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sábado, 11 de abril de 2020

«Nunca mais me esqueço da forma como o João Pinto me recebeu»



"Oiã, Palhaça, Oliveira do Bairro e Bustos, Troviscal e Mamarrosa. Como disse? São as quatro freguesias de Oliveira do Bairro, ali na região da Bairrada, terra de leitão e bom vinho. Mas ainda há algo melhor a ter saído dessa terra e chama-se João Henrique Pataco Tomás. O homem que, nas palavras do próprio, amadureceu tarde, fez golos atrás de golos por todo o lado por onde passou, ou não fosse ele um globetrotter com passagens por Sevilha, Qatar, Dubai e Angola, a que se junta em território nacional Coimbra, Lisboa, Guimarães, Braga, Porto e Vila do Conde.

– Infância, juventude, formação –
João, és natural de Oliveira de Bairro, começo por perguntar-te se és apreciador de leitão?
(risos) Já comi muitas vezes, e gosto, mas actualmente só como mesmo em situações especiais.

Que memórias tens dos teus primeiros pontapés na bola?
Tenho muitas, não posso esquecer que sou um miúdo que nasceu e cresceu na aldeia e diria que na aldeia temos tempo para tudo. Dava um jeito tremendo estar na aldeia agora (risos).

Como é que foi o teu percurso na formação?
Foi um percurso normal, muito natural, porque, como disseste, sou natural de Oliveira do Bairro e fiz a minha formação toda lá. A formação na altura só começava aos 10, nos infantis, por isso fiz oito anos de formação.

Jogaste sempre a avançado?
Joguei sempre a médio, sempre a 8.

Como se dá a tua mudança para avançado?
Isso foi no meu segundo ano de sénior.

Por necessidade da equipa ou porque estavas a marcar golos?
Foi uma mistura disso tudo. Quando eu estava no Águas Boas, no meu segundo ano de sénior, jogava a meio-campo e tinha feito alguns golos já. Houve um fim-de-semana, na época 1993/94, em que um dos nossos centrais adoeceu. Nessa altura não existiam telemóveis. No domingo, chegamos ao jogo e o central estava doente, não havia forma de contactar e eu até ia ser suplente, curiosamente. Um dos médios baixou para central, eu entrei para o lugar dele e o colega dele baixou um bocadinho, e eu apareci mais à frente. Fiz quatro golos e o treinador no final do jogo disse-me “Tu comigo nunca mais vais jogar a meio-campo. Vais ser o ponta-de-lança”. E nesse ano fiz para aí 30 golos.

Foste dispensado do Oliveira do Bairro depois de teres feito a formação toda no clube. Como é que lidaste com este contratempo?
Não quero ser injusto mas acho que todos os jogadores que jogaram o campeonato nacional de juniores foram dispensados. Acho que não foi ninguém aproveitado para os seniores. Mas lidei muito mal, fiquei muito desapontado. Em todo o período da minha formação, eu nunca fiz um treino com a equipa sénior e naquela altura era doloroso quando víamos colegas nossos serem chamados para o treino dos seniores. Quando somos miúdos num meio tão pequenino, ficamos desiludidos por não ter a oportunidade de treinar com os seniores, nessa dimensão o objectivo número um é chegarmos àquela equipa e eu nunca o consegui fazer. Retiro daí que a paixão era tanta que, não teve que acontecer por algum motivo. Bola para a frente!

Apoiavas algum clube em miúdo?
O Sporting.

Por causa do teu pai ou algum familiar?
A minha família era quase toda do Benfica, os meus dois avôs eram do Porto e tinha um tio, irmão do meu avô materno, que era sportinguista, foi por ele. Mas deixei de ser sportinguista no dia em que o Sousa Cintra despediu o Bobby Robson.

Das piores decisões da história do futebol. Despedido no avião.
Sim, a regressar de Salzburgo depois da derrota com o Casino. Eu fiquei tão desiludido com aquilo que nunca mais quis saber do Sporting.

Por falar em Bobby Robson, viste o documentário na Netflix?
Sim, adorei! Ia falar agora nisso, depois de ter visto o documentário ainda mais indignado fiquei (risos).

Qual foi o melhor conselho que te deram na formação?
O que me lembro bem, e não quero dizer com isto que os miúdos não tenham essa paixão, é que nós éramos uns obcecados, não pelo treino em si, mas pelo período de tempo em que estávamos a treinar. Acho que isso era o que fazia a grande diferença, adorávamos aqueles 60 ou 70 minutos em que estávamos a treinar e recordo-me perfeitamente que o treino era o maior fascínio que podíamos ter. Passava por cima de tudo, dos brinquedos, das saídas com amigos, das raparigas, passou sempre para primeiro plano, a seguir à escola claro. Acredito que os miúdos agora são manobrados por tanta coisa e têm que controlar tanta coisa que eventualmente é mais complicado. Abdicávamos dos fins-de-semana e saídas à noite porque era a nossa paixão.

Lembras-te da tua estreia como sénior?
Não… É no Arviscal mas é curioso, não me lembro.

E do primeiro golo?
Também não (risos).

Para quem marca tantos golos é normal não te lembrares de todos…
Mas lembro-me de um episódio curioso, dos primeiros treinos no Arviscal. Eles tinham umas condições, em termos de estruturas fixas, muito acima da média. Mas muito mesmo, equipar no balneário do Arviscal era uma coisa de sonho para nós naquela altura, o resto era uma desgraça. Eu sempre me dei muito bem com quase todos os roupeiros onde joguei, com o do Arviscal, o do Águas Boas, ainda no outro dia estive com ele e fartei-me de rir, o Luís. Eu tinha dificuldades, nós éramos três filhos, os meus pais eram professores e não havia botas novas sempre. Lembro-me perfeitamente de ter comprado as minhas botas com o dinheiro que ganhava, na altura custavam para aí oito contos. Com o ordenado de um mês não dava para comprar umas botas. Fui à rouparia, vi lá umas botas e eram perfeitas mas a bota esquerda estava rota à frente. Disse ao roupeiro “Posso ficar com elas?” e ele “Podes, estão aí perdidas”. E eu lembro-me que até estavam um bocadinho grandes mas eram tão boas, nunca tinha jogado com umas tão boas e usei-as até rebentarem.

E mais?
Outro episódio que recordo, já no meu segundo ano de sénior. Eu passei a ganhar sete contos e quinhentos e tinha um prémio, não me recordo do valor certo mas, para teres uma ideia, deu para comprar um carro. Comprei um Renault 5 por 30 contos, 150 euros. E na altura estava muito na moda… tu tens que idade?

27 anos.
Então não te lembras disso. Na altura, foi quando apareceram os primeiros kispos da Duffy, aqueles de penas, muito grossos. Ainda o tenho e, como não tinha dinheiro, combinei com umas pessoas amigas de uma loja lá em Oliveira do Bairro pagar aquilo em três prestações de seis contos.

Lembras-te do que fizeste com o primeiro ordenado?
Não. O primeiro ordenado ganhava cinco contos por mês, no Arviscal. BnR: Para que é que dava cinco contos na altura? JT: Na altura, que foi quando eu tirei a carta, eu atestava o tanque do meu carro com quatro contos. Cuidado. O litro de gasóleo custava 70 escudos.

Como foi a transferência para Académica?
Surge porque passei pelo Anadia, fui para lá porque o meu pai conhecia o treinador e eu fui lá treinar. Eu tinha um tio que era da Malaposta, ali ao pé de Mogofores, e que era dirigente da Académica. O caminho ficou mais próximo mas é evidente que eu estava a fazer um brilharete no Anadia, tinha 20 anos, foi uma consequência natural do meu trabalho. Fomos eliminados da Taça nesse ano pelo Boavista do Manuel José, levámos sete...

7-2 não foi? Tu marcaste um golo não foi?
Sim, marquei um e começámos a ganhar. Depois levámos sete mas começámos a ganhar (risos). Mas dizia, o meu tio permitiu abrir o “canal” mas apenas para eu ir fazer os treinos de captação à Académica no final da época. O míster Vítor Oliveira marcou uma série de treinos e eu lembro-me de ter ido lá a Coimbra ao Estádio Universitário treinar à experiência. Depois a ideia era assinar, fazer a pré-época e depois voltar emprestado ao Anadia. Mas no fim da pré-época o Vítor Oliveira disse “Não, não, este já não sai daqui”. E fiquei.

Quem era a equipa da Académica?
Pedro Roma, Miguel Bruno, Febras, Rocha, Abazaj, Mickey.

Com qual dos treinadores tiveste melhor relação?
Com o Vítor Oliveira tínhamos uma relação boa, como era normal. Toda a gente conhece a sua personalidade por isso não é difícil perceber que todos nos dávamos bem com ele. Agora, relação mesmo importante foi com o José Romão, ele que veio substituir o Henrique Calisto e foi com ele que garantimos a permanência na primeira divisão. Depois com o Carlos Garcia também, ainda hoje o vejo aqui em Braga.

Quem é que te pôs a alcunha de “Jardel de Coimbra”?
Talvez os meus colegas. Foi quando o Jardel aparece em Portugal, logo a seguir. Diziam que a minha fisionomia era parecida com a dele e ficou.

Qual a melhor memória dos tempos da Briosa?
Fiquei muito ligado à subida de divisão. Bem, não diria muito porque isso foi papel dos meus colegas, eu joguei muito pouco, mas fiquei ligado a esse feito porque nós fomos ganhar a Felgueiras 0-1 e fui eu que marquei o golo, aos 89’. Foi um chapéu do meio-campo ao Boskovic e nesse jogo nós estávamos a três pontos e ficámos a seis. Acho que foi assim e nós ficámos com vantagem directa, na altura subiam três. O Felgueiras estava quase atrás de nós e atenção que era o Felgueiras de Jorge Jesus.

Como se dá a tua transferência para o Benfica?
Vou para o Benfica fruto do meu rendimento, saio a meio da época e tinha 19 golos marcados em 17 jornadas. Entrei para essa época em final de contrato e não havia a garantia que fosse ser dado seguimento à minha carreira. Entrei para esse ano já meio desiludido com o futebol, porque eu entrei primeiro na faculdade que no futebol profissional. Na altura era estudante universitário e estava a custar-me fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Pensei, vou jogar mais este ano, estou em final de contrato, estou a ver que isto não anda para a frente nem para trás, arrisco este ano e se não der, regresso à faculdade, acabo o meu curso e siga.

Entretanto começas a marcar golos atrás de golos…
Aconteceu. O meu tio era sócio honorário do Sporting e escreveu uma carta a aconselhar que estava um miúdo muito bom na Académica, ele mostrou-me a carta. Acabo por sair para o Benfica, fruto daquilo que estava a fazer em campo, mas gostei muito desse ano na Académica, foi um ano marcante a todos os níveis, futebolístico, emocional, embora as pessoas ainda hoje me culpem pela saída.

A sério? Levaram-te a mal?
Sim e ainda hoje quando vou a Coimbra algumas pessoas fazem questão de continuar a demonstrar que não esqueceram.

Mas era uma mudança natural, se um grande chega à Académica e quer contratar um jogador…
Pois… Da minha parte nunca houve dúvidas nem eu senti obrigação de explicar o que quer que fosse porque para mim as coisas eram claras, exactamente como tu a descreveste. Mas aquilo foi mal interpretado porque disseram que havia outro clube grande que me comprava e me deixava ficar na Académica até ao final do ano. Mas eu, muito honestamente, não tive conhecimento disso. Eu fiquei super surpreendido quando soube.

Como soubeste?
Eu tinha um ritual pré-jogo de recuperação, com pessoas qualificadas. Estava num ginásio e, quando acabo o banho, pego no telefone e vejo que tinha imensas chamadas não atendidas. Fiquei surpreendido e quando chego ao carro para ir para casa ligo e digo “Então, ligaste-me tantas vezes, que se passa?”. E ele “Às seis horas da tarde estamos em tua casa para te levar para Lisboa.” E eu “Vamos para Lisboa fazer o quê?”. E eles, “Vamos para Lisboa porque tu vais para o Benfica”.

E tu?
E eu disse “Vai gozar com o caraças pá, és maluco”. E ele diz “Não, não, vais tu, vou eu, o José Veiga está lá em baixo à nossa espera. Vamos directamente ao Estádio da Luz e assinas.” E eu disse “Se é verdade, então vamos embora!”. E pronto, fui para Lisboa, cheguei lá e assinei dois contratos, um de quatro anos e outro de quatro anos e meio, dependendo se a Académica me deixava sair logo ou só no final da época. Acho que a mágoa é um bocadinho a de perceberam claramente que as probabilidades da equipa subir de divisão com a equipa completa seriam muito maiores do que depois de eu sair. E a verdade é que acabaram por não subir.

Quanto é que custaste ao Benfica?
200 mil euros, 40 mil contos.

Quem eram os líderes de balneário naquela equipa?
João Pinto e outros. Grande capitão. Até hoje temos uma boa relação, nós depois cruzámo-nos novamente no Braga e também na selecção.

Com quem te davas melhor nessa equipa?
Criei uma grande afinidade com o Bossio, até hoje. Eu equipava-me entre o Bossio e o Paulo Madeira e, quem for ler isto e conhece a personalidade deles sabe, era impossível não se dar bem com eles. Dei-me bem também com o Calado, Nuno Gomes, Ronaldo. No ano seguinte, lembro-me porque estou a ver o balneário e como estávamos distribuídos, continuei com o Bossio e o Paulo Madeira, mais o Maniche e o Fernando Meira também ao pé de mim.

Qual é a sensação de entrar no Estádio da Luz a rebentar pelas costuras?
Jogámos lá o derby com o Sporting com 85.000, lembro-me também do jogo com o Boavista que também estava completamente a abarrotar, se ganhássemos passávamos para a frente. Não se ouvia sequer o apito do árbitro.

Isso para os jogadores contagia?
Eu diria que quem disser o contrário está a mentir às pessoas. É impossível, por muito que nós estejamos preparados, que o aspecto emocional não mexa connosco.

Falaste há pouco no derby com o Sporting, vamos a esse jogo.
O derby tem um conjunto de situações fabulosas que acabaram de uma forma muito inesperada (risos)

É a lesão no joelho esquerdo 15 dias antes num treino, certo?
Pois, 15 dias antes tínhamos ganho 4-0 ao Vitória e eu marquei três golos. Antes do jogo do Vitória tinha sido chamado pela primeira vez à Selecção A e, quatro dias depois do jogo em Guimarães, lesiono-me no treino. Eu disse um palavrão e senti “Porquê agora?”.

O sentimento de injustiça.
É, por isso é que eu digo que isto do desportista de elite está muito correlacionado com a sorte, os momentos. Eu cheguei a casa e disse à minha mulher “Porquê agora? Porque é que eu tenho que me lesionar logo agora?”. Ainda por cima no treino que foi, lembro-me perfeitamente do treino que foi, da jogada que foi. Chovia imenso nesse dia, o campo nº3 completamente alagado e o Mourinho disse “O campo está muito estragado, tudo alagado, fazemos a peladinha amanhã.” Mas a malta toda quis fazer nesse dia. O campo tinha água que até tapava as botas.

E é num lance dividido que te magoas?
É. Há coisas do destino, eu nunca chuto de bico, nunca. Mas a bola estava encharcada e eu vou para lhe dar de bico. O Geraldo só segura assim o pé e o meu joelho faz “Trac”, rotura no ligamento lateral do joelho. Cheguei ao banco e disse ao doutor “Já fui”. Isto foi numa 4ª-feira, nós jogávamos no fim-de-semana contra o Campomaiorense para a Taça de Portugal e depois era o jogo com o Sporting. Mas eu disse “Doutor, eu vou jogar com o Sporting, esqueça. Vou ficar bom do joelho e vou jogar”. Depois saiu o resultado do exame e eram quatro a seis semanas parado.

Duro…
Sabes o que é que eu fiz? Aquilo era uma semana a dez dias com a perna imobilizada e eu andei três, quatro dias assim e depois tirei aquilo. Depois recuperei milagrosamente para o jogo. Na semana que antecedeu o jogo falei várias vezes com o mister Mourinho e disse-lhe “Mister, não se preocupe, eu vou estar pronto. Posso não estar pronto para jogar de início mas vou estar pronto para jogar.”

E ele contava contigo para o jogo?
Lembro-me perfeitamente na noite que antecedeu o derby, o Mozer não vai levar a mal esta inconfidência. Ele veio ao meu quarto e estivemos mais de uma hora a falar. Disse-me “João, vai acontecer isto, o mister já preparou a equipa.” Eu disse logo “Oh mister, não há problema nenhum. Eu disse que ia estar pronto e vou, jogue o tempo que jogar”. Eu acho que foi o sentir desta emoção que explica que eu tenha entrado com o joelho todo imobilizado com 30 minutos para jogar ainda. Senão repara, eu tive uma lesão que o tempo para recuperar são quatro a seis semanas, estou seis dias praticamente sem fazer nada, fiz três treinos para me reintegrar, fiz um treino ou dois com a equipa, senão jogava só cinco minutos, um quarto de hora… Esse sentimento, essa emoção que eu demonstrei, que fez com que as pessoas ficassem impressionadas e depois o resto é história. É engraçado, eu a correr à frente do César Prátes com o joelho todo ligado e as pessoas ainda diziam que eu era lento.

Consegues descrever-me na primeira pessoa como viveste os teus dois golos? Entras aos 60’...
Primeiro golo é mais oportunismo do que propriamente uma consequência de algo. Foi uma biqueirada para a frente do Fernando Meira, eu depois de estar na frente isolado era difícil de me apanhar. Se tu reparares, há dois momentos, não sei explicar mas a celebração do primeiro golo digamos que é sóbria, “ufff”, saiu-me um peso das costas, marquei o golo, fantástico, está toda a gente a vibrar. Agora, o segundo golo foi tudo ao contrário, já era eu. A primeira foi a dizer “Tanto sofrimento, mas valeu a pena”, a segunda foi o esctasy total, um gajo sai disparado. É aquela emoção de já teres feito o primeiro golo, depois é o estádio com 85.000 pessoas, é o jogo contra o Sporting que é um derby daqueles que dá gosto. Depois, nós sabíamos que havia a questão contratual do José Mourinho, se o Vilarinho ganhasse as eleições o treinador era o Toni e isso foi tornado público, foi muito desagradável. Não sei se consegues reparar mas o segundo golo foi celebrado entre mim e o Bossio daquela forma. Éramos colegas de quarto, ele sabia o que eu tinha sofrido porque ele morava perto de mim e nós estávamos muito juntos. Ele percebeu que foi um sacrifício muito grande para estar naquele jogo.

Quando és abordado na rua este é o momento que mais te recordam?
É, sem dúvida.

Que memórias tens de ser treinado por José Mourinho?
A história que eu tenho mais específica dele comigo foi no dia em que ele chega. Ele falou com toda a gente de forma individual e, quando chegou à minha reunião, eu estava apreensivo. Estava no Benfica há pouco mais de meio ano e pensei que isto podia ser complicado para mim mas não, foi tudo ao contrário. Apesar de ser um miúdo de 25 anos, já era uma pessoa adulta, sóbria, já a saber o que dizer e disse-lhe “Mister, se conta comigo eu estou aqui para dar o melhor que posso e que sei”.

Tiveste um gesto muito bonito que acho que passou despercebido a muita gente. Ofereceste uma camisola do Robert Enke ao Museu do Benfica, de quando o defrontaste em Espanha. Que memórias tens dele de quando jogaram juntos no Benfica?
(João demora a escolher as palavras) O Enke era… uma pessoa diferente. Infelizmente partiu de forma trágica, mas era um profissional exemplar, que ninguém tenha dúvidas, era um guarda-redes muito, muito bom e um colega espectacular.

O que é que faltava a este Benfica nos anos em que lá jogaste? Andava longe dos títulos…
Faltava, eventualmente, muito mais do que nós tínhamos. Nós percebemos com o passar dos anos que as coisas não acontecem por acaso. O Benfica transformou-se, com a entrada do presidente Luís Filipe Vieira, na máquina que é hoje e isso é uma consequência de algo. É uma consequência do investimento, da organização, da estruturação e tudo isso faz implicar muita coisa. Faz implicar, na maior parte das vezes, sucesso.

Jogaste em Espanha, no Dubai, no Qatar e em Angola. Em qual gostaste mais de viver e em qual gostaste mais de jogar? 
(risos) Gostei muito de viver em Sevilha e no Qatar. De jogar, Espanha.

Sais para o Bétis em 2001. Davas-te muito com o Calado?
Claro, morávamos perto e tudo.

Como era a vida no Qatar? Alguma história engraçada?
Em 2006, no Qatar, a internet tinha aparecido há pouco tempo. Não havia wireless em casa, para teres uma ideia, os portáteis não traziam WiFi, eu tive de comprar uma pen que era o detector do WiFi. Quando lá cheguei, percebi que era um país evoluído e a única diferença era que passámos de um país cristão para um país muçulmano com as devidas regras.

Que memórias tens de Angola? Estreias-te com dois golos…
Foi uma decisão que deu para aprender muita coisa.

A tua mulher acompanhou-te sempre nestas experiências?
Não, só me acompanhou para Sevilha e para o Qatar.

És casado há quantos anos?
Vamos fazer 20 anos de casados em Junho.

Qual a importância de teres estabilidade na vida pessoal cedo?
Tem uma influência muito grande porque é um factor de estabilidade sentimental, emocional e familiar. Com o nascimento das filhas as coisas ficam diferentes mas acho que é uma consequência natural de uma vida em família. Eu sei que numa boa parte dos casos não é esta durabilidade que acontece mas foi sempre parte do meu sucesso e do insucesso profissional, esteve sempre nos bons e maus momentos para ser um apoio.

– Rio Ave e os “Grandes” do Minho – 
És o melhor marcador da história do Rio Ave, um feito atingido entre os 34 e 37 anos de idade. Que sentimento é que isto te evoca?
Acho que isso é tudo uma consequência do estilo de vida que tu levas, ponto número um. Depois, obviamente que a genética também pode ajudar mas o Rio Ave foi onde mais gozo me deu jogar. Porque eu chego a Vila do Conde já com 34 anos, numa fase difícil onde temos de mostrar todos os dias que estamos bem. Mas foram os anos em que eu mais desfrutei. Em Vila do Conde senti que tinha uma grande responsabilidade em cima de mim, principalmente posta por mim, porque tinha 34 anos e tinha que provar, não a mim mas aos outros, que podia ser titular todos os domingos, que podia marcar golos todos os domingos. Eu dou por mim a traçar objectivos, porque as pessoas vão-me informando e eu começo a perceber que tenho um recorde para bater e foi um estímulo interessante. E nessa altura já não havia pressão na minha cabeça, havia o desfrutar a situação e eu propor-me a fazer uma coisa que eu achava que era justo.

É a massa adepta da qual sentiste mais carinho?
Tenho boas recordações de todos. A forma genuína como eu jogava reflectia-se na forma como eu estava na vida.

Jogas nos dois grandes do Minho, Vitória Sport Clube e Sporting de Braga. Como é que se vive o derby do Minho?
Eu vivi três derbys maravilhosos: primeiro Benfica/Sporting, depois Sevilha/Bétis e depois Braga/Vitória. Mas destes três, talvez Sevilha/Bétis seja o mais empolgante. Vive-se muito mesmo, um mês antes do jogo já não pensas noutra coisa, foi estrondoso jogar o derby.

Estreias-te a 15 de Novembro de 2000 contra Israel. Que memórias tens deste dia?
Ui… Memórias muito emocionais. Recebo a chamada estou a entrar na autoestrada para ir para Lisboa, tinha vindo passar a folga a Oliveira do Bairro, lembro-me perfeitamente de onde estava. Atendo a chamada e era o António Oliveira. “Olá João, daqui fala o mister António Oliveira” e eu caiu-me tudo e disse “Então mister?”. Ele disse que o Sá Pinto se tinha lesionado e que eu estava convocado. A viagem para Lisboa foi muito difícil, mas a emoção foi maior no dia seguinte quando vou à Luz levantar as minhas coisas para ir para Braga. Nunca mais me esqueço da cara do preparador físico, o Ángel Vilda, a emoção que ele tinha, e não me esqueço daquilo que me disse o Mourinho, foi um momento muito importante.

Porquê?
Foi tudo muito rápido, eu nunca tinha jogado em selecção nenhuma, de repente salto do futebol distrital para o Anadia, do Anadia para Académica, de repente estou no Benfica e agora estou na selecção nacional. Como deves imaginar, para um miúdo de Oliveira do Bairro, nos anos 90 e tal, 2000, não era fácil assimilar isso. Os miúdos hoje em dia estão muito mais preparados. Nós éramos mais reservados, tínhamos mais dificuldades perante a novidade. Depois apanhei o avião para o Porto, estava um táxi à minha espera para ir para Braga. São acontecimentos que nunca se esquecem.

Como foi a chegada ao hotel onde já estava a selecção?
Como deves imaginar o impacto foi muito grande em termos psicológicos e emotivos porque estamos a falar da selecção de Vítor Baía, Fernando Couto, Rui Costa, Figo. Aí é que se vê a grandeza dos craques, eu nunca mais me esqueço da forma como o João Pinto me recebeu quando eu cheguei à Luz e nunca mais me esqueço da forma como o Figo me recebeu quando eu cheguei ao hotel da selecção. E pronto, a partir desse momento, tudo fica mais fácil. Porque eles são os verdadeiros campeões em tudo e sabem que aquela situação é difícil para ti, é complicado aquele primeiro impacto. E eu nunca me esqueci disso quando fui capitão, por exemplo no Rio Ave, porque eu percebi que quem está a chegar novo precisa de ajuda.

Como era o António Oliveira como seleccionador nacional?
Eu privei com ele duas, três vezes. É uma personalidade que temos oportunidade de ver agora a fazer aqueles comentários no canal 1 ao domingo à noite e ficamos maravilhados com aquela postura.

Representar a selecção nacional é o expoente máximo da carreira de um jogador?
É, não tenho dúvidas.

Como era o ambiente na selecção? Havia rivalidade de clubes?
Não, isso é um mito (risos).

Marcas um golo pela Selecção, num amigável com o Kuwait em 2007. Qual é a sensação de marcar pelo teu país?
Era o que me faltava, digamos que se havia peso que estava ali para sair das costas saiu naquele momento.

Sentes que houve alturas em que merecias a chamada à selecção, mas, como não estavas num grande, acabavas por não ser seleccionado?
Sim, claro. Mas isso eu já disse muitas vezes, não vale a pena estar-me a repetir porque não acredito que tenha sido por eu jogar no Rio Ave. Acredito que, com a performance com que eu estava no Rio Ave, se fosse com o Fernando Santos, não tenho dúvidas que era chamado.

A decisão de terminar a carreira é a decisão mais difícil para um jogador?
Eu tinha a convicção, quando decidi sair do Rio Ave para ir para Angola, que a coisa podia acabar muito rapidamente. Não é que no Rio Ave não fosse acabar, era uma questão de tempo, mas a decisão de ir para Angola foi pensada e deu-e mais-valias em termos de bagagem para o futuro, porque estamos sempre a aprender. Foi uma passagem por África, pelo país onde a minha mãe nasceu e os meus avós viveram muitos anos. Foi um encontro com o destino ir à terra onde a minha mãe nasceu, parte daquilo que eu sou também está ali naquele continente. Adaptei-me muito facilmente, identifiquei-me com muita coisa e foi isso que me fez aguentar um ano inteiro lá. Obviamente que nós sabemos que a carreira vai acabar mais tarde ou mais cedo. Acabou, podia acabar noutro sítio qualquer, não pensei muito porque, em primeiro lugar não o devia fazer e, em segundo, porque regresso à faculdade para acabar aquilo que tinha começado há 20 anos e isso tirou-me os pensamentos depressivos da cabeça.

Do que é que tens saudades dos tempos de jogador?
Não existe nada que nós não tenhamos saudades, até mesmo daqueles treinos que nos rebentavam, mesmo os estágios em que estamos privados de tanta coisa. Tenho saudades de tudo, nem gosto de pensar, até evito pisar a relva. Vou-te contar um episódio. Estava uma vez no treino, já como treinador, e havia um jogador da equipa A do Braga, não vou dizer nomes. No tempo do Paulo Fonseca, estávamos a treinar os pontas-de-lança e no final do treino houve uns jogadores que tiveram de fazer treino complementar. Tive a oportunidade de dizer a um miúdo, ainda joga, e disse-lhe “Oh X, não imaginas as saudades que eu tenho de fazer essas aberturas. Por isso, aproveita, não faças cara feia e treina porque não imaginas o que eu pagava para tirar 10 anos ao meu BI e estar aí a fazer essas aberturas ao teu lado. E podes não dar valor ao que eu estou a dizer agora, mas quando acabares a carreira vais lembrar-te do que eu disse.” E é verdade, que saudades que eu tenho de fazer aberturas, que é o exercício mais horrível que há, estarmos a fazer sprints para cima e para baixo.

Como é um dia-a-dia de um director desportivo? Passas mais tempo no escritório do que perto da equipa?
Não. Eu tento sempre ser um director desportivo que está no treino, mesmo prejudicando o meu próprio quotidiano, porque depois o tempo que se está a ver o treino não se está obviamente no escritório, mas eu prefiro assim. Só mesmo se for urgente e impossível conciliar.

Criaste um treino específico para avançados.
É uma das minhas paixões, porque considero que a especificidade de um avançado está também muito próxima do que é a especificidade de um guarda-redes. São posições muito parecidas na questão da integração do treino e faz o atleta ser melhor.

Consegues explicar em traços gerais como funciona?
O modelo é simples, eu diferencio o treino em três etapas. O primeiro momento refere-se à parte técnica do jogador, o que é treinável e como é que é treinável. Ou seja, as questões mais analíticas, passar bem, receber bem, utilizar os dois pés, a cabeça, os apoios, a forma como eu rodo. Tudo questões muito primárias e com importância gigantesca naquilo que é o resultado final. Depois, na segunda fase temos tudo isso e a oposição do guarda-redes, porque ele é o nosso adversário número um. A terceira fase é integrar tudo aquilo que nós utilizamos no treino específico com aquilo que faz a equipa. Portanto, eu sozinho, eu com o guarda-redes e depois eu na companhia da minha equipa.

Isto surge fruto da tua própria experiência como jogador?
Sim, eu sempre vivi muito da equipa por isso é que acho que não se pode desligar as peças, sempre fui o primeiro a assumir que se não fossem eles eu fazia muito pouco. Eu nunca fui um dotado, fui um dotado em determinadas valências, mas para fazer golos precisava dos meus colegas. Eu costumo dizer, isto até pode ser uma frase forte, em tom de brincadeira, mas de uma forma séria, que eu atingi o máximo que podia. Melhor teria sido difícil. Repara, eu nasci em Oliveira do Bairro e fui viver para uma aldeia de 500 habitantes, cresci na aldeia e apenas comecei a jogar futebol com 10 anos, no Oliveira do Bairro. Não tive acesso a tanta coisa importante, mas essas limitações talvez me tenha permitido adquirir determinados comportamentos que se revelaram fundamentais, não consigo quantificar.

Uma história com final feliz?
Depois de estudar nós ficamos mais consciencializados daquilo que podemos controlar e daquilo que não podemos. E eu a juntar a isso, comecei a jogar com 10 anos, tive um processo de maturação muito tardio, talvez por isso é que tive muita dificuldade na formação. Cresci muito depressa, não tinha força, não tinha equilíbrio, não tinha coordenação, fruto da minha maturação tardia. Com 14/15 anos era menino, com 16/17 é que passei a adolescente e isso teve uma grande influência naquilo que foi a minha formação. Por isso foi uma sorte monstruosa ter dado o primeiro trambolhão quando saio do Oliveira do Bairro. Eu caio do Oliveira do Bairro, não é do Sporting ou do Braga. Qualquer um pensaria que não tinha jeito nenhum para isto e desistia mas depois nós vamos construindo e as coisas vão acontecendo. Isto tem muito trabalho, muita dedicação mas tem que ter muita dose de sorte também. Mas o normal era não acontecer.

– Passes Curtos – 
Qual é para ti o melhor momento da tua carreira? 
Ser internacional A.

Um estádio?
O primeiro impacto, Estádio da Luz. Fui lá jogar pela Académica e só o túnel que tinha para chegar ao campo intimidava logo.

Qual foi o jogador com quem mais gostaste de jogar?
Van Hooijdonk.

Qual foi o guarda-redes que mais confiança te transmitia?
Paulo Santos.

Qual o defesa mais difícil de enfrentar? E o que mais gostavas de ter na tua equipa?
(risos) Ai, o defesa. Joguei com eles tão bons, Jorge Andrade, Jorge Costa, Naybet. Tenho uma fotografia no jogo Bétis-Deportivo em que estou a receber a bola e tenho os pitons dele ao nível da minha cabeça. O que mais gostei de ter na minha equipa diria o Nem.

Qual o médio que mais gostavas de ter a dar-te jogo?
Madrid.

Qual o avançado com quem mais gostaste de jogar?
Miguel Bruno.

Qual o treinador que mais te marcou?
Jesualdo Ferreira.

Qual o melhor golo da tua carreira?
Académica-Braga, 2005/2006, o segundo golo. Estou descaído para o lado esquerdo, o Castanheira recebe orientado para a frente, eu faço uma diagonal de dentro para fora e ele bate-me a bola junto à linha. Eu sou mais rápido que o Andrade, numa primeira fase, ele fica batido e vai para dentro e é o Zé Castro que me vai fazer a dobra. Quando ele vai fazer a dobra, eu passo-lhe a bola pelo meio das pernas, já estou dentro da área, e vou buscar do outro lado. Sai o Pedro Roma, toco para o lado, salto por cima dele e já com a baliza aberta remato."

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