"Nem sempre tenho a certeza do que é o amor, embora nunca me assole a dúvida de que ele, de facto, existe. É estranho, o amor, e simultaneamente a coisa mais entranhada que conhecemos; é um sentimento abstracto (daí a minha vacilação em explicá-lo) e ainda assim o único valor em que efectivamente nos concretizamos. É uma qualidade tão elevada que se quer rara, mas ao mesmo tempo tão elevada que se nos exige abundante; é o que nutrimos naturalmente por quem nos é próximo, mas também aquilo que aproxima quem outrora nada nos era.
«É tão difícil dizer “amor”», cantavam os Clã, e aqui estou eu a falar dele com a leveza matreira de quem nem precisa de pretexto, só de assunto. A haver um “problema de expressão”, creio que é por excesso, não defeito, já que abundam declarações de amor por coisas que dificilmente o merecem. Abundam as declarações de amor por coisas, coisas apenas. Talvez seja aqui que eu hoje trace a linha (hoje, que pareço usar a razão em função do coração), e assim assevero que as coisas, coisas apenas, malbaratam e enfraquecem a nossa noção de amor. Pessoas, pessoas apenas, são merecedoras da declaração amorosa.
Claro que há quem se diga amante de causas e valores, ou quem manifeste amor pelo Planeta, ou pela Natureza, por exemplo. Ainda assim, toda a afeição me parece estéril se não tiver como alvo final o bem do nosso próximo. A Ecologia, a Paz ou a Justiça são dignas de amor na medida em que apontam para a dignidade das outras pessoas; são edificantes porque dignificam. A dedicação com que nos embrenhamos torna-se aqui num barómetro amoroso, exactamente por estarmos a abdicar do nosso conforto para que outros possam ficar um bocadinho mais confortáveis. O amor é altruísta, e não há altruísmo sem “altrum”, o outro.
Admito também que exista amor pelos animais, mas só porque o trato digno dos bichos nos enobrece enquanto pessoas, e porque a irracionalidade afectuosa deles devia inspirar a nossa fria racionalidade. Mantenho, contudo, que o amor é coisa de gente para gente, e não equiparo o valor da Humanidade ao de qualquer outro ser vivo (perdoem-me, amigos do PAN). Ainda mais inflexível sou com o conceito de quem afirma amar um penteado, um par de botas ou um prato de ramen. “É tão difícil dizer amor”, mas tão fácil banalizá-lo lexicalmente. É como aqueles fulanos que adoram isto e aquilo sem nunca terem erigido um altar, nem experimentado genuflexão contrita.
Já eu, sem exageros, sou um gajo com amor à camisola, a mais do que uma até. Só que esta expressão tipicamente clubística não se revela nos 100% poliester dos equipamentos da Luz, nem no tecido auriverde do meu Clube Desportivo de Tondela. O amor reside, isso sim, nos corpos que, literal ou figurativamente, aquelas camisolas vestem. Reside nos adeptos de quem eu sou adepto, pessoas próximas que me passaram os relatos sobre grandes heróis, grandes feitos, grande nobreza; ou pessoas que simbolizam o coração enorme duma cidade pequena. Sou do Benfica (“e isso me envaidece”) porque há todo um legado benfiquista que fui beber em gente que amo. Sou do Tondela, porque é a terra, e o palco, das minhas mais bem-amadas memórias, todas elas com caras de gente, todas com nomes de amigos.
Hoje sinto-me ligeiramente mais esclarecido sobre o amor, mas não se equivoquem: a estranheza está ao virar da esquina. É que decidi escrever acerca daquilo que me é próximo, aquilo de que me aproximo, na mesma crónica em que vou falar dum rival, dum opositor, dum querido inimigo. Como é óbvio, refiro-me ao Sporting Clube de Portugal - que não me recordo de alguma vez ter estado tanto nas notícias, nem sequer quando eram boas. É o Sporting mais derrotado de que há memória e eu, que tenho o princípio intrínseco de celebrar as derrotas desse clube, não tenho uma letra de celebração que me saia neste momento.
Não me entendam mal: eu desejo que os de Alvalade percam sempre, deixem escapar campeonatos, não se avolumem em taças. Desejo que percam sempre... mas que isso aconteça quase nunca. O Sporting é o rival que quero por perto, a ser combativo para dignificar as minhas vitórias, a ser valente para espicaçar as minhas derrotas; quero que perca quase nunca para estar ali taco a taco, para ser um gigante face aos tomba-gigantes, para ser o fanfarrão, nunca o miúdo enfezado com quem fica mal implicar.
O que me leva a escrever sobre o Sporting não é a crise que o afecta, é a crise que nos afecta. Rejubilo com as derrotas leoninas, mas só aquelas que se circunscrevem ao campo, nunca as que aparecem com paus ao balneário, nem as que chegam com desvario massificado às urnas, nem as que pedem sangue a gente lavada em lágrimas. Essas cabazadas inglórias fazem-nos descer a todos de divisão, porque por muito que nos queiramos convencer do contrário, o futebol já não pertence a quem o vive, pertence a quem o ameaça de morte.
O que aconteceu no balneário de Alcochete, o que se seguiu nas conferências de imprensa insanas, o que continuou nos cuspidores selvagens no Jamor não é tudo uma má representação do Sporting, nem um caso isolado. Isto é o Sporting. Mas também pode ser o Benfica, pode ser o Porto. A tempestade perfeita que se abateu sobre Alcochete é a junção de condições climatéricas que já se vislumbram perfeitamente nos outros clubes: direcções corruptas, maquiavélicas ou amorais; directores de comunicação belicosos; soldados rasos com poderes a mais, força bruta a mais, selvajaria a mais.
Não tenho a vida facilitada quando escrevo uma crónica de amor dedicada a um clube que é suposto eu não amar, e num período em que o amor se tornou clubisticamente proscrito. Talvez o lamento que se segue seja infantil, e decerto nunca proferi nada tão hippie na vida: as pessoas que controlam os nossos clubes estão cada vez a tornar a guerra num regime oficial e o amor numa camuflagem oficiosa. É terrível. É terrível eu estar na Luz a cantar “Eu amo o Benfica” com a melodia do “Seven Nation Army” e saber que aquela declaração de amor é, nalguns sectores do estádio, um cântico de batalha.
Sou adepto de adeptos. Do Sporting tenho amigos queridos e família. Tenho o meu sogro, os meus cunhados. Tenho o sobrinho mais velho - que tanto gosto de espicaçar a cada ponto perdido. Espicaço por amor, como a tortura de cócegas que reservamos aos que nos granjeiam ternura. O Sporting a sério que imploda em favor deste Sporting a brincar. E é trajado com o verde da Esperança que vou citar aquelas que foram, praticamente, as últimas palavras conhecidas ao saudoso Jorge Perestrelo – o melhor relatador futebolístico de sempre, e um conhecido benfiquista: “Eu te amo, Sporting!”
Eu te amo, Sporting. Sem aspas na língua."
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