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sábado, 30 de maio de 2020

“No Benfica mandava o Veiga, o Simão dava-me as chuteiras dele, que tinham os nomes dos filhos. E eu abusava das noitadas”

"À beira dos 35 anos, Hélio Roque não é um nome sonante, faz parte do grupo de jogadores que chegou cedo a um grande, mas não conseguiu afirmar o seu valor e preferiu tentar a sorte lá fora. O futebol também se faz destas histórias, que são aliás a maioria invisível. Hélio não se arrepende das opções que tomou num percurso que o levou até ao Chipre, onde conheceu a mulher e mãe dos dois filhos e passou por Angola, a terra que o viu nascer mas da qual não guarda recordações de menino. Regressou há dois anos para jogar o Campeonato de Portugal. Diz que um dia vai ser treinador, mas que ainda é cedo para pendurar as chuteiras.

Nasceu em Angola. Concretamente onde?
No Huambo. A minha família é toda angolana. A minha mãe trabalhava na Sonangol, o meu pai confesso que não sei o que fazia. Tenho uma irmã, um ano mais velha.

Veio para Portugal com que idade?
Com quatro anos.

Que recordações tem de Angola?
Não me lembro de nada.

Foi viver para onde?
Viemos para casa da minha avó, na Arrentela, depois o meu pai e a minha acabaram por comprar casa lá e ficamos por ali.

A adaptação à Arrentela e a Portugal foi tranquila?
Sim. Tenho muitas saudades daquele bairro, era muito acolhedor.

Tinha alguém na família ligado ao futebol?
Não. A bola começou na rua e um dia um colega meu perguntou-me se não queria ir treinar ao Arrentela. Tinha oito ou nove anos. Fui e gostei. O treinador também disse que queria que eu ficasse. Foi aí que começou.

O que dizia que queria ser quando fosse grande?
Pedreiro [risos]. Tinha essa pancada. Gostava muito da construção.

E torcia por que clube?
Pelo Benfica. O meu pai é ferrenho do Benfica.

O que faziam os seus pais profissionalmente em Portugal?
O meu pai é camionista e a minha mãe trabalhava no hotel Meridien.

Da escola, gostava?
Não. Não ia muito às aulas, era só futebol. A minha mãe bem me dava na cabeça, mas não havia solução.

Quem eram os seus ídolos?
O Zidane e o João Vieira Pinto.

Ficou no Arrentela até aos 14 anos. Depois vai para o Amora FC. Como e porquê?
Porque já não tinha muita motivação no Arrentela. Jogávamos sempre num campeonato mais abaixo, era juvenil de 1.º ano e ia para o 2.º ano quando tive uma divergência com o treinador. Ele estava a fazer a equipa para o ano e punha-me sempre no banco. Não gostei da situação e no final de um jogo disse-lhe: "Se continuar a pôr-me no banco, não venho mais". No jogo a seguir ele pôs-me outra vez no banco e nunca mais apareci. Entretanto, o Carlitos, que estava no Casa Pia, disse-me: "Vou treinar ao Amora, não queres vir?". Arranquei com ele, fomos lá treinar: eu, ele e o Serginho. Fizemos um treino e ficámos.

Esteve um ano apenas no Amora FC e na época seguinte foi para o Benfica. Como aconteceu?
Eu estava referenciado desde os iniciados. Houve uma altura, ainda no Arrentela, que o Benfica quis que eu fosse lá uma semana, mas a minha mãe não deixou. Disse que eu tinha de estudar. Eu também não liguei muito, porque na altura era pequeno. Nos juvenis fiz uma boa época, eles continuavam interessados e eu sabia. Entretanto, houve um jogo contra o Corroios e estavam lá os olheiros do Vitória de Guimarães também. Vieram falar comigo no final. Eu até estava virado para ir para o Vitória, mas o Benfica chegou-se logo à frente. Estava nas aulas quando o meu pai me foi buscar. Nem me disse o que era. Arrancámos, fomos para o Estádio da Luz e assinei por dois anos.
Foi a primeira vez que assinou um contrato e começou a ganhar dinheiro com o futebol?
Sim, €800.

O que fez com esse dinheiro?
A primeira vez que recebi, fui às compras e gastei tudo logo num dia.

Os 800€ de uma vez?
[risos] Sim: comprei ténis, calças, só roupa e calçado. Fui com mais um colega e foi logo tudo.

E os estudos, desistiu?
O Benfica fez um acordo com a escola, porque eu tinha treinos de manhã. O acordo era para eu ter aulas à tarde, só que muitas vezes ficava sozinho com um professor. Eu já não ligava muito à escola, ainda por cima sozinho com um professor, era uma grande seca. Larguei a escola no 10.º ano.

Deve ter notado grande diferença do Amora para o Benfica.
Sim, foi muito difícil para mim. Eu era muito franzino e, quando cheguei ao Benfica, era tudo matacões, jogadores grandes; para mim foi um choque muito grande. Nunca tinha feito ginásio, nem abdominais, e nos primeiros treinos eu estava noutro mundo. Só pensava: "O que é isto?" [risos]. Estava mesmo a pensar em desistir. O treinador era muito rígido, muito militar. Sofri muito no 1.º ano.

Mas aguentou-se.
Aguentei-me porque tinha três, quatro jogadores que me ajudaram muito. O Tiquinho e o Nuno Alves davam-me muitos conselhos, diziam para ter calma, falavam muito comigo, porque muitas vezes pensei em desistir. Ainda por cima não era opção e sentia que podia jogar, sentia que o treinador escolhia se calhar não pelo rendimento, mas por outras coisas, e eu ficava muito triste e revoltado com essas situações. Muitas vezes até chorei. Fiquei mais porque o Rui Oliveira, que era o director-geral, gostava muito de mim, foi ele que me foi buscar e deu-me muita força. Acho que lhe devo muito, porque se não estivesse lá, se calhar tinha ido embora. Depois, a mudança de treinador também ajudou.

Está a falar de quem?
Do Bastos Lopes. Ele foi uma grande força para mim. Era tipo um pai para nós, ajudava, se o jogador estivesse bem, jogava; se não estivesse, não jogava, era diferente. Ele e o João Bastos ficaram no meu coração.

Nessa altura está com 17, 18 anos e começam os namoros e as saídas à noite, certo?
[risos] Sim, começam aí. Por acaso nunca tinha saído, foi na altura do Benfica que a malta começou a desafiar-me para beber um copo e foi ali que começou o gosto.

Chegou a ter problemas por causa das noitadas.
No princípio, não. Os problemas com noitadas aconteceram mais tarde, na altura do Koeman, aí reconheço que abusava um bocadinho.

Foi multado, chamado à atenção?
Um dia, o presidente chamou-me e disse-me que tinha de parar com essa vida. Eles sabiam praticamente tudo. Um jogador pensa que não, mas o clube consegue sempre informações de todo o lado. E uma saída aqui, amanhã o clube já sabe.

Quando foi chamado pela primeira vez à equipa principal?
Nos juniores de 2.º ano fui fazer a pré-época com a equipa e ia lá treinar de vez em quando durante alguns dias. Isto com o Trapattoni.

Nunca foi praxado pelos colegas?
Praxado, não, mas havia muitas brincadeiras, então no estágio da Suíça... Os mais jovens, depois do almoço, é que tinham de ir buscar os cafés para os mais velhos. E mesmo a primeira vez em que entramos mos no balneário sénior é um choque, uma pessoa não sabe o que é que há-de fazer, há um nervosismo muito grande. Mas os jogadores são de uma humildade muito grande. Um dos jogadores com quem me dei logo bem, e que foi como um pai para mim, foi o Simão Sabrosa. Eu era júnior e ele já me dava as botas dele, que tinham o nome dos filhos dele. E eu jogava com as botas dele. 

Quando faz a sua estreia pela equipa principal do Benfica?
Em 2005, com o Koeman.

O que achou dele?
É top. Foi ele que me lançou. Era muito bom nos treinos, explicava bem.

Mas só fez quatro jogos.
Sim, na pré-época joguei muitos, mesmo a titular. No campeonato, o meu primeiro jogo foi contra o Belenenses.

Estava muito nervoso?
Por acaso, não. Porque já estava na equipa A há três meses, já tinha jogado contra o Chelsea em casa e outras grandes equipas. Fui jogar a Guimarães e joguei a titular. Como já tinha jogado, não estava muito nervoso, Embora o estádio da Luz intimide sempre, é normal, porque é gigante.

Na época seguinte foi emprestado para o Vitória de Setúbal porquê?
Foi o maior erro ter saído para Setúbal. Estava no Benfica e até estava bem, o Koeman disse-me para ficar e para não sair, mas o Setúbal foi lá várias vezes falar com o presidente e com o José Veiga. A decisão era minha. Depois de me chatearem tanto pensei: "Se eles estão a fazer tanta força é bom porque vou jogar e se calhar volto com outro andamento". Mas foi um erro ter saído, devia ter ficado, porque o Koeman também apostava muito nos jovens que trabalhavam e gostava muito de mim... Foi um erro. O Vitória de Setúbal tinha uma boa equipa, com jogadores experientes, não fazia falta se calhar ir para lá. O Hélio Sousa tinha o núcleo duro dele, o que compreendo e respeito, e não fui muitas vezes opção.

Foi viver para Setúbal?
Eles deram-me uma casa, mas eu não ficava lá. Como já estava a viver no Parque das Nações desde o 1.º ano de sénior, continuei na minha casa. Mas ia muitas vezes a casa dos pais. Alternava entre a minha casa e a casa dos pais.

É nessa fase que andava nas noitadas?
Sim, posso dizer que foi a fase da noite, mas era mais nas folgas. Quando o presidente do Benfica falou comigo, comecei a pensar de outra forma.

O que acontece quando termina essa época em Setúbal?
Voltei para o Benfica, acho que ainda tinha dois anos de contrato. Na altura, estava lá o Veiga e ele, para mim, é uma pessoa que não me diz nada, era muito de negócios, era muito difícil jogar no Benfica. O Veiga é que mandava. Na altura veio o Fernando Santos treinar o Benfica, eles já não contavam comigo e fiquei à espera. O Veiga queria pôr-me em certos clubes e não aceitei.

Que clubes?
Acho que era a Académica e mais dois que já não me lembro. Disse-lhe que não, que eu é que ia escolher o clube para onde ia, porque para mim o que fazia mais sentido era jogar. Eu não queria estar num clube só por estar. O Paços de Ferreira ligou-me, eu agradeci e disse que não. E fiquei à espera, à espera. Não era por um presidente ou um dirigente me ligar que eu iria para um clube. Eu estava à espera que um treinador me ligasse para eu sentir que ia ser opção. O Veiga ligava-me a dizer: "Estás a brincar com esta merda". Entretanto, o mister Rui Dias, do Olivais e Moscavide, ligou-me. Estava na II Liga, mas foi muito importante. Fez-me ver que ia ser opção e arranquei para lá.

Não está arrependido das opções que tomou nessa altura?
Não estou, porque não só joguei, como também cresci como homem. E essa II Liga que apanhei era top: tinha o Rio Ave, o Vitória de Guimarães, o Leixões, o Estoril, era muito forte. Foi muito bom, cresci muito. Não me arrependo.

Mas também só fica uma época no Olivais e Moscavide, depois dá o salto para o Chipre. Porquê?
Só assinei um ano de empréstimo, voltei ao Benfica e rescindi contrato. Falei com o meu empresário, o Carlos Gonçalves, e disse-lhe que estava farto de estar em Portugal, porque sentia que não apostavam nos jovens portuguesas. Pedi-lhe para me arranjar um clube fora, não interessava onde. Uma semana depois, ligou-me a dizer que tinha uma equipa do Chipre, o AEL Limassol. Eu nem conhecia, mas disse “está bem, pode ser”. Mandaram o contrato e assinei.

Assim, sem mais nem menos, sem conhecer nada?
Sim. Ainda fui à Internet e acho que não encontrei nada. Mas arranquei.

Foi sozinho?
O Tiquinho também assinou e o Joca, que jogava no FCP, também assinou. Fomos os três. Eu só conhecia o Tiquinho.

Como foi o primeiro impacto quando lá chegou?
Aterrei, apanhamos um táxi para o hotel e eu só via montanhas. Só pensava: "O que é isto, onde é que vim parar? Isto é um terceiro mundo". Depois, quando começámos a chegar a Limassol e vimos as luzes, fiquei mais descansado. É outro mundo, é uma ilha fantástica.
Como é que foi com a língua? Sabia falar inglês?
Nada, não sabia nada. O Joca falava inglês e ajudava. Mas como gostava de aprender, comecei a ouvir as pessoas a falar, a ouvir os colegas todos os dias, fui captando, acabei por começar a falar o grego, porque não tenho vergonha. Falava e eles riam-se mas iam corrigindo, ensinavam-me palavras e eu ensinava em português.

Gostou da vida no Chipre?
Sim, é uma vida de luxo. Uma ilha onde parece que estamos de férias, onde há muitos bares, praia, lojas, restaurantes, é um mundo à parte. Os primeiros três, quatro meses era uma vida louca, só noites... Mas houve um dia em que disse para mim: “Já chega, isto não é vida para mim.” Fiquei em casa a pensar na vida e aí mudei, porque já estavam a falar muito da minha vida. Os treinadores já diziam: “Esse jogador só gosta é de noite". Acho que foi aí que me deu o clique. Que se deu a viragem. Foi ainda antes de Novembro. Comecei a levar uma vida mais profissional, treinar, descansar, jantava ia para casa e já não saia mais.

Nessa altura ainda vivia sozinho?
Sim.

Esteve quatro anos no AEL Limassol. O que mais o marcou?
Eu estava no Benfica, que é um clube gigante, e fui às escuras. Mas aquilo é um clube gigante também. No primeiro treino que fiz, quando saí do balneário e subi para o campo de treinos, vi que as marcas do campo estavam cheias de adeptos. Eram milhares de pessoas dentro do mini-estádio. Aí, sim, tremeram as pernas. Fiquei parvo com tanta gente. Era fogo por todo o lado, porque eles queriam ver os novos jogadores e, na altura, éramos quase 20 jogadores novos. Nunca pensei que fosse assim e foi muito bom porque sempre gostei de jogar com adeptos, dá-me mais ânimo.

O empresário não vos deu umas luzes sobre o que iam encontrar?
O Carlos Gonçalves não explicou bem. Houve algumas confusões em termos de contratos...

Como assim?
O contrato estava assinado, mas, quando lá chegasse, tinha de assinar outra vez o contrato. Mas eles queiram que eu treinasse primeiro e depois é que iam assinar - e eu disse que não. Falei com o Carlos Gonçalves, mas ele também omitia muitas coisas... e dois dias depois rescindi com ele, porque acho que não foi sério. Tratei sozinho do meu caso. Falei com o presidente e disse-lhe que se não me trouxesse o contrato me ia embora e não treinava. Eles foram todos treinar e eu fiquei no hotel. À noite apareceu lá o presidente com o contrato para assinar. E os meus colegas continuaram a treinar sem contrato. É um risco muito grande porque, sem contrato, passadas duas semanas podem mandar-nos embora, sem mais nem menos.

Foi no Chipre que conheceu a sua mulher.
Sim, no segundo ano. Ela era jornalista cipriota e apresentava programas na televisão. Um dia, num treino, foi lá fazer uma reportagem e eu pus-lhe o olho em cima [risos]. Depois fomos de pré-época para a Grécia e ela estava lá também a fazer reportagem. Fui chamado a um programa para falar sobre o AEL, ela é que apresentou o programa. Consegui o número dela e comecei a falar com ela. 

Passado quanto tempo foram viver juntos?
Namorámos seis ou sete meses e depois ela juntou-se a mim.

Não chegou a conquistar nada pelo AEL Limassol.
Não. E no ano em que saí, eles foram campeões [risos].

E porque é que sai?
Aquilo foi uma confusão. Eu já não me dava bem com o director-desportivo porque ele era má pessoa. Difamava muito os jogadores. Na altura começou a lançar rumores. Muitas vezes ligava à comunicação social a dizer que o jogador ia sair e, pronto, começavam os rumores. Só que nesse ano, antes de sair, renovei por três anos. Entretanto, veio um treinador novo que me disse: "Comigo, vais ser vendido". Começa a pré-época e começam os rumores na imprensa a dizer que eu vou sair. Achei estranho. Todas as pré-épocas há jornalistas que vão com as equipas e eu tinha um jornalista que era meu amigo e que me avisou: "Hélio, cuidado, que eles estão a tentar pôr-te fora daqui". Era eu e outro jogador, o Freddy. O novo treinador queria tirar-nos da equipa. Na pré-época punha-me a jogar só cinco, dez minutos.

Eles não gostavam de si porquê? Por fazer noitadas, por ser refilão?
Às vezes quando não gosto das coisas se calhar falo muito. E chocava muito com as pessoas, sobretudo os directores. Quando faltava o pagamento, dois, três meses, os capitães têm de falar, então havia um choque com a direcção. Depois, no final do ano, era assim: "Temos de pagar três meses, vamos dar-te dois e deixas X". E essas confusões não são fáceis. Aquela direcção era um bocadinho mentirosa. Uma mentira aqui, outra ali, cria muito desconforto. E eu por vezes explodia. Como tinha algum moral com os adeptos e estava a jogar bem... Mas os directores provavelmente começaram a espalhar a ideia de que eu era mau carácter e os adeptos depois também começaram a assobiar. Fiz a pré-época, eles não tiveram coragem de me dizer na cara que queriam que eu saísse, até porque eu tinha renovado por três anos.

Então como vai parar ao Nea Salamis?
Faltavam dois dias para acabar as transferências, o treinador chamou-me depois de um treino, disse-me que tinha de tirar um jogador, aquelas tretas. A dois dias de acabar as inscrições. Fiquei com raiva. O presidente ligou-me e disse-me: "Hélio, os treinadores vêm e vão, tem calma. Se quiseres ficar, ficas. Podes não ser opção, mas ficas, pago-te o salário". Andei ali um dia ou dois a pensar e, entretanto, um amigo que estava na equipa do Salamina (Nea Salamis) foi a minha casa tentar convencer-me a ir jogar com eles. Mas eu estava numa equipa top e ir para uma equipa média não fazia parte dos meus planos. No dia a seguir eles jogam contra o AEL, eu fiquei de fora e eles perderam 3-1. Vi o jogo e pensei: "A equipa é mesmo fraca". Mas ele foi outra vez a minha casa e acabei por falar com o presidente que me disse: "Vais para lá e eu pago-te o salário na mesma. Empresto-te um ano". Aceitei. E foi a melhor coisa que fiz.

Porquê?
Ganhei motivação. Adorei as pessoas do clube. Pessoas verdadeiras. Passamos ali umas fases más, em termos financeiros, mas são pessoas do bem.

Entretanto, casa. Quando nasceu o primeiro filho?
A Andriana nasceu em 2009. Assisti ao parto mas no dia a seguir tive de ir logo para a pré-época, para a Polónia. Foi um choque grande.

Esteve tantos anos no Chipre, deve ter muitas histórias para contar. Não se lembra de nenhuma? 
Assim de repente, não é fácil.... Uma vez, ia jogar-se um dérbi AEL-Apollon e quando é assim a cidade pára, é uma coisa louca. No dia do jogo, saí de casa com um amigo que levei para o Chipre para viver comigo nos primeiros seis meses, mas como ainda tínhamos tempo de beber um café rápido... Estava a fazer uma inversão de marcha e não reparei bem, veio um carro e deu-me uma porrada mesmo na minha porta, fiquei virado ao contrário, no meio da estrada, que estava um pouco movimentada. Saí rapidamente do carro com o meu amigo e ficámos sem saber o que fazer. O coração a mil. O homem que me bateu veio ter comigo, começa a falar em turco, eu a olhar... O que é fiz? Peguei na chave do carro, pus na mão do homem e comecei a fugir em direcção ao campo. Eram 15 minutos sem parar. Cheguei ao estádio, estava lá o director e só lhe disse: “Bati com o carro, dei a chaves ao homem, vai lá ver”. Ele ficou doido [risos]. Ele foi lá resolver o assunto, o carro foi para a sucata e fiquei um mês sem carro porque eles só diziam: “Este gajo é louco. Ainda por cima antes de um dérbi, podia ter problemas com a polícia” [risos]. A minha sorte é que os clubes grandes, como o AEL e o Apollon, controlam tudo muito bem e não saiu nada nas notícias [risos].

Porque saiu do Chipre e foi para Angola?
Estive três anos no Salamis e gostava de estar lá. Eu já tinha muitas propostas para sair. O Petrolul da Roménia, também tinha da Polónia. Nunca quis sair. Ir para Angola não era coisa que quisesse muito, mas financeiramente falou mais alto. Estava em final de contrato no Salamina, queriam renovar e eu nunca pensei que em Angola pagassem tanto. Estavam a falar-me de valores e eu só pensava: "Estes gajos são loucos". Ia para um jogo no Salamina, estava dentro do balneário quando o vice-presidente do Progresso Sambizanga ligou. Eles já me tinham feito duas propostas que eu tinha recusado. E pergunta-me: "Quanto é que queres para vir para aqui?". Então disse-lhe um valor e ele à noite mandou-me uma mensagem a dizer: "O presidente aceitou". Eu disse aquilo, mas ao mesmo tempo não queria ir. Ele insistiu: "Vamos pagar-te um bilhete de uma semana, vens aqui para tratar dos últimos detalhes e para conheceres". Falei com o Salamina e o presidente deu-me autorização.

Foi sozinho?
Fui. E foi um choque tremendo. Saí do aeroporto para o hotel, à noite, muitas luzes, não dava para ver muita coisa. Logo nesse primeiro dia comecei a ter febre. Já tinha ouvido falar do paludismo, fiquei aflito. De manhã, abri os cortinados, era só poeira e pessoas na rua a vender. Águas paradas em todo o lado. Uma coisa surreal. Liguei à minha mulher e disse-lhe que ia embora, que não ia ficar ali. Liguei ao empresaário que me levou para lá, o Djamil Andrade, e disse-lhe para me tirar dali. Ele pediu calma, falou com o vice-presidente que foi logo ao hotel: "Tem calma, vamos ajudar-te, vamos por-te numa casa, vamos fazer tudo para te sentires confortável". Entretanto saí, fui tratar dos últimos detalhes do passaporte e do BI e estive quatro horas no trânsito, com quase 40 graus, transpirava por todo o lado [risos]. O trânsito em Luanda é surreal. Ele depois levou-me às instalações do clube e aquilo era num bairro incrível, do pior [risos].

Como assim?
O centro de estágio fica no meio de um dos piores bairros de lata de Luanda, o Sambizanga. Para ir treinar era só águas paradas, cheiro a lixo, cheiro a tudo, havia pessoas que tomavam banho naquelas águas. Depois, ele parou num sítio para almoçar lá perto, tudo cheio de moscas, nem comi quase. Cheguei ao hotel, liguei ao empresário e voltei a dizer que não queria ficar. O vice-presidente foi ao hotel à noite outra vez dizer que iam por-me numa casa boa, que ia ter motorista para me ir buscar e levar ao treino. Fui à casa do presidente, assinei contrato, eles fizeram a transferência para o Chipre. Regressei ao Chipre e levei a minha mulher e filhos para Angola.
Mas se o choque foi tão grande, se ficou tão impressionado com aquela pobreza, não teve problemas em levar a família?
Tive um choque muito grande, mas quando cheguei lá para viver, aí foi um espectáculo. Eu ia para os jogos, o clube ia buscar a minha mulher e filhos para o estádio, ao intervalo do jogo, iam ter com eles para lhes dar de comer. Tratavam-nos muito bem.

Já tinha nascido o segundo filho?
Sim, o David nasceu em 2014. Ele tinha sete meses quando foi para Angola. Foi um risco que corremos, porque havia vacinas que ele ainda não tinha levado.

Não foi um choque para a sua mulher?
Foi, porque ela sempre viveu em boas condições. Chegou lá e viu pessoas na rua a vender, mães com dois filhos às costas a vender, com águas paradas, muita pobreza. Mas a vida para nós era tranquila. Nos três anos em que lá estive, se vi um ou dois assaltos foi muito. As notícias só falam das coisas más de lá. Mas nunca me senti inseguro, até porque todos os apartamentos e casas têm seguranças.

Só esteve um ano no Progresso Sambizanga.
Eu assinei por um ano e meio mas só fiz meio ano.

Porquê?
O Benfica de Luanda, que era uma equipa candidata ao título, fez-me uma proposta, tive de negociar com o clube, porque eles não queriam que eu saísse. Mas, como era um clube melhor, jogava a Liga dos Campeões africanos... Eles têm bom coração, não cortam as pernas. Pagaram a transferência e eu mudei-me para o Benfica de Luanda. Joguei a Liga dos Campeões.

Fica duas épocas no Benfica de Luanda e a seguir foi para o Recreativo de Libolo. Como e porquê? 
Estive dois anos no Benfica de Luanda. O Recreativo do Libolo é a equipa campeã em Angola e o director desportivo, Bruno Vicente, é como se fosse um "irmão", esteve comigo no AEL, com o Mariano Barreto, e na altura era o gajo das análises estatísticas. O Bruno vai para o Libolo com o Mariano Barreto que entretanto sai e ele fica como director-desportivo. E formou equipas campeãs. Era muito bom director-desportivo, muito bom mesmo. Ele estava sempre a dizer-me: "Tens de vir para aqui". Fazia-me propostas mas eu nunca aceitava. No último ano de Angola disse-lhe: "Vou jogar para a tua equipa este ano".

Porque entretanto também acabava contrato com o Benfica de Luanda.
Sim, acabava contrato com o Benfica de Luanda que estava a passar uma fase má em termos financeiros. Pagaram-me tudo, não tenho razão de queixa, mas sei que ia passar uma fase má. Nesse ano em que saio, acabou o clube. Deviam muito dinheiro ao presidente, muitas confusões. O presidente largou aquilo e acabou. Nessa altura fui para o Libolo. Quando estava lá o Bruno parecia um clube da primeira Liga, tinha tudo.

Mas só lá ficou uma época e volta ao Chipre. Porquê?
Já estava na altura. O Libolo era em Calulo, uma cidade pequena, não dava para levar a família, tive de ir sozinho. Para ir a Luanda eram seis horas de autocarro. Chegou uma fase em que já não dava. A minha mulher e os meus filhos já estavam no Chipre. Duas semanas antes de viajarmos para Angola, a minha filha começou a chorar e a dizer que não queria: "Angola, não". Estava traumatizada não sei com o quê. Não queria, não queria e eu já tinha pago até cinco mil dólares para ela entrar numa escola privada, mas decidimos que então eles ficavam e eu ia. Também não queria levar uma criança traumatizada para Angola.

Chegou a perceber porque é que ela dizia que não queria voltar a Angola?
Não sei, até hoje não percebo.

Deixar a família para trás foi complicado?
Claro. O crescimento dos miúdos é o mais importante. Eu sentia isso quando ia uma semana a casa. Chegar e ver o meu filho que tinha dois anos a ficar a olhar para mim com ar espantado…“É o papá?” Ele parecia que nem acreditava. Vinha a correr, agarrava-o no meu colo e ele a tocar-me na cara a ver que era mesmo eu. De manhã, quando acordava, ia ver se eu ainda lá estava. “O papá está aí? O papá está aí?”. Foram coisas que me tocaram. Por exemplo, eu ia à casa de banho e ele começava a chorar porque pensava que já me tinha ido embora. Isso marcou-me muito.

Aguentou a época toda no Libolo?
Não. Não faltavam muitos jogos para terminar quando falei com o Bruno. Já tinha uma proposta do Chipre e queria voltar. O Bruno também ia embora do Libolo, praticamente todos os jogadores já estavam a começar a sair, tínhamos Liga dos Campeões na altura e ele só dizia: "Eh pá façam a Liga dos Campeões para acabar em grande e depois eu deixo-vos sair". Acabámos a Liga dos Campeões e deixou-nos ir.

E voltou para o Nea Salamis.
Sim.

Mas quase não jogou. Porquê?
Em Angola as viagens eram demais. Seis horas de viagem para chegar a um sítio, treinar, jogar, voltar para outra viagem de seis horas... Como tinha Liga dos Campeões, chegávamos a Calulo e tínhamos de apanhar outra vez o autocarro para baixo e depois viajar de avião...Rebentou comigo em termos físicos. Doía-me o corpo todo, tinha dores nas pernas que nunca tinha tido. Voltei para o Salamis numa fase em que estava cansado, apanhei a pré-época mas o desgaste era muito grande e, quando chegou a janeiro, falei com o presidente e disse-lhe que tinha de tirar quatro meses de férias para recuperar. E pronto fiquei quatro meses em casa. Entretanto, um colega meu ligou-me: "Vem para aqui para Portugal". E lá voltei.

Era o que queria ou nem por isso?
Por caso, quando vim de férias nem vinha muito a pensar nisso, mas quando cheguei cá e comecei a treinar... A minha mulher, entretanto, arranjou um trabalho em Portugal, na Majorel Solution Trainer e pronto, ficámos.

Foram viver para onde quando vieram para Portugal?
Para a Quinta do Conde.

Que tal foi jogar no Campeonato de Portugal, no Olímpico do Montijo?
Foi top. Quando saí de Portugal havia a III divisão e não tinha bem a noção, não estava à espera de um campeonato assim, é muito competitivo. Adorei.

A família adaptou-se bem a Portugal?
Sim. A minha filha então ficou maluca com a escola.

Entre vocês falam em que língua?
É um misto, é o que sai. Às vezes estou a falar ao telefone com a minha mulher e os meus colegas dizem: "Este gajo é maluco, fala 10 línguas ao mesmo tempo". Pode ser grego, inglês, português, é tudo ao mesmo tempo. Os meus filhos falam as três línguas também. Eu por exemplo falo com a minha filha em português, a minha mulher fala em grego. Ela agora também já fala tudo em português, o meu filho até aos três anos só falava grego. Quando voltei, comecei a falar português com ele, devagarinho, ele entrou para a escola e agora já fala bem português.

Entretanto, além de jogar, também já começou a dar treino.
Explique lá isso. Estou a tirar o curso de treinador também. O Mário Bicho deixou de jogar no Pinhalnovense e começou a carreira de treinador, ia assumir os juniores no Montijo, e propôs-me ser adjunto dele. Foi uma experiência única. Não é fácil ser treinador, é muito difícil.

É mais difícil do que ser jogador?
É muito difícil, não estava à espera.

O que é mais difícil para si?
A comunicação. Porque estar num balneário como jogador... eu estou sempre na brincadeira. Agora ser treinador, entrar dentro do balneário, ter ali vinte e tal jogadores à frente... não é fácil. Às vezes, queres dizer uma coisa e a palavra não vem... Muita gente pensa que ser treinador é fácil, mas não é. É mais fácil ser jogador do que ser treinador.

Quer mesmo ser treinador no pós-carreira de futebolista?
Sim. Concretizei o meu primeiro sonho que era ser jogador, agora quero ser treinador. Desde os meus 21 anos que gosto de analisar, sempre tive esse bichinho. Sou do tempo do Championship Manager, que era que um jogo de treinadores, já jogava esse com 15 anos e às vezes estava a ver jogos e dizia aos meus colegas: "O treinador vai fazer isto, isto e isto". E eles "ah..." e pimba ele fazia. E eles: "Fogo, como é que tu sabes?". Acho que vou conseguir.

Vai continuar a ser treinador na próxima época?
Eu ainda sou jogador. Sinto-me bem e quero continuar a jogar. Tenho tudo acertado para ir para o Oriental. Vamos lá a ver.

Onde é que ganhou mais dinheiro?
No Benfica ganhei bem, mas foi em Angola onde ganhei mais.

Investiu onde? Meteu-se em algum negócio?
Não investi assim em grandes coisas, ainda estou a pensar, mas vou investir, sim. Se calhar numa loja de roupa.

Tem ou teve alguma alcunha?
Quando era miúdo, era o Éladas. Quando jogava no Arrentela chamavam-me muitas vezes isso, mas não sei porquê, se calhar vem de Hélio.

É supersticioso?
Não. A única coisa que faço é o sinal da cruz, o normal da entrada em campo, e beijar o sítio do anel. 

Tem tatuagens?
Tenho cinco. A primeira que fiz foi o nome da minha mãe e da minha avó. Tenho o nome da minha mulher e dos meus filhos. E também tenho a data do meu casamento no meu pescoço.

Pensa fazer mais?
Pensava, agora nem tanto. Quero seguir como treinador e por isso tenho que pensar bem.

Alguma vez teve alguma lesão mais grave, mais complicada?
A única lesão que tive foi no adutor, a mais grave.

Esteve parado quanto tempo?
Três meses. Foi quando estive no AEL. Mas de resto não tive mais nada de especial.

Qual foi a maior extravagância que fez na vida?
Extravagância... Foi uma ida a Roma com a minha mulher. Estávamos em Chipre e ela viu uma viagem que ficava muito em conta para Roma. Eu até não sou de viajar muito, mas arrancámos e fomos para Roma. E disse-lhe: "Olha vamos chegar lá e vamos com calma, ver as coisas primeiro e depois compramos", mas aquilo descambou. No primeiro dia gastámos muito dinheiro.

Tem ideia de quanto?
Acho que só no primeiro dia gastamos uns três ou cinco mil euros. Em roupa. Foi uma loucura [risos]. Foi uma coisa que não sei explicar. Já viajei por muito lado, mas não para ir de férias, e em Roma é tudo grandes lojas Dolce & Gabbana, Armani, Versace... Perdemos a cabeça. Mas foi uma grande viagem, fui ao Vaticano, vi o Papa. Foi top.

Qual foi o melhor carro que teve?
Mercedes Sport Coupé. Mas já o vendi.

Tem algum hóbi?
Só se for jogar Playstation, o FIFA e o Fortnite.

Qual foi a maior alegria e a maior frustração no futebol?
A maior alegria foi quando ganhei a Supertaça com o Benfica. Frustração... acho que não tenho nenhuma. 

Nem o facto de nunca ter ido à selecção?
Não, por acaso não. Não é frustração. Fui aos sub-20, fui a Toulon.

Qual foi o melhor jogador contra quem jogou?
Ibrahimovic. Joguei contra aquela equipa da Juventus que era o Ibrahimovic, o Del Piero...

O maior rival?
O maior rival é o Sporting. Nunca ganhei ao Sporting [risos]. De jogadores, o Makélélé era um adversário muito forte.

Qual o clube de sonho onde gostava de ter jogado?
No Barcelona.

Não tem nenhuma história divertida para finalizar a entrevista?
A minha memória é péssima, mas lembro-me que uma vez o Mariano Barreto, que chegou a treinar o AEL Limassol, multou-me, se não me engano, porque era para lá estar a 29 de dezembro e eu só cheguei a 2 de Janeiro [risos]. Só que em vez de tirar o dinheiro da multa do ordenado, tive de pagar um jantar a todo o plantel. Quando vi que estavam todos só a pedir pratos caros, vinho e sobremesas, nem jantei [risos]. Foi quase 1000€ a conta."

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