"Se Beckett fosse vivo, teria uma conta no Instagram e outra no Linkedin. Em vez de lives com o Markl ou o Quadros, o dramaturgo passaria grande parte do tempo a denunciar usurpações da sua mais célebre máxima, uma das que mais fez e continua a fazer pelo complexo industrial de auto-ajuda e palmadinhas nas próprias costas.
Para muitos, o encontro com esta ideia - falhar melhor - foi a epifania que permitiu justificar tudo o que correra mal até então. Faz tudo parte de um plano, nem que seja o PER. Foi assim que o mantra se celebrizou, sendo hoje uma espécie de alibi partilhado por indivíduos com menos de 30 anos e startups elegíveis para o Portugal 2020.
Uns tropeçaram em Beckett. Outros, como eu, descobriram a essência de se falhar melhor numa noite fria em Highbury Park. Diz-se que só uma pequeníssima percentagem das startups evitará o falhanço. Muitos dos seus fundadores tentarão várias vezes ao longo das suas vidas, e falharão sempre, ou quase sempre. A passagem de Isaías Marques Soares ao serviço do Benfica foi, à sua maneira, e vistas bem as coisas, uma ilustração muito mais bonita desta verdade.
Comecei a perceber isto com 10 anos de idade. Já vira o Benfica perder uma final da Taça dos Campeões Europeus e sabia que estava perante uma enormidade de clube, mas a verdade é que eu tinha quase tanta experiência em noites europeias como o Tomás Tavares. Talvez por isso não soubesse exactamente o que esperar daquela 2ª mão frente ao Arsenal, numa eliminatória da Taça dos Campeões Europeus.
Começou mal, com o Arsenal mais forte a adiantar-se, mas a partir daí foi a noite de Isaías, que os livros de história do Benfica se encarregaram de eternizar como o profeta. Nunca mais nos esquecemos dele, não apenas pela perfeição dessa noite em que bisou e arrumou a eliminatória, mas por tudo o que fez enquanto esteve no Benfica, e que me devolve sempre a essa noite. Eu não os contei, mas dizem que fez 178 jogos ao serviço do Benfica. Terei visto seguramente quase todos os jogos. Fez 71 golos e, arrisco dizer, dez vezes mais remates à baliza. Tornou-se um herói pessoal depois da eliminatória contra o Arsenal e posso dizer-vos que nunca mais hesitei em apoiar toda e qualquer tentativa sua de acertar na baliza adversária, por muito absurda que parecesse, e algumas pareceram. O verdadeiro empreendedor sabe que é assim que funciona. Um dia a bola entra e nunca mais esquecem o nosso nome.
Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.
Um remate de Isaías para as imediações do estádio era ele a aquecer. Um remate 3 metros por cima da trave era uma forma de nos dar as boas vindas, pedindo que nos sentássemos e desligássemos os telemóveis. Um remate à trave era provocação bem humorada, e o remate que acertasse em cheio na baliza era golo. Guardem lá o vosso fact-checking que eu não quero saber. Por cada máxima de auto-ajuda, há uma multidão pronta a celebrar a sua mais que provável falibilidade. Eu nunca duvidei, Profeta, desde aquela noite em Highbury. E, se por acaso leres isto, ficas a saber. Talvez tenha chegado aos 71 golos na minha incursão sofrível pelo futebol amador, mas só porque aprendi a falhar melhor. Não é romantismo. É mesmo verdade. Não houve um remate desde então que não fosse inspirado por ti. O meu filho de 3 anos só sabe rematar. Não interessa em que direcção chuta, é o que digo sempre. Chuta com força e o resto há-de vir. Para a bancada, ou em cheio na baliza."
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