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terça-feira, 1 de outubro de 2019

A sociedade do insulto gratuito

"Os portugueses estão a caminho de quarenta e seis anos de vivência em Democracia. Na história mais recente da República, já vivemos mais tempo em Democracia do que em ditadura. E no entanto, à boleia da liberdade de expressão, da ligeireza de abordagem das realidades e da amplificação das redes sociais, o insulto gratuito prolifera, com uma espantosa protecção.

uma incapacidade doentia para não conseguir afirmar um ponto de vista, a defesa de uma ideia, de uma instituição ou de um projecto, sem ser pelo ataque dramatizado, desqualificado ou insultuoso. Há uma incapacidade de aduzir factos e argumentos para sustentar a sua posição perante o outro ou quem pensa diferente. A proliferação de sinais de sectarismo e de intolerância está presente em quase todas as realidades que implicam interacção entre diferenças, na política, no desporto e na sociedade, sendo uma preocupante epidemia social. Estamos a alimentar uma sociedade do insulto gratuito, meio tribal, meio intolerante e demasiado antidemocrática. Não qualificamos o pensamento e a acção, não geramos espaço de diálogo civilizado sem insulto e adensamos as condições para a emergência de uma cultura de intolerância e confronto. É claro que a quem se limita a replicar argumentos mais ou menos institucionalizados, num impulso tribal, pouco importa o próprio e o outro, o relevante é cumprir o papel social de megafone, mas é uma deriva preocupante. Sem exigência com as nossas realidades, com que autoridade cívica e democrática poderemos ser assertivos, rigorosos e minuciosos com os outros?
É certo que existe presunção de inocência, que a justiça deveria de investigar sem condenar previamente com violações do segredo de justiça e que são muitos os interesses que se expressam numa campanha eleitoral, mas é aceitável que um titular de cargo público tenha conhecimento de uma farsa ilegal, que dê conhecimento do conhecimento em mensagens com outro político e nada tenha feito para pôr cobro à situação? Há tribalismo que se possa sobrepor à gravidade da evidência não negada, aliás de um protagonista que nos tempos da ERC perguntou a um assessor de imprensa se falava com jornalistas? Não será intelectualmente insultuoso aceitar que um titular de cargo político tenha este comportamento, não desmentido por nenhum dos intervenientes, e que esforço empreendido tenha sido proclamar o “não assunto da coisa”?
Aos quarenta e cinco anos de Democracia, há permissividade com a intolerância e tolerância com a imposição das narrativas de grupo, mesmo que insultuosas, gratuitas e sem nexo com a realidade. 
Andamos nisto na política e em outras manifestações da sociedade, em que os grupos de interesses projectam perspectivas tribais, não em função da afirmação das suas realidades, mas em destruição das perspectivas e projectos dos outros. O foco nunca é a afirmação positiva do contributo individual, comunitário ou do grupo de interesse. O foco é quase sempre a destruição, o insulto e a intolerância em relação ao outro, sem ter em conta o contributo social, económico e cultural do outro para o país. O drama é que a coberto da liberdade de expressão, quem deveria intervir para moderar o insulto gratuito, faz muito pouco, e este prolifera de forma epidémica, em Portugal e no mundo.
Quando jogo após jogo os benfiquistas são insultados por cânticos persistentes de claques, em casa, fora e quando nem sequer o Benfica é adversário directo, e a Liga e a Federação Portuguesa de Futebol fingem que não se passa nada, estão a alimentar a existência de factores de promoção do ódio para os quais só despertarão quando existir uma catástrofe grave.
Quando a UEFA permite a existência de cânticos racistas num jogo a norte, documentados em áudio e audíveis na transmissão televisiva, como já tinha permitido faixas de ataque a outra instituição desportiva em competições europeias, está a proclamar que o insulto gratuito é tolerado pela organização do futebol europeu a alguns. Bem podem fazer campanhas “ No to racismo”, que nunca deixarão de ser ridículos e sem autoridade.
A política e o futebol são a fonte de muitas expressões desta sociedade do insulto gratuito em que Portugal se transformou. Se não houver um esforço de todos para mudar comportamentos individuais e comunitários, o mais certo é entrarmos numa escalada de intervenções insultuosas que acabarão em expressões radicais de intolerância. Podendo estar na órbita da esfera individual mudar, é preciso que quem tem poder regulador regule pelo exemplo e não pela complacência irresponsável.
Domingo 6 de Outubro, é dia de votar, não em função do que nos dizem ou dos outros, mas da nossa avaliação sobre a sociedade que temos e a que queremos ter. Intolerância não é certamente um pilar que queremos para os quarentas e seis anos de Democracia e para os desafios que se colocam a Portugal na sustentabilidade das opções, no respeito pela diversidade e na construção de melhores condições de vida. Com ou sem insultos, se não quer que outros decidam, vote.
(...)"

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