"1- Perante a falta de respostas das estruturas do vértice estratégico do desporto nacional (Ministério da Educação, Conselho Nacional do Desporto, Secretaria de Estado da Juventude e do Desporto, Instituto Português do Desporto e Juventude, Confederação do Desporto de Portugal e Comité Olímpico de Portugal) surgiu, inopinadamente, mais um grupo ad-hoc de gestação espontânea constituído por quatro Federações ditas de pavilhão (andebol, basquetebol, patinagem e voleibol). Entretanto, o Presidente do Comité Olímpico de Portugal, na sua competência, considerou ser a iniciativa das quatro Federações uma “união que é útil ao desporto português.” !!! (O Jogo, 2020-05-11). Tenho para mim que a reunião das quatro Federações não passa de uma aliança de circunstância que, independentemente da ausência do futebol (futsal), só vai animar o ambiente de luta de todos contra todos e revelar a falta de liderança e orientação estratégica do desporto nacional.
2- Era mais do que certo que a entrada de Mário Centeno de cachecol da selecção nacional no Eurogrupo, após a vitória portuguesa no europeu de 2016, para além de ridícula ia dar maus resultados. Ridícula porque própria de uma cultura do ponto de vista desportivo subdesenvolvida que caracteriza a generalidade dos políticos portugueses. Maus resultados porque Mário Centeno, devido ao seu amor platónico ao futebol, vai ficar para a história como o Ronaldo das Finanças enquanto metáfora de incompetência uma vez que para além da sua liderança ter sido considerada incapaz pelos pares do Eurogrupo, o Presidente Marcelo, há dois dias, aquando da visita à Autoeuropa, encarregou-se de lhe aplicar o carimbo vermelho da qualidade dos serviços prestados.
3- As actividades físicas e desportivas em Portugal têm um volume de 2 milhões de praticantes. São enquadrados por, certamente, mais de 60 mil dirigentes profissionais e técnicos de diversas especialidades para além de todo o enquadramento humano no domínio do apoio logístico directo. Se considerarmos que, segundo os dados mais recentes, cerca de 3% do emprego na Europa está, quer directa, quer indirectamente, relacionado com actividades físicas e desportivas significa que em Portugal o desporto gera cerca de 140 mil postos de trabalho. Acontece que a generalidade daqueles cuja fonte de rendimento depende directamente do funcionamento de ginásios e clubes encontra-se numa situação de grandes dificuldades. A pergunta é: O que é que os dirigentes políticos e desportivos estão a fazer a fim de menorizarem este problema?
4- Decorre da sétima regra de previsão do futuro que se aprende mais com o processo do que com o produto. Se em princípios de Janeiro a economia estava a funcionar com sucesso numa lógica deliberada que vinha do passado, a saúde só podia funcionar numa lógica emergente porque aquilo que se conhecia do COVID-19 era insuficiente para se tomarem decisões a prazo. A partir de meados de Fevereiro a situação começou a inverter-se. Os conhecimentos científicos relativos à pandemia e ao seu combate melhoraram, mas a economia começou a dar os primeiros sinais de recessão. Ora, perante a certeza de que a vacina só seria possível no prazo de um ano ou mais, a estratégia, a partir de Março, devia ter sido invertida passando a saúde a ser objecto de uma estratégia deliberada e a economia objecto de uma estratégia emergente. Tal mudança teria permitido, no quadro das regras de higiene social que vai ser necessário respeitar nos próximos tempos, considerar muitas actividades económicas de uma maneira diferente entre elas as actividades físicas e desportivas uma vez que a generalidade dos grupos etários envolvidos não fazem parte dos grupos de risco. O Governo tem suportado a pandemia com relativo sucesso. Mas mais importante do que o sucesso é identificarem-se todos os tempos e movimentos que nas diversas circunstâncias do processo conduziram ao resultado final. Só assim, como refere o xadrezista Garry Kasparov, por paradoxal que possa parecer, uma vitória não acaba por determinar a próxima derrota.
5- Quando assisto aos jogos de poder, de vaidade e de vendetta que caracterizam a vida política nacional vem-me à memória a cultura de competição desportiva e social que animava a sociedade na Grécia antiga. Os gregos antigos quando alguém morria não perguntavam se ele era rico ou pobre, bonito ou feio, alto ou baixo, gordo ou magro. Perguntavam, simplesmente, se o defunto tinha vivido com paixão. Hoje, dou por mim a questionar se aqueles que detêm o poder desportivo vivem, realmente, as suas vidas de serviço público com paixão ou limitam-se a gerir uma olímpica competência para: (1º) circularem entre as portas giratórias do poder; (2º) o exercício da força autocrática de que estão investidos; (3º) a exibições narcisísticas de acordo com a agenda dos seus próprios interesses. Para além das mordomias do poder, qual foi o sentido e o significado que dão às suas vidas públicas? O que é que fazem de realmente útil para a sociedade e os portugueses que os sustentam?
6- Augusto Santos Silva, ministro dos negócios estrangeiros, numa reunião no Parlamento, foi filmado num momento em que protagonizou um conflito com a sua máscara de protecção social que era azul. E numa espécie de “stand-up comedy” afirmou: "É a minha aversão ao azul". As hostes do Futebol Clube do Porto perceberam a metáfora e manifestaram imediatamente a sua má disposição. Deviam ser mais condescendentes para com o ministro na medida em que, hoje, os políticos divertem mais do que governam. Alguns há que até já só divertem.
7- Declarar o desporto um olímpico desígnio nacional é abrir as portas para transformar: o desporto num antro de esquizofrenia; os praticantes de base em fanáticos alienados; os atletas de alto rendimento em escravos submissos; as famílias em produtoras de matéria prima; os treinadores em verdugos ao estilo da idade média; os dirigentes em lanistas do circo romano; os clubes em presídios do século XXI; as políticas públicas em instrumentos fascistas de domínio social; e a sociedade numa espécie de quinta dos animais.
8- Manuel Alegre, o poeta, recomenda no portal da Federação Portuguesa de Futebol “futebol com alma” e subscreve Vinicius de Moraes: “futebol se joga com alma”. Mas a pergunta que hoje se coloca é a seguinte: Ainda existe quem se importe que o futebol já não se jogue com alma? Infelizmente, hoje, o futebol para os adeptos é tão só uma válvula de escapa que lhes permite sublimar as agruras da vida; para os futebolistas um palco do qual se servem para exibirem vaidades e conseguirem melhores contratos; para os dirigentes uma oportunidade de negócios a fim de subirem na vida; e, finalmente, para alguns políticos o último reduto que, na economia global, ainda lhes permite pensar que têm algum poder através da exploração de um nacionalismo execrável que, como referiu o jornalista Samuel Johnson, é o último refugio dos canalhas.
9- Hoje, como diria Max Weber, é o espírito capitalista que condiciona o desenvolvimento do desporto. E é no espírito capitalista que devem ser encontrados os princípios e os valores de ordem ética que, do ensino ao alto rendimento, hão de organizar o desporto do futuro. E porquê? Porque, numa perspectiva sociobiológica que, para além das ideologias, comanda a vida, o espírito capitalista representa a dimensão socioeconómica da luta pela sobrevivência inscrita no código genético da humanidade que deve ser culturalmente condicionada nos seus excessos pelo altruísmo que, segundo Edward O. Wilson, é uma das características fundamentais da condição humana. Desporto sem ética tal como capitalismo sem altruísmo não passam de selvageria social.
10- Manuel Fernandes, presidente da Federação Portuguesa de Basquetebol, na já referida reunião das quatro federações (andebol, basquetebol, patinagem e voleibol,) afirmou: “Cada cêntimo investido pelo Estado terá um retorno fantástico” (O Jogo, 2020-05-10). Mas que retorno? E para quem? A Taxa de Descarte do desporto nacional quando os jovens portugueses atingem a idade dos dezoito anos, em termos globais, segundo dados oficiais, é de mais de 86%. Esta taxa significa que, à revelia do Septuagésimo Nono Constitucional, o dinheiro que o Estado, sem qualquer sentido estratégico, despeja no desporto destina-se a um reduzidíssimo número de portugueses que, por motivos económicos e sociais ou, simplesmente, geográficos, têm possibilidades de continuar a prática desportiva para além dos 18 anos de idade. Se considerarmos que a Taxa de Descarte por modalidade desportiva chega a ultrapassar os 96% percebe-se o desastre que são as Políticas Públicas em matéria de desporto e compreende-se o silêncio olimpicamente instituído pelas entidades públicas e associativas. Por isso, na minha opinião, cada cêntimo investido pelo Estado no desporto tem um retorno que deixa muito a desejar."
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