"Recebo do Brasil, de amigos meus que por lá deixei, pelos dois anos que lá vivi e pelos vinte e tantos que assiduamente o frequentei – recebo do Brasil notícias de amigos meus, irmanados na mesma admiração incontida pelo (meu amigo também) Jorge Jesus, hoje treinador do Flamengo do Rio de Janeiro. Fui seu adjunto, no Sport Lisboa e Benfica, durante 13 meses; com ele, conversei, sem contar o tempo, acompanhado pelo meu amigo-irmão Homero Serpa e, depois, quando Deus chamou o Homero à sua presença, saudosos da companhia de um ser humano de referência. O Jorge Jesus, como a sua vida copiosamente o assinala, é uma pessoa de uma bondade instintiva. Não lhe faltam críticos mordazes, pelo seu português canhestro, que não prima pela beleza formal da frase, mas ninguém o pode acusar de uma deslealdade, designadamente em relação a um familiar e amigo. O culto que mostra, pelos seus pais, chega a ser comovedor. Quando escrevi o meu livro Crítica da Razão Desportiva, em 2012, a dedicatória, ofereci-a ao Jorge Jesus: “No tumulto da feira de vaidades, que é o futebol, encontrei um homem honesto, sincero e leal para com a honestidade, a sinceridade e a lealdade alheias. E,. sobre o mais, encontrei um treinador de futebol que ressuma e irradia humildade, pois que, sendo um Mestre na sua profissão, é capaz de ultrapassar legítimos egoísmos e preconceitos e escutar e conviver e liderar o trabalho interdisciplinar que hoje distingue o departamento de futebol do Sport Lisboa e Benfica. Porque sou um dos seus adjuntos e portanto um dos seus admiradores e amigos, aqui deixo o meu pobre e sincero preito”. Escrito há sete anos, esta dedicatória continua actual: porque o Jorge Jesus é um Mestre, como treinador de futebol, como pode provar-se com larga cópia de exemplos; porque é o homem com a rara bondade que sempre lhe conheci.
A nossa tão duradoura e continuada amizade recíproca não me cega a uma crítica imparcial, mas julgo-me habilitado (e digo isto, com a necessária autocrítica, ou seja, com a presença constante dos meus limites) a completar, sem chocantes lacunas, o que dele se diz e convictamente se afirma. E volto ao meu livro Crítica da Razão Desportiva (sou autor de 50 livros e opúsculos, sobre o desporto e a motricidade humana): “Quando o Jorge Jesus passa, nos estádios, ou noutros lugares públicos, sócios e simpatizantes do Benfica (e até muitos dos amantes do futebol) erguem-se em borborinho respeitoso. O Luís Miguel Pereira, da SportTV e um erudito no que ao futebol diz respeito, cintilante de chiste e de satisfação (é mesmo benfiquista) já me disse: “O Jorge Jesus, não há dúvidas, faz milagres” (…). Porque tem fundamentos científicos do futebol, que os seus colegas de profissão não têm? Nesse aspecto, julgo que não sabe mais do que os outros. Mas todos os grandes treinadores desportivos que conheci não se distinguiam pela sua epistemologia crítica, em relação às modalidades em que trabalhavam (…). Ora, para mim, a síntese dos vários saberes, que convergem na prática do futebol, só a podem fazer os que sabem o que é o futebol, como actividade humana porque, em qualquer actividade humana tudo está em tudo. Enfim, o futebol é vida e, porque a cultura é a aliança do saber e da vida, necessário se torna viver o futebol, para que alguém possa imbuir-se de uma cultura do futebol” (pp. 71/72). E viver o futebol e senti-lo e amá-lo – ninguém, mais do que o Jorge Jesus, salvo melhor opinião, o faz. E, porque só se sabe aquilo que se vive, o Jorge Jesus sabe muito (muitíssimo) de futebol e está a fazer o milagre (para os olhos de quem sabe ver) de transformar onze jogadores, excepcionais do ponto de vista técnico mas abúlicos, desunidos, descrentes, numa equipa de força e convicção inabaláveis, de irresistível vontade, que não teme cotejo com qualquer equipa de futebol, brasileira ou não - uma equipa em que as qualidades competitivas significam, antes do mais, competência e honestidade profissional.
Maurice Blondel, na sua principal obra, que tenho em tradução castelhana e eu ouso traduzir, assinala: “Nunca se resolve qualquer problema da vida, sem vivê-lo. E uma teoria e um discurso, com os verdadeiros padrões da eloquência, nunca dispensam a experiência e a prática. A ciência sublinha que a prática não pode nunca dispensar-se”. A própria filosofia só é fiável, quando teoriza, em trabalho interdisciplinar com a prática, ou seja, em poucas palavras: partindo da prática. O erro de alguns estudiosos do futebol situa-se na convicção que é possível “saber” teorizando tão-só. Como desde criança tenho vivido muito próximo do futebol e escutado, com atenção e respeito, alguns dos seus principais intérpretes portugueses (e brasileiros e espanhóis); porque fui dirigente, durante quase trinta anos, de um clube de futebol (de 1964 a 1992) – bem cedo senti a necessidade de enxertar, na minha visão de espectador e de estudioso, as reflexões de jogadores e treinadores de futebol, quero eu dizer: dos “práticos” que me acolheram… “para aprender comigo” (dizem eles, por generosa simpatia), para aprender com eles (digo eu, porque é justo e verdadeiro dizê-lo, sem reticências, ou rodeios). No meu périplo, por vários treinadores de futebol, julgo não tombar em erro grave, ao adiantar que foi de “J.J.” que mais ensinamentos colhi. E porquê? Porque sabia mais do que os seus colegas de ofício? Francamente, não sei se sabia mais, se sabia menos, mas o que sabe é de um modo diferente que o sabe e não tem medo de parecer diferente e de manifestar, com frontalidade, que não aceita o nivelamento universal de um certo fraseado que alguns comentadores e jornalistas, por via de regra, utilizam. Ele é ele e a sua circunstância! Para projectos semelhantes, “J.J.” não carreava os mesmos materiais de construção. Pela excessiva confiança no que tem? Pela certeza, que a prática lhe dava, que… quem não pratica não sabe! Foi com Jorge Jesus que mais aprendi? Aprendi isto, antes de tudo: a prática é o critério da verdade! E reforcei a minha crença, nas eternas palavras de Cristo: “Pelos seus frutos os conhecereis”.
Até aqui, neste artigo, nada mais fiz do que salientar as qualidades de Jorge Jesus, um treinador de futebol pouco votado à reflexão especulativa, mas de uma invulgar competência porque radica a sua profissão numa prática que é, afinal, um obsessivo amor pelo futebol. Tem defeitos? “Errare humanum est”. Mas da síntese, entre as muitas qualidades que tem e um ou outro defeito que não pode deixar de ter, nasce um treinador de futebol que faz maravilhas com a sem vaidade de quem pratica banalidades. É um inovador, assim o afiançam os seus jogadores. E Tostão antigo e extraordinário jogador de futebol (hoje, médico oftalmologista e comentador televisivo) observa: “O Flamengo tem um sistema tático mais ousado do que o das grandes equipas europeias. Jorge Jesus é um treinador que gosta de correr riscos”. E adita o jornalista Plínio Fraga, na revista do Expresso, de 2019/10/19: “Tostão acredita que a principal característica do futebol moderno é a marcação no campo do adversário, para a recuperação da bola sem falta. Jogaram assim grandes equipas do passado, como a selecção holandesa de 1974 e jogam assim hoje o Manchester City e o Liverpool”. O meu amigo e prestigiado jornalista brasileiro, Juca Kfouri, como um crente não teme dizer: “Eu corto o braço, se o Flamengo não for heptacampeão brasileiro”. Um dia, se bem me lembro, Jorge Jesus obtemperou a uma insistente pergunta minha: “Não sente mesmo a necessidade de ler um romance de grande beleza e fascínio? Como o Eça, ou o Saramago, por exemplo?”. Ele suspirou, como se se preparasse para uma longa exortação e afirmou: “Eu não leio livros, mas leio, constantemente, o corpo dos meus jogadores e o dos jogadores adversários. E leio ainda as suas movimentações tácticas”. E sorridente rematou: “Como vê, passo a vida a ler… não nos livros, mas no comportamento de pessoas que são jogadores de futebol”. Jorge Jesus, com 66 anos de idade – um dos maiores treinadores do mundo, não tenham dúvidas. Ocorre-me o celebérrimo pensamento de Hegel: “A ave de Minerva só levanta voo ao entardecer”."
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