“Apesar dos nossos anteriores feedbacks, recomendaram para [esta] época: jogos mais longos, maior intensidade e menos emoções a serem mostradas pelos jogadores.” Algo impreciso na parte dos sentimentos - referia-se às regras agora impostas aos guarda-redes, que parecem ter agora de abrir alas para que um batedor de penálti marque um golo? -, Raphaël Varane escreveu, na semana passada, um extenso texto no Twitter acerca das alterações às regras do futebol e queixou-se de como, uma vez mais, os jogadores foram pouco tidos em conta, mesmo que consultados pelas gentes que mandam no futebol britânico.
Na mira do defesa francês estaria o prolongamento das partidas, solução pela qual globalmente se decidiu optar como forma de remediar o problema do tempo útil de jogo, cada vez mais cadente na maioria dos campeonatos europeus. Como se viu no último Mundial masculino, para mostrar a quem se atira para o chão, simula dores crepitantes ou demora a bater a bola numa falta que não vale a pena perder tempo, o futebol resolveu instruir os árbitros a engordarem os tempos de compensação e contabilizarem ao segundo coisas que antes descontavam com chapas fixas, como o tempo de celebração de golos ou as substituições. É muito cedo para se concluir o que seja, mas, por enquanto, o resultado dá razão a Varane.
Na primeira jornada da I Liga em Portugal, só um dos sete encontros já disputados (faltam dois, esta segunda-feira) teve menos de 10 minutos extra na segunda parte. A exceção foi o Farense-Casa Pia, que acabou aos 90’+8. Entende-se que os anciãos do futebol que habitam lá no alto das torres do International Football Association Board (IFAB) onde as leis da modalidade se pensam, debatem e decidem, tenham optado pelo raciocínio de ‘a mão que dá, é a mão que tira’ quando pactuaram em experimentar esta medida: se o tempo perdido é depois ressarcido na compensação, talvez os futebolistas (e treinadores e pessoas que estão nos bancos de suplentes) se deixassem dos velhos truques, já gastos e usados, para o perderem quando dá mais jeito à sua equipa.
Porque mesmo sem o mencionarem diretamente, é a isso que apontam estas alterações às regras.
Tradicionalmente avesso a abrir a porta a mudanças nas suas regras, tão fiel à alma do jogo que louva proteger, o maniento futebol, se aqui tivermos ‘o futebol’ como as pessoas e suas respetivas cabeças encarregues de ditarem a base pela qual se rege a modalidade, acabou por acentuar o mal atirado para cima de quem move multidões, de quem realmente leva pessoas aos estádios. É na rifa dos jogadores que aparecerá a fatura de uma solução que até providenciar sombra está condenada a tapar o sol com a peneira. Uma mensagem, mesmo que bem intencionada e perspicaz, também demora o seu tempo a penetrar na carapaça dos hábitos.
Eventualmente, façamos figas e alinhemos as chacras, os intervenientes num jogo de futebol que perdem tempo quando lhes convém entenderiam, num mundo perfeito, que não vale a pena queimar segundos agora se os árbitros os estão a contar para mais tarde os reporem no relógio. Será neste efeito bomerangue que estas novas regras confiam. Mas, como em qualquer medida, o contexto é tudo. Imaginemos que um guarda-redes se deita na relva, simulando uma mazela, após cinco minutos em que a sua equipa foi sufocada e encostada à área, para ‘cortar’ esse ímpeto do adversário - será realmente uma compensação compensar os minutos que se perderam aí no tempo nos descontos da segunda parte, quando o fôlego e a energia estão nas reservas no corpo, a cabeça do futebolista tende a decidir pior e o caos surge sem pedir permissão?
O ato não será bem compensar, antes tentar remediar com o que é impossível ser um equivalente, por mais sentido que faça. Contabilizar integralmente o tempo que demoram as paragens médicas (para assistir um jogador), as substituições e as celebrações de golos é uma medida justa no futebol jogado onde a justiça pouco importa (quem joga pior, tem piores recursos e pouco faz por ganhar continuará, às vezes, a ganhar jogos, e também é isso que encanta). Vai engordar a duração dos jogos para gáudio de quem os vê. Embora sirva, primeiro, para acrescer o tempo que os futebolistas passam em campo.
Em junho, um relatório da FIFPro, o sindicato internacional de futebolistas, alertou como na última época, uma das “mais congestionadas” de sempre devido ao Mundial do Catar, agravou uma tendência, indicando alguns exemplos: o brasileiro Vinícius Jr. jogou, aos 22 anos, 18.876 minutos entre clube e seleção, “mais do dobro” do que Ronaldinho registou com a mesma idade; na mesma comparação, o espanhol Pedri, quando tinha 20, esteve 25% mais tempo em campo do que Xavi, o seu treinador; e Kylian Mbappé, com 24 anos, colecionou 26.952 minutos (!), que representam mais 48% do tempo que Thierry Henry teve. Mais, mais e mais, o objetivo de quem organiza competições parece ser esse.
Esta época haverá Campeonato da Europa que arrancará duas semanas após a final da Liga dos Campeões. Em 2024/25, além de um novo formato da Champions com mais equipas (36) e mais jogos (oito) para cada uma, a FIFA, querendo alargar o seu pote de direitos televisivos, patrocínios e bilhética, também vai forçar o seu Mundial de Clubes, jogado em dezembro, com 32 clubes ao invés dos atuais sete. Isto com partidas já assentes nesta tendência de facilmente durarem à volta dos 100 minutos, querendo compensar tudo enquanto descompensam os futebolistas. “Não faz sentido. Consigo imaginar o que acontecerá com equipas do fundo da tabela que perdem tempo a toda a hora. Vejo jogos que poderão ir até aos 20, 25 minutos [extra]”, criticou Kevin De Bruyne, do Manchester City.
O mal do tempo útil de jogo minguar pode ser atribuído a muitas origens. A matreirice e teatralidade das quais muito nos queixamos em Portugal têm a sua quota-parte na forma como culturalmente vivemos o futebol por cá e na banalização de tudo valer para se ganhar, que clubites e tribalismos aceitam quando o jogador é da nossa equipa, mas criticam em clima de guerrilha se virem um adversário fazer o mesmo. Mas esses ‘truques’ virão, também, do fosso que há muito é escavado entre ricos e pobres no futebol português e europeu: havendo cada vez mais dinheiro para uns e menos para os do costume, os clubes nas catacumbas da pirâmide jogam com o que podem. E o tempo, por vezes, é um valioso aliado.
Na sua crítica, De Bruyne suspeitou que daqui por “um ou dois meses” esta tendência vai mudar. O belga, portanto, também está esperançoso. Uma mudança a sério, das que o futebol por norma foge, poderia ser testar a paragem do relógio cada vez que a bola não estivesse em jogo, como o futsal o faz, quiçá reduzindo em simultâneo o tempo de cada parte (de 45’ para 40’?). De início, também não iria resolver o problema de quem propositadamente coloca um travão numa partida para benefício próprio - e eu confesso que não vejo que outras medidas haveria por experimentar -, mas, se o intuito é matar os tempos mortos, não seria melhor retirar algum do impacto real de quem força essas paragens?"
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