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quinta-feira, 28 de junho de 2018

Sempre o melhor de sempre – parte II

"O ano de 1994 viu um Mundial que, ex-aequo com todos os outros, foi o melhor Mundial de sempre. O campeonato realizou-se num país maioritariamente avesso ao futebol (versão soccer) e às extravagâncias das espiritualidades orientalizantes. É, por isto, curioso ver o quanto os Estados Unidos se contrariaram: no Verão de 94 albergaram, não apenas uma espécie de Siddhartha, mas um Siddhartha de chuteiras. Falo de Roberto Baggio, indiscutivelmente uma das figuras do Mundial norte-americano, senão mesmo “a” figura.

A minha comparação entre Baggio (jogador budista italiano) e Siddhartha (personagem budista de Herman Hesse), não se detém apenas no budismo genérico. Em ambas as figuras há uma demanda solitária e tortuosa, e mesmo o futebolista parece rumar a um esclarecimento que só os ascetas alcançam. Baggio era tão despojado de bens materiais que até conseguiu não levar uma taça para o seu país. A frase anterior pretende ser menos uma piada cruel do que uma constatação trágica – o avançado italiano estava fadado a contrariar os intentos ganhadores e materialistas dos seus colegas. Baggio afigura-se como uma espécie de entidade espiritual errática em contraste com o pragmatismo carnal da “Squadra Azzurra” e do seu seleccionador Arrigo Sacchi.
Olho para esta história como se dum trajecto pessoal rumo ao esclarecimento se tratasse. Nessa visão, o destino de Roberto Baggio faz mais sentido: era o jogador que menos merecia falhar aquele penálti decisivo, mas talvez fosse o único jogador que merecesse ter o poder de decidir um Mundial, mesmo mediante uma falha. Saiu-lhe o pontapé para a atmosfera, chuto para um estado superior, remate para o Nirvana.
Não percebo assim tanto de budismo, nem tampouco sei as regras das reincarnações. Mas se já avancei alguns budismos daquele campeonato de 1994, vou reforçá-lo nalgumas reincarnações que por lá se notaram. Por exemplo: Maradona (que levou mais escândalo do que futebol ao Mundial dos Estados Unidos) reincarnou em Saeed Al-Owairan, médio ofensivo da Arábia Saudita que marcou um dos melhores golos do torneio: o tento apontado contra a Bélgica parecia obra do 10 argentino. 
Outra reincarnação de relevo situa-se no alfa e no ómega do Mundial de 94. O evento começou com um falhanço de penálti embaraçoso e terminou exactamente da mesma maneira. Então vejamos: enquanto cantava na cerimónia de abertura, Diana Ross rematou à baliza num penálti encenado; falhou-o de forma clamorosa e humilhante. Tendo em conta que o Campeonato do Mundo encerrou do mesmo modo – com a falha clamorosa e humilhante dum penálti – é justo dizer que a Diana Ross reencarnou no corpo do Roberto Baggio. O italiano entregou a vitória ao Brasil com um erro tão inesperado que mais parecia um cantor famoso a engasgar-se na letra do tema de maior êxito.
O exemplo final não é uma reencarnação, mas antes uma encarnação literal; vai ligar o Mundial de 94 ao tempo presente. Se tivéssemos de escolher o momento visualmente mais marcante de toda a competição, seria quase indiscutível seleccionar-se a celebração do golo de Bebeto frente à Holanda. O craque brasileiro correu para a linha lateral e, sendo logo acompanhado e mimetizado pelos colegas Romário e Mazinho, fez o gesto contínuo de quem embala um bebé imaginário nos braços. Esta coreografia deveu-se ao nascimento, poucos dias antes, do filho mais novo de Bebeto (a partir daqui, o festejo tornou-se no modelo imitado por qualquer goleador recém-pai). O bebé simbólico que o avançado brasileiro levara para aquela comemoração nos Estados Unidos, estava encarnado no Brasil, na forma de criança real; um bebé chamado Matheus Oliveira. 24 anos depois, mais do que “o filho do Bebeto”, Matheus é conhecido por ser um dos poucos jogadores que não rescindiu com o Sporting Clube de Portugal durante a Primavera Brunista de 2018.
É quase indigno falar do Mundial dos Estados Unidos sem referir a Suécia, a Bulgária, a Nigéria ou a Roménia. Vou, portanto, ser quase indigno. Estou a entrar num ritmo de contenção de palavras para, na próxima semana, não ter de falar muito do Mundial de 1998 – que embora tenha sido o melhor de sempre, foi aquele cuja não-qualificação de Portugal mais me custou.
(continua)"

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