"Em consequência dos ofuscantes espectáculos de luzes e de cores e dos foguetórios proporcionados pelos grandes eventos desportivos, cada vez mais frequentados por uma “beautiful people” de pacotilha à procura de exposição mediática, a generalidade dos dirigentes desportivos, salvaguardando-se sempre as devidas excepções, à falta de mundo, passaram a orientar a sua ação mais preocupados com o “dress code” das grandes cerimónias do croquete do que, propriamente, com as condições de participação competitiva dos atletas, com a organização do alto rendimento ou com o desenvolvimento da prática desportiva nos respectivos países.
Em consequência, o desporto está a ser reduzido ao grau zero da condição humana quer dizer, está a ser transformado numa práxis de carácter reducionista que, ao serviço do vil metal simbolizado pelas medalhas olímpicas, nega à prática desportiva a assunção de valores espirituais e transcendentes, condenando o ser humano que é o atleta a centrar-se, em regime de exclusividade, na estética do corpo e nas suas performances às quais atribui o primado que conduz a sua vida ao serviço da “beautiful people” que passou a tirar partido dos espectáculos desportivos e a conduzir o desporto para a cloaca da história. Nestas circunstâncias, o desporto não pode ser deixado em roda livre. O Estado tem de intervir sobretudo a montante dos sistemas desportivos no sentido de lhes imprimir um destino que, verdadeiramente, tenha a ver com os interesses da generalidade das populações e dos países.
O desenvolvimento do desporto enquanto promotor de educação e de cultura ao serviço do desenvolvimento humano, antes de ter um sentido quantitativo traduzido nas medalhas olímpicas, tem de ter um sentido axiológico que se traduz nos princípios e nos valores que o devem orientar. E foi por isso que, nos primórdios do Movimento Olímpico (MO), o Altius do frade Didon, da máxima olímpica que Pierre de Coubertin adoptou, vinha em último lugar: Citius, Fortius, Altius. Porque, a prática de cada um e de todos era para ser vivida em busca de superação e de transcendência pessoal e social. Como refere Manuel Sérgio, “o ser humano é uma contínua passagem do instinto à inteligência, à liberdade e à cultura”. (A Bola on line, 2018-09-02) e não o contrário como, agora, está a acontecer num certo modelo de Olimpismo em que, na ausência de cultura, perde-se liberdade, anula-se a inteligência e, em consequência, reduz-se as possibilidades dos atletas, a competência dos treinadores e a missão dos dirigentes, à expressão mais primária do instinto de sobrevivência. E, assim, o desenvolvimento do desporto é transformado no mais desconchavado darwinismo social: Emocional na sua práxis; Tribalista na sua organização; Patrioteiro na sua missão evangelizadora.
Pierre de Coubertin, desde a primeira hora, recusou que o MO pudesse evoluir neste sentido que não lhe confere qualquer dignidade institucional. Desde logo porque, o Olimpismo subjugado ao rendimento, à medida, aos recordes e aos espectáculos desportivos, à revelia da prática desportiva de base que garante a dialética do processo de desenvolvimento, transforma: O Estádio Grego num Circo Romano; Os dirigentes desportivos em meros lanistas; Os políticos em tristes “entertainers”; Os atletas em perfeitos mercenários; A população, tal qual rebanho, em simples consumidora acéfala de espectáculos desportivos. Sempre que tal acontece, o MO assume uma dimensão antidemocrática. Na extinta República Democrática da Alemanha, aquando das manifestações em defesa da liberdade e da democracia, exibiam-se cartazes onde se podia ler: “Abaixo os privilégios dos artistas e dos desportistas”. Porquê? Porque os dirigentes políticos e desportivos reduziram o conceito de Olimpismo às medalhas olímpicas que, depois, se veio a saber “estavam dopadas”.
Ora bem, Pierre de Coubertin, no espírito olímpico do Citius, Altius, Fortius, expressou bem a necessidade de enquadrar as performances dos atletas na realidade da prática desportiva de base dos respectivos países. Porque, o desporto deve ser um espaço de valores ético-morais que não podem desvanecer-se na voragem do neo-mercantilismo como expressão última do capitalismo selvagem que se limita a avaliar o desporto pelos resultados nas competições internacionais completamente desinseridos das políticas públicas de generalização da prática desportiva. A última coisa que se pode admitir num país democrático de economia liberal é haver atletas a ganharem lugares de pódio nos Jogos Olímpicos e em Campeonatos do Mundo enquanto o já de si reduzido número de praticantes há muito que estagnou ou entrou mesmo em regressão.
O amoralismo populista de muitos Comités Olímpicos Nacionais (CONs), com o envolvimento das próprias tutelas políticas, nada tem a ver com a dignidade dos países, com os valores do desporto ou os interesses dos cidadãos. Que os partidos, na sua ânsia de poder, se sujeitem a isso, nos tempos de demagogia populista que se vivem, é triste mas não é para admirar. Pelo contrário, é um atentado aos princípios e aos valores do Olimpismo e uma vergonha institucional que os CONs, à semelhança daquilo que se passava nas democracias populares, se sujeitem à humilhação de viverem tutelados sob os interesses da oligarquia política dos respectivos países. Esta situação tem a ver com uma certa eugenia política e social que, em matéria de desporto, tomou conta do ideário da generalidade dos partidos políticos sejam eles de esquerda ou de direita e está, por ganância económica, a ser assumida pelos próprios CONs.
Num artigo intitulado “L’Eugénie”, publicado na “Revue Olympique” de Novembro de 1912, Pierre de Coubertin condenou a eugenia política e social, decorrente das “inefáveis divagações” do antropólogo francês Georges Vacher de Lapouge (1854-1936) que pretendia substituir a conhecida fórmula da revolução francesa “liberdade, igualdade, e fraternidade” por “determinismo, desigualdade, e selecção”. O problema é que, actualmente, em colaboração com os respectivos governos, muitos CONs estão, precisamente, a adoptar a fórmula eugénica de Vacher de Lapouage para determinarem as suas políticas desportivas que se sustentam (1º) Na ilusão do determinismo científico dos modelos de treino que, sem qualquer pudor, prometem a conquista de medalhas olímpicas; (2º) Na antidemocrática desigualdade dos cidadãos no acesso à prática desportiva; (3º) Na estuporada selecção prematura daqueles que mais rendem condenando a grande maioria deles a um futuro sem futuro nenhum. Em consequência, países há que acabam por ficar sem medalhas, sem praticantes desportivos e com um sem número de desintegrados sociais expurgados da prática desportiva porque deixaram de atingir o padrão olímpico exigido. Ora, não foi para isto que Pierre de Coubertin fez renascer nos tempos actuais os Jogos Olímpicos da antiguidade grega.
Perante este estado de coisas, a sociedade assiste impotente à degradação dos valores do desporto protagonizada por uma oligarquia desportiva que, se ao tempo da Guerra Fria, pontuava sobretudo nos países socialistas e nas democracias populares, agora, pontua nas democracias liberais de economia de mercado a partir de governos ditos socialista, sociais-democratas e democratas cristãos que passaram a olhar para o desporto, não como um instrumento de políticas públicas dirigidas à qualidade de vida da generalidade dos cidadãos, sobretudo dos mais desfavorecidos, mas como um instrumento da afirmação do próprio poder político-partidário à custa do dinheiro dos contribuintes. E quando alguns dirigentes políticos e desportivos, na maior das ignorâncias, pretendem em termos de políticas públicas, determinar o desporto como um desígnio nacional só nos fazem lembrar os tempos em que o Turner (movimento desportivo chauvinista alemão) foi colocado ao serviço do Movimento Nazi.
Pactuar com políticas públicas desprovidas de princípios de ordem democrática e social significa, apenas, faltar ao inalienável dever de considerar o desporto como um instrumento de desenvolvimento humano que, os dirigentes do MO, sob sua honra, se comprometeram a respeitar. Infelizmente, agora, salvo sempre as devidas excepções, os dirigentes desportivos, subservientemente, numa espécie de “porno-olimpismo”, aceitam ser instrumentos do poder político desde que lhes garantam um lugar sentado à mesa do orçamento."
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