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quinta-feira, 5 de março de 2020

O sinal do Kroos

"Benza-o deus, que aquele passe para Vinícius levava bênção. Toni Kroos é o melhor jogador discreto do mundo. Encontra espaços como Pjanic, sai da pressão como De Jong, recebe orientado como Bernardo Silva. Só é menos exuberante, dispensa o supérfluo, reduz o jogo à essência em cada lance, cabeça alemã em técnica latina. É 6, 8 e 10 ao mesmo tempo ou consoante as necessidades. E põe a bola onde quer. Sergio Ramos, por exemplo, deve-lhe muitos dos golos que o farão lenda. Kroos é o médio mais fiável da última década, sobretudo desde que Xavi passou a apagar bem mais de trinta velas. Craque no melhor Bayern de Heynckes, com lugar cativo no Real das Champions seguidas, campeão do mundo fundamental na Mannschaft de 2014, merecia maior reconhecimento. Por algo semelhante, mas sem título mundial, Modric foi Bola de Ouro.
Há jogadores que jogam o jogo deles, outros acrescentam ao da equipa e outros ainda conseguem explicar aos colegas por onde seguir. Isto fez Kroos a Vinícius no lance que abriu caminho para o êxito do Real Madrid sobre o Barcelona. Mérito também do realizador de televisão, que não só registou como sublinhou a aula instantânea. Naquele momento, o miúdo brasileiro, todo ele intuição e potência, sabia para onde queria ir mas já desesperava. Tinha tentado, uma vez e mais outra, e aparecia sempre Semedo, ou Piqué em esforço, a barrar-lhe o caminho. Naquele lance, o português saiu a pressionar e Braithwaite, recém-chegado e recém-entrado, ainda procurava entender a missão defensiva. Kroos percebeu tudo, e depressa, que é o que distingue os eleitos. Vinícius, nos seus 19 anos, ainda vacilou, o alemão não. E fez-lhe o sinal ao levantar o braço esquerdo: vai por ali. Kroos ajudou a fazer de Júnior um Vinícius sénior, que decidiu o jogo e pode ter arrancado para a grande carreira que se lhe adivinha desde os dentes de leite no Flamengo.
Já vi Jorginho fazer parecido, no Nápoles e no Chelsea, e por isso adoro Jorginho. Como adoro Gundogan, talvez o mais subvalorizado dos craques do City, génio do passe que faz fluir jogo pelo caminho certo como nenhum outro. Encontrar o melhor espaço, tomar a decisão na hora certa, executar a preceito. É a trilogia dos craques. Busquets fá-lo quase sempre, por isso toca de perto o reduto das divindades. Em Portugal, ninguém faz como Taarabt, podendo dividir-se os adeptos entre os que já o perceberam e os que precisam de entender melhor o jogo. Outro exemplo próximo e menos valorizado do que sempre mereceu é João Moutinho. Se Kroos tem sido o melhor jogador discreto do mundo, Moutinho foi, de longe, o melhor português nos últimos muitos anos. Rúben Neves, mais exuberante, sobretudo naquela admirável meia distância, há-de lucrar bastante de ter ao lado um jogador que vê sempre mais campo e toda a gente que nele se movimenta, tanto com bola como sem ela.
Xavi foi o melhor de todos os que vi dentro do género. Quando se adivinhavam duas soluções de passe, ele encontrava uma terceira, e melhor. Quando parecia ir ser surpreendido por alguém surgido do ângulo cego, como que o pressentia e resolvia fácil. E tocava de primeira, rodava para sair da pressão ou deslizava em drible, como se pudesse ter estudado antes o que se recomendava fazer na hora. Poucas coisas me encantam hoje no futebol como a inteligência em campo. Cresci com a imagem de vibração dos craques após um golo, como Tardelli na final de 82, depois na vénia aos ídolos maiores, como aquele Maradona a gritar ao mundo que era dele aquele último golo à Grécia em 94. Hoje, na mesma moldura de momentos inesquecíveis como esses, penduro também em lugar de destaque o sinal do Kross.

Nota coletiva: Silas e os outros Saúdo os treinadores que falam do jogo em si, felizmente cada vez mais em Portugal, e mais ainda os que o fazem com elegância e seriedade intelectual mesmo nas horas mais difíceis. Num ambiente de loucura, eles têm sido dos mais responsáveis e contidos. Podia citar Bruno Lage, Carlos Carvalhal, José Gomes, Julio Velazquez, Vítor Oliveira Nuno Manta, mas hoje quero saudar Silas, em particular. Correu-lhe quase tudo mal, também com responsabilidades próprias, mas num contexto que seria de dificuldade até para Klopp ou Guardiola, mas nunca foi deselegante ou grosseiro. E nunca deixou de dar a cara, assumindo até ao fim a quota parte do insucesso. Fico a torcer para que tire as melhores ilações desta experiência e volte mais forte e competente. O futebol há-de precisar do treinador Silas, mas precisa mais ainda de quem se comporta como ele.

Nota individual: Billy Gilmour nome de guitarrista, foi música no meio campo do Chelsea, na vitória frente ao Liverpool para a taça. Precisamente isso: frente à equipa que reina na pressão e na aceleração, um escocês pequenino (1.66m), de 18 anos, mostrou que não é só no dicionário que o talento vem antes do tamanho e que, mais que a experiência, conta a competência. Encheu o campo de recepções orientadas, com definição no tempo certo de cada passe, simulações que iludiam os adversários mais corpulentos, mas também, quando teve que ser, em carrinhos e até duelos aéreos (pelo menos atrapalhava). E ainda fez aquele túnel a Fabinho, que é bem o resumo do que jogadores como ele podem acrescentar ao jogo. Há uns quantos jogadores como Gilmour em Portugal, esperam apenas um Lampard que os lance. Wish you were here, poderia tocar o outro Gilmour."

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