"Isto não é bem um Europeu, festa num país só, seleções em quarteis generais previamente adaptados, repórteres em correria em redor dos relvados de treino, adeptos aos magotes que pintam de cachecóis nacionais os aviões fretados, toda essa gente apinhada depois, copos de cerveja numa fan zone sem máscaras, dá saudade sim, discutia-se o país anfitrião, se era o certo, a tecnologia acrescentada em estádios, as regras de segurança mas só as da polícia, não contavam as das autoridades de saúde, que agora são as que mais contam neste torneio estranho de um tempo estranho, em 2021 mas ainda Euro 2020, como roupas que mantêm a etiqueta da Primavera/Verão anterior, tanta coisa adiada na vida de todos, já nos vamos habituando, mas agora também jogos de longitude incerta numa fase final, ao mesmo tempo em Sevilha e Baku, outros em Copenhaga, São Petersburgo, a Itália joga com a Turquia em Roma e não se pode dizer que a recebe, como Portugal vai ao Puskas de Budapeste defrontar a Hungria mas não joga fora, é outro Europeu, o mais estranho de que temos memória, mesmo se já pouco se estranha. E sabemos que depois se entranha, mal a bola role.
São muitas seleções, 24, lembro-me de quando eram só 8, em 1984 ou 88, só lá chegavam mesmo as melhores, uma elite, vale sempre a pena lembrar isso para reforçar o feito que era a qualificação, e o porquê de tantos craques que nunca lá foram, conseguiram-no por uma vez os nossos Chalana e Jordão, nunca o Futre, como é possível? o Futre nunca foi a um Europeu, ele e outros génios dessas dezenas de anos, Litmanen aguentou-se a jogar até aos 40 mas só agora vai ver a Finlândia num momento assim, a partir do sofá, provavelmente vacinado que já tem idade para isso, mas merecia lá estar, mesmo reformado, talvez pudesse haver sempre um jogador histórico, mais velho, um número suplementar nos plantéis, a quem fosse autorizado reviver o melhor da vida, mesmo a baixa rotação, nunca lá chegou Litmanen como nunca chegou Giggs, quantos houve ao nível de Giggs nas últimas décadas? e que jeito daria a Gales tê-lo no campo, ao menos Bale já vai para o segundo Europeu, e bem merece, os craques maiores devem estar sempre, há cinco anos chegou à porta do jogo decisivo, lembrámo-nos todos, Ronaldo e Nani travaram-no, a história era outra e outro seria o vencedor em estreia, também ninguém esquece, ficou-nos entranhado o pontapé do Eder.
Como sempre faço desde a infância, olho as escolhas, jogador a jogador, espécie de scouting caseiro que a internet elevou de nível, celebro o regresso de Benzema, o melhor jogador francês da geração que perdeu duas finais nos seis anos de ausência, como assumo o desconsolo pela lesão do miúdo húngaro Szoboslai, talento maior da geração de 2000 na Europa, mesmo que isso facilite a vida a Portugal no jogo de arranque, vou querer ver Soyuncu, o central que poderia ter saído da Guerra dos Tronos para liderar o regresso da Turquia, e perceber se Shaqiri ainda se transcende em torneios assim, Shaqiri e Xhaka, segue ao mesmo ritmo dos últimos anos a Suiça, e volta a República Checa guiada por Soucek após um ano de estouro em Inglaterra, não se nota é o talento hereditário dos Berger, Poborsky e Nedved, e a Escócia, caramba, finalmente a Escócia outra vez, aqui já com os “netos” de Souness, Strachan e Archibald, algo me diz que vou torcer por eles inconscientemente, carregado de cromos de camisola escura de 82 e 86, também Leighton, Gough, McStay, Graeme Sharp, só não torcerei mais porque não vai Gauld, bastavam uns highlits a Steve Clarke, para perceber quanto vale Gauld, ouro do pouco que ainda dá para garimpar em equipas menores do campeonato português. Nesta hora repetem-se as perguntas que nos motivam para horas seguidas em frente a televisores com fundo verde: como será a Áustria, guiada por Alaba em trânsito para Madrid? Pukki, o finlandês goleador, fará do Euro um Championship? Irão a Rússia e a Ucrânia revelar já os talentos que nascem entre postes, Trubin e Safonov, agora que Pyatov se despede e Akinfeev já nem está? E que esperar da Macedónia do Norte, nome acrescentado e equipamento mudado, que há sempre mais uma história política dentro do jogo?
A Macedónia traz Elmas e Bardhi, mas sei que o meu olhar vai sempre procurar Pandev, a marcar golos no calcio desde 2004, campeão da Europa pelo caminho com o Inter mas empurrado para uma seleção menor na desagregação da Jugoslávia, combateu o tempo e ganhou, vinga-se agora, que não há melhor palco que o de uma fase final para quem projeta um adeus glorioso. Eidur Gudjohnsen fê-lo, em 2016, na saga empática da Islândia e quando já tratava da papelada para a aposentação, destes torneios guardarei sempre os que deixaram marca nos últimos dias no escritório: Morten Olsen, Peter Shilton e Pat Jennings, El Hadary no último mundial, acima de todos Roger Milla, como se eterna juventude existisse mesmo. E talvez exista, o que não existe é justiça definitiva. Ibrahimovic ainda joga como poucos, aos 40 anos. Decidiu voltar à nacional sueca para fazer deste o Europeu do adeus. A lesão que lhe roubou o momento prova como o futebol é metáfora da vida, como ela injusto tantas vezes. A menos que haja Suécia no Mundial para o ano. E começa tudo outra vez.
PS: A selecção de sub-21 portuguesa está na final do Europeu, com uma geração incrível de talento multiplicado e sob a liderança competente e tranquila de Rui Jorge. Fez o jogo menos inspirado e ousado, foi feliz frente à Espanha, não há como negar, mas ganhou, em boa parte porque beneficiou das substituições bizarras do técnico espanhol. Escrevi aqui há umas semanas sobre o que chamei a síndrome do criativo cansado, ou a facilidade absurda com que os treinadores retiram dos jogos os futebolistas mais talentosos, como se os burocratas não se cansassem. Luis De La Fuente retirou os melhores, e os que estavam mesmo a jogar melhor, a desequilibrar a cada jogada, Bryan Gil e Brahim Díaz, com a intenção, disse depois, de “refrescar os corredores”, e no fim queixou-se de… não haver VAR. Muito do disparate do futebol está condensado nestas ações e explicações."
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