"Recorde-se uma das decisões mais vergonhosas da UEFA: em 1965, obrigou o Benfica a jogar a final da Taça dos Campeões Europeus em S. Siro, na casa do seu adversário, o Inter de Mrilão.
O Benfica teve, pela primeira vez na história das taças da Europa, de jogar uma final no campo do adversário.
'Il Comendattore': só de si, a expressão é sinistra.
'Il Comendatore': do latim, 'comendator', aquele que recomenda; eclesiástico ou cavaleiro de uma ordem militar a quem, antigamente, por serviços prestados, era concedido um benefício, como uma igreija, mosteiro, terras ou uma povoação.
Esclarecido, mas não descansado: continua a ser sinistro...
Em Itália, dizia-se à boca cheia: 'Moratti compra tudo... árbitros incluídos'.
Em Itália, afirmava-se na imprensa: 'Angelo Moratti não perde a possibilidade de mostrar quem manda no Inter. Foi ele que, dias antes da final contra o Benfica, explicou aos jornalistas como iria jogar a sua equipa: 'Bedin marcará Eusébio; Suarez e Corso vão controlar as movimentações de Coluna; Guarneri bloqueará Torres; Fachetti perseguirá Torres por toda a parte'.
Estas palavras foram publicadas na revista Supersport.
Um ponto por toda a parte, havia o incómodo, o desconforto: a UEFA, pela voz do presidente do Comite Organizador da Taça dos Campeões, José Crahay, anunciava, após as meias-finais, que a final se disputaria em S. Siro, a casa do Inter, campeão europeu em título. A decisão era inédita, inacreditável. Mas foi levada por diante. Em caso de empate, finalíssima em Bruxelas.
S. Siro encheu, claro! 180 milhões de liras de receita, recorde absoluto do grande estádio de Mião, qualquer coisa como 8.500 contos da época.
80000 pessoas estariam nas bancadas para assistir à segunda vitória da equipa de Moratti e Helenio Herrera na Taça dos Campeões da Europa.
'Lasciate ogni speranza, voi chi entrate', dizia Dante, no 'Inferno'.
S. Siro seria o inferno. Não havia esperança para o Benfica.
O Benfica contrariou o Inferno, no entanto.
Vítor Santos, em A Bola: 'Sobre a relva encharcada, há dez rapazes de camisola vermelha, empapada em suor, prontos para, de cabeça bem erguida, saudarem o vencedor da batalha desigual que tinham sido chamados a disputar. Falta um ao grupo. Esse, saíra meia hora antes, corpo varado pela dor. E aqueles dez homens, sujos, desgrenhados, encharcados até aos ossos, tinham alguma coisa de um pequeno exército que se cobrira de glória frente a um adversário poderoso, numericamente superior e armado até aos dentes, que, ainda por cima, fizera a guerra no seu próprio terreno e com a grata colaboração de dilectos e poderosos aliados. Alguns choram. Um tem mesmo qualquer coisa como uma convulsãro. As lágrimas rolam-lhe pela face e ele, meio cambaleante, tem de se amparar a braços amigos para não cair. Chama-se Torres e lutara como um bravo (...) Esse Benfica que a UEFA quis transformar num grupo de convictos cristãos da era moderna, a lançar Às feras famintas da grande arena de S. Siro, fora a grande sensação do jogo e dera uma 'lição de bola' ao estranho e 'irrealizado' Inter, edição H.H., com o seu futebol manhoso e sádico, marcado por aquilo que se chama em Itália de 'profundo realismo'.
Impressionante! Frente a um conjunto enrolado na sua casca, como o bicho-de-conta, o Benfica efectuara uma exibição estupenda de determinação e de autoconfiança, produzindo um futebol construtivo, profundamente atacante e sempre imbuído daquilo que se pode chamar o espírito imperecível do 'association'.
Dramático!
O Benfica foi, em S. Siro, personagem principal de um dos momentos mais dramáticos do futebol português. A três minutos do intervalo, um remate enrolado do brasileiro Jair, faz a bola fugir, em jeito de galinha assustada, por entre as mãos, por debaixo do corpo, pelo meio das pernas de Costa Pereira. Grande especialista do futebol de não perder, Herrera era o mestre dos mestres no futebol de guardar vantagens inesperadas. O Inter defendeu-se, recolheu-se, fechou-se. Todos os verbos que pudesse utilizar seriam reflexos: eram onze homens trancados sobre si próprios, auxiliados pelo lamaçal em que se transformou um relvado infame. E contra isso nada pôde a valentia lusitana.
Aos 12 minutos da segunda parte, Costa Pereira, herói de Berna, réu de Milão, não resiste a uma hérnia discal e a um traumatismo no pé direito. Não sendo ainda tempo de substituições, é Cavém quem se prepara para vestir a camisola de guarda-redes. Mas é Germano que toma, finalmente, o seu lugar, incapacitado, também ele, por um rotura muscular na coxa.
São dois infernos: o de S. Siro e das lesões.
Nenhum ser humano seria capaz de atravessar dois infernos assim.
Rodolfo Pagnini, jornalista do L'Unitá: 'Escrevemos estas linhas febris enquanto os jogadores do Inter correm em redor do rectângulo, transportando bem alto, sobre as cabeças, a Taça da Europa. No centro do terreno encharcado de chuva e de suor, distingue-se o vermelho das camisolas do Benfica. Eusébio, Germano, Coluna e os seus companheiros olham para a festa que os envolve, desconsolados, tristes. A alegria do Inter, é a sua tristeza. Uma tristeza, uma amargura, plenamente justificada. O público apercebe-se disso. E rompe num aplauso fragoroso e espontâneo. O Benfica perdeu, mas sai de campo com todas as honras. Pode levar consigo para Lisboa, as armas do nobre vencido. Como há dois anos, em Wembley, frente ao Milan, a sorte não foi sua aliada. Nesse encontro, perderam Coluna num momento em que o resultado se encontrava em 1-1. Ontem, como se não bastasse o golo de Jair, numa autêntica 'gaffe' de Costa Pereira, jogou os últimos trinta e três minutos sem o seu guarda-redes. Saído Costa Pereira, todos pensaram: o Inter tem a vitória na mão. E prepararam-se para saborear mais golos. Ao invés, a partida terminava, nesse momento, para a equipa de Milão. Porquê? Porque o Benfica, essa maravilhosa equipa, actualmente a mais forte da Europa, não quis render-se ao inelutável, o fez um apelo ao seu desmesurado orgulho, lançando-se para a frente, de cabeça erguida, indo buscar forças ao fundo do coração e da alma'.
Jaques Ferrari, um dos enviados-especiais do L'Équipe: 'Eram oitenta mil milaneses contra fez portugueses. E foi uma afronta ao futebol que o Benfica não saísse de S. Siro pelo menos com o empate, tão visível foi o medo dos italianos perante a equipa portuguesa. O Benfica fez ontem tudo quanto é humanamente possível fazer em futebol. Lutou contra a multidão, lutou contra o adversário, lutou contra a má-sorte. E foi sempre uma equipa de coragem, de decisão e lucidez, além de alardear uma superioridade técnica e um sentido de jogo que obrigou os próprios adeptos do Inter a ohs! de admiração'.!
Afonso de Melo, in O Benfica
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