"Até o Aves vencer com probidade e mérito a Taça de Portugal, nenhum resultado aparentava ser minimamente cômodo para Bruno de Carvalho (BdC). Se o Sporting ganhasse, dir-se-ia que a vitória era apenas do treinador e dos jogadores martirizados provavelmente pelo ataque grupal mais cobarde e asqueroso de que há memória no futebol português. Mas ficava também a ideia de que, no caso de a derrota acontecer, as culpas e as heresias iriam inteirinhas para um presidente avinagrado e que parece alimentar-se do caos que ele próprio cria ou ajuda a criar. Mas rapidamente se percebeu que não era exatamente assim. Quem esteve no Jamor, mediu os humores nas redes sociais ou simplesmente andou na rua ou de táxi percebeu que a nação leonina está provavelmente mais dividida do que nunca e que BdC até pode ter recuperado algumas das suas ovelhas entretanto tresmalhadas, não sendo hoje totalmente claro quanto valerá eleitoralmente. Até porque já se sabe que a maioria dos sócios nem sequer participa nos sufrágios e que o poder instalado beneficia sempre da pujança das suas guardas pretorianas.
Há várias circunstâncias que ajudam a explicar estas reacções autofágicas. Desde logo os próprios merecimentos de BdC, que, mais do que o propagandeado (e hoje discutível) milagre financeiro, conseguiu sempre escolher bons treinadores (mesmo que a todos tenha feito a vida negra) e, mais do que isso, ajudou a devolver o amor-próprio e a exaltação a muitos sportinguistas. Fê-lo usando, muitas vezes, propaganda barata e meias verdades, ou nem isso, mas a fórmula ajudou em muito, sem dúvida, a encher as bancadas. E na cabeça dos seus cada vez mais seguidores, a sua truculência permanente, em contrate com a pose mais estadista de todos os que o antecederam, foi sendo relacionada com o fim de uma certa indolência leonina e com o verdadeiro leão de unhas afiadas que um dia Jorge Gonçalves já lhes tinha tentado vender de forma ilusória.
O destrambelhado discurso de vitória após a reeleição terá sido o primeiro grande momento em que alguns dos seus seguidores se questionaram se não estariam a ajudar a fabricar um monstro. Muitos desses ficaram ainda mais de pé atrás quando BdC insistiu em alterar os estatutos e em criar um regulamento disciplinar que tornam a sua prepotência ainda mais perigosa. Mas a generalidade lá acabou por contribuir para que o seu poder voltasse a ser esmagadoramente legitimado. Até porque, habilmente, BdC sabe sempre esgrimir, nos momentos certos, o infalível argumento de que, sem ele, o leão voltará a transformar-se num dócil peluche. E, perante esta ameaça, muitos dos adeptos parecem perder o pensamento crítico, como se ficassem com a consciência da realidade diminuída e aceitassem tudo sem se questionar. Não é nada, importa dizer, que seja exclusivo dos sportinguistas, nem sequer do mundo futebolístico, até porque a história política mundial está cheia de autocratas que chegaram ao poder pela via democrática e depois acabaram por confirmar as suas personalidades narcísicas e megalomaníacas, por pretenderem ser simultaneamente poderosos, temidos e adorados. Vale Azevedo ainda conseguiu perto de 40 por cento dos votos benfiquistas quando já se conhecia boa parte das suas patifarias, uma centena de fãs aceitou há dias pagar para ir almoçar, ouvir e aplaudir José Sócrates sem querer saber da Operação Marquês e os consternados venezuelanos até acabam de entronizar Nicolás Maduro.
Já se sabe que a multidão se encanta com a tolice e dificilmente escuta um bom conselho, mas nada aprisiona tanto a inteligência como aceitar passivamente as justificações. E fica claro que a alienação é mesmo o caminho que normalmente antecede a servidão quando vemos gente inteligente, instruída e honesta contentar-se, por exemplo, com a culpa dos jornais e a criminalidade dos jornalistas como único justificativo para o processo judicial Cashball. BdC até pode ter "a certeza absoluta, analítica e sintética" de que o seu braço direito está inocente, mas isso não chega enquanto não for explicado, por exemplo, de onde vieram e para que eram os 60 mil euros encontrados pela polícia no armário de André Geraldes. E em vez do despudor com que tentou convencer-nos que Patrício e outros mártires é que foram o rastilho da ignomínia em Alcochete (porque, imagine-se, deviam ter-se mantido dóceis e mudos perante membros da claque cadastrados que invadem garagens do estádio para os insultar e ameaçar) devia era explicar-nos porque demorou tanto tempo a defender com firmeza a honra da sua "família" e a retirar os apoios do clube a quem protagonizou o dia mais sinistro da história centenária do clube. A insânia começa quando se convive com pessoas que exaltam a conveniência de uma coisa e não percebem que estão a fazer exactamente o inverso. É esse o perigo que o Sporting atravessa. E é por isso que para enxotar BdC da colmeia de Alvalade vai ser preciso bem mais do que uma forte fumaça. Para deixar o presidente leonino onde Judas perdeu as botas pode vir mesmo a ser necessário um pesticida (no sentido figurado, para que não haja dúvidas nem mais vitimização).
Aves criou uma lenda
José Mota teve um mérito indiscutível e ficará para sempre ligado à história do D. Aves e da Taça de Portugal, mas devia ter dividido os louros com Lito Vidigal, decisivo na maioria das eliminatórias, designadamente no afastamento do Rio Ave em Vila do Conde. Não lhe retirava brilho e ficava-lhe bem, até por ser justo. Teve razão nas críticas aos jornais, porque mesmo levando em conta a semana louca e excepcional por que passou o Sporting, o Aves não teve verdadeiras honras de finalista e durante a maior parte dos dias deu a impressão que o Sporting ia jogar sozinho (ou contra si próprio). Mas gastou demasiado tempo nas queixas e o tom foi excessivo, retirando resplandor a um momento único e justo. O Aves fez bem os deveres e foi inteligente na estratégia, até porque tem vários jogadores de qualidade, que justificaram os seis milhões de massa salarial. Ponk, Tissone (um argentino com sangue cabo-verdiano descoberto em Janeiro na Ucrânia), Vítor Gomes, Amílton, Petrolina e o goleador Guedes (sempre internacional na formação do Sporting) têm imensa qualidade, como outros que nem são titulares. Mas esta taça serviu também para ajudar a criar uma lenda chamada Quim. Nada mais justo."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!