"No meu parágrafo preferido do melhor livro de sempre sobre desporto (A Sense of Where You Are), John McPhee descreve uma sessão de treino de Bill Bradley, futuro senador americano, mas na altura ainda um jovem prodígio da equipa de basquetebol da Universidade de Princeton. O recinto da Universidade fechara para obras, e a sessão realiza-se num liceu vizinho. Bradley começa o treino da maneira habitual: uma série de lançamentos em suspensão, a quatro metros do cesto. Nas seis primeiras tentativas, a bola bate na parte de trás do aro e não entra. Após uma pausa e um "ajustamento mental", converte os cinco lançamentos seguintes e desabafa com McPhee que o cesto parece uns três centímetros e meio mais baixo do que em Princeton. Depois do treino, McPhee pega num escadote e numa fita métrica e vai confirmar a suspeita: o cesto estava três centímetros abaixo da altura regulamentar.
Lembrei-me da história quando Marcos Rojo marcou, num remate de primeira com o pior pé, o golo que colocou a Argentina nos oitavos-de-final, pois foi lamentavelmente fácil imaginá-lo tão surpreendido pelo sucesso como Bill Bradley pelo fracasso. Muitos espectadores terão pelo menos colocado a hipótese de a baliza em apreço ser cinquenta metros mais larga; só faltou um incrédulo jornalista argentino entrar em campo com uma fita métrica.
O que o excerto do livro de McPhee ilustra é o grau de mecanização a que o talento atlético se submete voluntariamente antes de poder admitir variações. Os melhores lances num jogo de futebol (que são sempre os executados pelos melhores jogadores, mesmo que um jogador como Rojo consiga de vez em quando reproduzi-los) são os que nos permitem adivinhar, no mesmo gesto, a armação invisível da prática árdua a repetitiva, mas também o acto fácil e instintivo, inventado pelo céu em tempo real.
O Argentina-Nigéria foi, ao nível puramente técnico, um dos jogos mais feios do Mundial. Muito pouco do que aconteceu em campo foi consequência directa de uma intenção. Houve cantos que morreram ao primeiro poste, domínios deficientes, desmarcações abortadas, tropeções, passes para a linha final, remates para o Báltico, jogadores que tentaram jogar a bola de cabeça e a tocaram com o braço, guarda-redes que tentaram agarrar a bola com os braços e a afastaram com o peito. Mas também houve, no meio do caos, o golo mais bonito da competição até agora, que merece todas as repetições em câmara lenta e de múltiplos ângulos que se consigam encontrar.
Começou, para despacharmos o menos importante, num longo passe diagonal de Banega, um daqueles médios-centro sul-americanos que é menos um médio-centro do que um editorial exaltando solenemente a importância do médio-centrismo nesta sociedade sem valores. A bola sobrevoou a linha defensiva nigeriana e chegou às imediações de Lionel Messi, cidadão argentino e delinquente fiscal, que em pleno sprint e com o corpo torcido num ângulo de 45 graus, a consegue receber com a coxa esquerda (extinguindo-lhe a rotação), e adiantá-la com o pé esquerdo na medida certa para evitar um corte, antes de rematar com o pé direito (foi um dia contra-intuitivo em matéria de pés).
Cada um dos dois primeiros toques de Messi construiu a extensão mais confortável para o movimento seguinte. Nenhum reajustamento foi necessário; nem sequer precisou de desacelerar a passada. É raro conseguir impor a uma sequência de movimentos reactivos este tipo de fluidez, que fazem a jogada parecer a serena execução de um plano prévio: é como obrigar um problema de trigonometria a resolver-se sozinho, sem intervenção externa, só porque deixámos o lápis e o papel pousados no sítio certo.
Tornou-se banal dizer que Messi se auto-banaliza, pela frequência com que faz o mais difícil parecer fácil, e convence todas as fricções e resistências do jogo a assinar um tratado de cooperação com a sua vontade muscular. Mas é uma banalidade cuja reiteração se justifica: Messi faz isto tantas vezes, e há tanto tempo, que a banalização acaba por operar tanto nele como em nós, permitindo-lhe partir de pressupostos que noutro futebolista pareceriam uma hipertrofia de optimismo. Para ele, a realidade inteira está sempre à altura regulamentar: a confiança na sua invulnerabilidade à contingência está tão enraizada que a inspiração se reduz à capacidade para encontrar a linha recta mais próxima. Quando a categoria do que é "fácil" tem este perímetro, nem sequer é preciso imaginar o mais difícil."
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