eu vim para Espanha. Não quis trazê-la porque eu vim sozinho, só com o meu primo. Como ia viajar muito, preferi deixá-la adaptar-se a Portugal. Ficou lá com a minha mãe e eu sempre que tinha folga ia a Lisboa vê-las.
Como é que foi a adaptação a Sevilha e ao clube?
Foi muito boa. Cheguei a um clube onde era muito respeitado, os adeptos simpatizaram muito comigo, então foi muito fácil.
Notou muita diferença ao nível futebolístico?
Sim. O nível do jogo, a qualidade do jogo era muito maior, não tinha comparação com o campeonato português. Muito mais competitivo. Aqui em Espanha todas as equipas têm um nível alto. No Betis quase todo o 11 inicial era formado por jogadores internacionais.
Houve algum jogador que o tenha ajudado mais e com quem tenha criado amizade?
Sim, o Ricardo simpatizou muito comigo, tivemos uma boa amizade, ia comer na casa dele com a sua família. E há um outro jogador com quem me identifiquei, que é um amigo meu, o Emana, que era o número 10 da selecção dos Camarões. Mantemos amizade até hoje, ele vive aqui também em Espanha.
Teve duas épocas no Betis que lhe correram muito bem.
Individualmente fiz uma boa primeira época muito boa, voltei à selecção através do Carlos Queiroz. Mas infelizmente foi um ano em que o Betis desceu de divisão. Vim para um clube com muita ambição, um clube grande em Espanha, fizeram uma equipa para ir à UEFA mas acabámos por descer de divisão por um ponto.
E na 2ª liga espanhola como foi?
O clube estava a passar por um momento de crise financeira, o presidente e dono do clube teve de sair porque o clube tinha muitos problemas financeiros. Obrigaram-no a sair. No terceiro ano chegou um novo treinador, que já conhecia a casa, porque tinha sido jogador do Betis. No princípio da época, quase a terminar as inscrições, apareceu o Osasuna e eu queria jogar outra vez na primeira divisão, porque seriam já dois anos na segunda e ia perder quase todas as oportunidades de voltar à selecção. Falei com o clube e fui para o Osasuna, onde fiz, para mim, a melhor época aqui em Espanha. Mas infelizmente tive uma lesão muito grave e estive um ano parado.
Que lesão foi essa? Como é que aconteceu?
Foi num jogo contra o Sevilha, numa entrada fiquei com o pé preso no chão e o jogador do Sevilha em vez de chutar na bola, chutou-me no pé, e fiz uma luxação completa. Estive um ano para recuperar. Perdi outra vez a oportunidade de ir à selecção.
Ou seja, depois do Osasuna tem mais uma época e meia no Betis, mas praticamente sem jogar.
Sim, estive quase um ano sem jogar porque estava a recuperar da lesão e no segundo ano joguei só até Outubro, se não me equivoco. Fui jogar um dérbi, perdemos 5-1, e eu estava numa fase muito delicada no Betis, porque estava no final do contrato e se eu fizesse 20 jogos renovava automaticamente. Nessa altura eu era o jogador que mais ganhava no clube. O Betis tinha um limite de salário e eles estavam a arranjar uma forma de eu sair porque não queriam pagar aquela quantidade que eu ganhava. Então, no meu ponto de vista, eles aproveitaram um jogo do Sevilha, quando eu já tinha 15 jogos feitos, e crucificaram-me e tiraram-me da equipa, afastaram-me. Começaram a fazer pressão para sair. Tive umas ofertas para ir para o estrangeiro mas a que me pareceu mais normal foi a do Palermo. Fui pai em dezembro, do Angel, e segui para Itália.
Como conheceu a mãe do seu filho?
Quando estava a jogar no Osasuna. Eu vinha sempre para Sevilha e conheci-a num grupo de amigos. Temos dois filhos, mas estamos separados.
Assistiu ao nascimento do seu filho?
Sim, tenho gravado e tudo. Do segundo é que não, porque estava destacado a jogar no Alcorcón.
Já lá vamos. Então o Angel nasceu em dezembro de 2012 e o Nélson vai para Itália. Gostou de Itália e dos italianos?
Sinceramente não gostei muito. Não é que não tenha gostado de Itália, mas não me adaptei bem ao clube. Era um clube muito problemático, não tinha estabilidade. Tinha dinheiro, pagava bem mas em termos de organização não gostei nada. Estive lá seis meses e tive três treinadores e dois diretores desportivos. Tive um treinador duas vezes na mesma época. A equipa desce de divisão e eu pedi para ser cedido para Espanha e vim para o Almeria fazer uma época.
O futebol italiano era muito diferente do espanhol?
É um futebol muito mais físico, o sistema de jogo era bastante diferente, mas um jogador tem que se habituar a essas coisas.
Voltou a Espanha e como é que correu essa experiência no Almeria?
Foi uma boa época, mas em dezembro também tive uma lesão e estive dois ou três meses parado. Uma ruptura no menisco tibial, uma ruptura muito profunda. Foi num jogo contra o Betis. Estive três meses parado e o final da época foi muito irregular porque uns jogos jogava, outros não jogava.
Tinha assinado por quanto tempo com o Palermo?
Assinei dois anos e meio. Meio ano fiz quando cheguei, depois fui para Almeria, fiquei mais um ano e no último ano de contrato não queria voltar para Itália. O clube também não queria que eu voltasse porque estava na segunda e eu tinha uma ficha muito alta, entrámos em acordo de rescisão e fui para o Belenenses.
Como surge o Belenenses?
Foi muito engraçada a forma como eu fui para o Belenenses, porque sinceramente não tinha pensamento de voltar a Portugal. Estava de férias no Algarve com a minha família e encontro lá numa discoteca de verão o presidente do Belenenses. Apresentaram-nos, estivemos a conversar e ele disse que eu podia ir para o Belenenses, mas estávamos sempre na brincadeira e no final trocámos números. Passado uns dias ele ligou-me, para saber se eu estava interessado mas que naquele momento o clube não podia pagar muito. Mas que o Lito [Vidigal] estava muito interessado que eu fosse para lá, que eu ia ser muito importante para eles, que tinham um projeto muito bonito. Falei com a minha ex-mulher, ela também gostava de Lisboa, foi mais fácil para mim tomar a decisão e fomos para Lisboa. Sinceramente foi uma época espectacular, tanto a nível pessoal como profissional. Levámos o Belenenses às competições europeias e foi muito gratificante.
Além do Lito Vidigal, teve também o Jorge Simão como treinador. Entre os dois qual prefere?
São diferentes. Estive muito pouco tempo com o Jorge Simão, mas vê-se que é um treinador com muito carácter, que tem umas ideias muito boas de futebol e daquilo que eu gostava, porque ele gostava que eu atacasse, que fosse atrevido. E era muito disciplinado. Gostei muito. O Lito também foi muito importante para mim porque era um dos jogadores de confiança dele e falávamos muito, respeitava-me muito. Também tenho um grande respeito por ele.
Não continuou no Belenenses porquê?
Não chegámos a um acordo. Disse ao presidente: "Quero ficar aqui com vocês mas, como deves entender, tenho estas propostas na mão de Espanha, onde me sinto bem também, vê lá se consegues fazer um esforço para me manteres aqui". Mas não chegámos a um acordo e o Alcorcón fez-me uma boa proposta. Era uma equipa que desportivamente também queria subir de divisão. Falei com a minha mulher, ir para Madrid era uma boa opção e acabei por ir parar ao Alcorcón mesmo sendo segunda divisão. Como disse, a segunda divisão em Espanha é muito, muito forte.
Quanto tempo?
Dois anos de contrato.
Dessas duas épocas o que quer destacar?
A primeira, porque foi uma época espectacular. Fizemos uma boa época, infelizmente, no final, nós estávamos nos primeiro cinco lugares, que davam acesso aos playoffs, mas nas últimas três jornadas deitámos tudo a perder. Mas para mim saiu-me tudo bem. Na segunda época chegámos aos quartos-de-final da Taça do Rei. Foi um momento espectacular porque fizemos história com o Velázquez, que foi treinador do Belenenses. Eu queria ficar lá mas o clube falou comigo, que iam mudar toda a estrutura e não tinham muito dinheiro e eu fui para minha casa. Entretanto fui para o Chipre.
Pelo meio teve mais um filho.
Sim, o meu filho Nelson nasceu em Julho de 2016, estava no Alcorcón.
Como foi o impacto quando aterrou no Chipre?
A sorte é que fui para um clube onde a maioria era espanhola. Director desportivo, treinador, três dos jogadores, por isso a adaptação foi muito rápida. E o Chipre surpreendeu-me muito pela positiva. A minha família estava muito bem adaptada lá, os meus filhos estavam muito contentes.
A sua filha continuava em Lisboa com a sua mãe?
Não, a minha filha, desde que me juntei com a mãe dos meus filhos, veio viver comigo, desde os 13 anos, quando fui para o Almeria.
Ganhou a Taça do Chipre. Porque é que não continua lá?
Mudaram a direcção, mudaram o director desportivo e disseram que tinham de mudar a equipa porque estava com muitos estrangeiros e, não sei porquê, tocou-me a mim.
E depois?
Fui para a minha casa em Sevilha. Passados uns meses separei-me e tive uma oferta para ir para o Dubai. Mas os meus filhos estão em primeiro lugar e então preferi deixar de jogar futebol.
Preferiu deixar de jogar futebol para não estar longe dos seus filhos?
Sim. Terminei a época no Chipre muito bem, fisicamente encontro-me muito bem mas já tinha tido a experiência de separação com a minha filha, foi muito dura e então achei que com 35 anos não me ia aventurar mais a deixar os meus filhos.
Já tinha pensado no que queria fazer depois de deixar de jogar futebol?
Sinceramente não. Até porque não tinha pensado deixar o futebol desta maneira, pensava que iria jogar futebol até aos 40 anos, porque me sinto muito jovem, adoro futebol, adoro o que eu faço e deixar assim... chocou-me muito. Até hoje fico a pensar que podia estar a jogar à bola.
O que foi fazer então?
Neste momento cuido dos meus filhos. A minha vida agora é mesmo cuidar dos meus filhos. Tenho uma namorada, vivemos juntos.
Está assim desde 2018?
Sim.
Os seus filhos vivem todos consigo?
Neste momento vivem comigo mas ainda não temos a definição da custódia dos miúdos, estamos nesse processo. Faço todos os deveres de pai e sinceramente não estou nada arrependido da decisão que tomei de deixar o futebol. Porque a minha vida hoje são eles, é para isso que estou aqui, para lutar por eles, cuidar deles e vê-los crescer, para mim isso é o mais importante.
Como é que é o seu dia-a-dia? Faz ginásio, treina?
Sim, tenho um ginásio em casa. Deixo os filhos no colégio, vou buscá-los, dar de comer, levar outra vez para o colégio e buscá-los novamente para estar com eles em casa ou sair e levar ao parque. Estou a fazer o dever de pai, mas também já tenho um curso de monitor porque adoro crianças e tenho um sonho agora para cumprir que é treinar miúdos, formar miúdos. Esse é o meu objetivo neste momento. Fazer um curso para treinar crianças.
Onde é que ganhou mais dinheiro?
No Betis e no Palermo.
Onde é que investiu o seu dinheiro, em imobiliário, em algum negócio?
Em imobiliário. Sou o tipo de pessoa que pensa que para um negócio tens que estar lá tu. Se não estás, não vai correr bem.
Tem tatuagens.
Muitas [risos]
Qual foi a primeira que fez?
A primeira foi o nome da minha mãe.
E quais são as mais importantes que tem neste momento?
As caras dos meus filhos.
Acredita em Deus?
Sim. Já passei por muitas dificuldades e houve um tempo em que deixei de acreditar. Mas sou fiel, acredito em Deus.
Superstições?
Disso nem tanto.
Qual foi maior extravagância que fez só porque sim, porque podia fazer?
Comprar dois carros em seis meses [risos]. Um M6 e um Porsche Cayenne. Mas já os vendi.
Que outros desportos é que segue ou pratica?
Sinceramente sempre fui focado só no futebol. De vez em quando vejo basquetebol mas o futebol sempre foi o centro da atenção.
Tem alguma coisa que goste muito de fazer, fora do futebol?
Quando estou sozinho, gosto de estar tranquilo a ver videoclipes de música.
Que género de música é que gosta?
Hip hop, kizomba, trash.
Qual foi a maior alegria e a maior frustração da sua carreira?
Foram tantas, mas talvez o único título que ganhei, a Taça do Chipre, num momento muito importante para mim. A maior frustração é não ter ido a nenhuma competição oficial pela selecção. Fiz seis jogos mas foram todos de preparação. Fui chamado umas 13 vezes mas só joguei, salvo erro, seis jogos.
A sua mãe continua em Portugal?
Não, a minha mãe vive comigo desde que me separei.
Vai continuar a viver em Espanha?
É assim, não vou mentir, gosto de Espanha, gosto da qualidade de vida aqui e, à parte disso tudo, tenho os meus filhos aqui, prefiro não sair daqui [risos].
Como está a viver esta situação do novo coronavírus?
Em Espanha os números são assustadores.
Está uma situação muito complicada, há muitos casos, as pessoas estão assustadas mas tentamos entreter os putos da melhor forma em casa.
O que tem sido mais difícil de gerir?
Entretê-los. Tens de improvisar sempre coisas para fazeres com eles. Como sou uma pessoa muito caseira, a mim não me afecta tanto, e o que faço não é nenhum sacrifício, porque gosto de estar com os meus filhos, gosto de vê-los felizes.
Algum deles joga futebol?
Sim, o Angel.
Revê-se nele?
Sim, em algumas coisas, porque ele desde pequenino que adora futebol e não é por ser meu filho, mas parece que tem alguns dons. E todos os dias joga comigo, levo-o para os treinos... Sinto-me muito orgulhoso.
Tem ou teve alguma alcunha?
Alguns chamavam-me Chita por ser um animal muito rápido [risos]. E havia um treinador, o meu primeiro treinador no Betis, que me chamava títere [risos], que aqui em Espanha é um mono, um macaquinho [risos]. Era na brincadeira.
Não tem uma história caricata que possa partilhar?
Tenho uma história de quando cheguei a Portugal, que é muito engraçada. Quando estava no Vilanovense, passava algumas dificuldades, porque o clube não nos pagava. Não tínhamos dinheiro e em casa era um caos, porque uns roubavam comida dos outros no frigorífico [risos] e nos últimos três meses em que lá estivemos, em que eu vivia com os meus colegas de equipa, não tínhamos nem água, nem luz.
Então como é que faziam?
É isso que vou explicar. Para tomar banho, era complicado, tomávamos banho no clube, mas e o resto em casa? A nossa sorte é que vivíamos no Jardim Soares dos Reis, em Vila Nova de Gaia, e perto do nosso apartamento havia uma fonte com água. Quando nós queríamos ir à casa de banho, à noite [risos], pegávamos em baldes e íamos buscar água lá, à fonte [risos]. Os que ficavam em casa, ficavam na varanda, e quando nos viam com os baldes para atravessar a estrada diziam alto: "Olha, eles vão buscar água para deitar na sanita". Agora imagine a gente a correr rápido com o balde, para ninguém nos ver [risos]. Recordamos sempre esta história quando nos encontramos. Por isso valorizo muito tudo o que tenho e os meus filhos, porque não foi nada fácil tudo o que passei. A vida não é nada fácil."
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