"Poderemos sempre apresentar e discutir o desporto como uma actividade ligada a valores. Poderemos sempre afirmar que o desporto é uma escola de virtudes e que ele contribui para a formação do ser humano e para a sua transcendência. A utopia poderá e deverá estar sempre presente no desporto mas temos de encarar a realidade presente no mesmo. Que o desporto foi invadido pela mercantilização, já não temos dúvidas. Que a expectativa de uma ética universal é uma aspiração do desporto que não ocorre em outras áreas, como nos diz Andy Miah (1), também já não nos deixa dúvidas. Mas quando essa ética é contaminada pelos resultados do espectáculo (a todos os níveis) e pelo dinheiro o desporto muda de figura.
Com o caso Semenya assistimos ao princípio do fim de um mito do desporto: o da igualdade de oportunidades dos desportistas.
De facto, e já o salientámos aqui, o espaço onde desportista desenvolve as suas actividades assim como as normas que regem as mesmas são comuns. E iguais! Mas este mito, o mito da igualdade competitiva, ao criar entrenós uma crença fez com que pudéssemos resolver as nossas próprias contradições: passámos a justificar o «real» pelo «desejável». Para dar razão ao mito foram ignoradas intencionalmente as desigualdades de condições individuais genéticas, anatómicas, fisiológicas ou psíquicas dos desportistas, foram descartadas as diferentes condições de treino (desde metodológicas a logísticas, desde os recursos humanos até aos suportes económicos) e até olvidadas díspares condições de participação no exacto momento.
Vamos aos factos!
Facto um - O organismo de Caster Semenya, a sul-africana duas vezes campeã olímpica nos 800 metros, produz naturalmente testosterona acima do normal para uma mulher, o que lhe dá uma vantagem competitiva em relação às suas adversárias.
Facto dois – A International Association of Athletics Federations (IAAF) decidiu que todas as atletas com uma situação hormonal idêntica teriam de se submeter a um tratamento médico para baixarem os níveis de testosterona a fim de poderem competir.
Facto três – Semenya, queixando-se de descriminação, recorreu ao Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) vendo a sua pretensão ser rejeitada.
Facto quatro – A IAAF comunicou que “em qualquer caso, é direito da atleta decidir (em consulta com sua equipa médica) se deve ou não prosseguir com qualquer avaliação e/ou tratamento. Se ela decidir não fazê-lo, ela não terá o direito de competir na classificação feminina de qualquer Evento Restrito numa Competição Internacional. (vejam-se as cláusulas 2.5 e 2.6 dos Regulamentos). No entanto, ela ainda teria o direito de competir:
1 - na classificação feminina:
a) em qualquer competição que não seja uma Competição Internacional: em qualquer caso, sem restrição; e
b) em Competições Internacionais: em qualquer disciplina que não seja evento de pista entre 400 metros e uma milha; ou
2 - na classificação masculina: em qualquer competição em qualquer nível, em qualquer disciplina, sem restrição; ou
3 - em qualquer classificação 'intersex' (ou similar) que o organizador do evento possa oferecer em qualquer competição em qualquer nível, em qualquer disciplina, sem restrição.”
Facto 5 – O Presidente da The World Medical Association, Dr. Leonid Eidelman, respondendo a uma solicitação da South African Medical Association afirma: “Temos fortes reservas quanto à validade ética desses regulamentos. Eles são baseados em evidências fracas de um único estudo, o qual está a ser amplamente debatido pela comunidade científica...” E ainda acrescenta: “Em geral, é considerado antiético pelos médicos prescreverem tratamento para testosterona endógena excessiva se a condição não for reconhecida como patológica.”
Assim, para além de nos parecer que existe uma discriminação em relação ao género, parece-nos também haver uma clara violação do respeito pela dignidade da pessoa humana, dignidade essa plasmada na Carta Olímpica. Parece-nos também haver um forte agravo em relação ao direito à livre participação no desporto – também contemplada na Carta Olímpica. O já referido Andy Miah, conferencista em Mídia, Bioética e Cibercultura na Universidade de Paisley e professor de Ética na Ciência e Medicina na Universidade de Glasgow, diz-nos que “o argumento a respeito dos danos minando a natureza do desporto afirma que algumas formas de melhora de desempenho não são éticas porque negam uma característica essencial ou inerente do desporto que lhe confere valor, a naturalidade.” Aqui está-se a incorrer precisamente no retirar ao desporto essa naturalidade. E o mesmo autor confirma que “seria injusto punir um indivíduo por algo que ele não tem culpa. Da mesma maneira que não teria sentido desqualificar um atleta naturalmente dotado da competição.” Nada mais esclarecedor!
A baixa frequência cardíaca em repouso de Miguel Induráin nunca foi obstáculo à sua participação na Vuelta, no Tour ou no Giro. A elevada potência aeróbica de Carlos Lopes nunca foi impeditiva para participar em Jogos Olímpicos ou em Mundiais de corta-mato. Yao Ming, com 2,29 m de altura, sempre participou nos jogos da NBA. Será que Kyle Korver, um californiano branco de olhos azuis (A Bola, 10.04.2019, p. 32), será o próximo a ser impedido de actuar na NBA porque na mesma militam 75% de jogadores negros?
Por que motivo penalizar Semenya?
Quando o próprio Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas está contra esta deliberação da IAAF, que conclusão poderemos tirar sobre os dirigentes desportivos que assumiram esta posição?
Recorrendo a Philippe Liotard (2), sociólogo na Universidade Claude Bernard em Lyon e membro do Centro de Pesquisa e Inovação sobre o Desporto, “a prática e o espectáculo desportivos perpetuam o poder dos homens sobre as mulheres, utilizando as próprias mulheres, que se envolvem, com toda a liberdade, em actividades desportivas. A eficácia do processo de incorporação reside na sua invisibilidade e na adesão das dominadas aos valores do sistema de dominação.” Estaremos em presença precisamente de uma não adesão por parte de uma atleta aos valores desse sistema…
É portanto falacioso o argumento da “igualdade competitiva”. É igualmente falacioso afirmar-se que Semenya se encontra sujeita a um dilema ético entre essa igualdade e a sua dignidade – e ela demonstra-o ao recorrer ao TAD, mesmo tendo sido derrotada, e ao afirmar que não se vai retirar… mas que também não se medicará (A Bola, 09.05.2019, p. 32). O dilema ético não é de Semenya… o dilema ético foi da IAAF."
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