"Dia 1 de Outubro de 1980. O Benfica desfez o Dínamo de Zagreb (2-0) com uma exibição de uma beleza fora do comum. A bola era o centro do mundo para os que vestiam de encarnado. Estive lá e vi!
No dia 1 de Outubro de 1980 eu estava no Estádio da Luz. Já não me lembro ao certo com quem. Provavelmente com aquela malta lá dos Olivais Sul, Rua Cidade de Luanda. Rua Vila de Catió e por aí fora. Um costume propagado pelas noites europeias que, nesse tempo que mora no jardim pacífico e florido da saudade, ainda eram religiosamente à quarta-feira.
Confesso que sempre fui um fascinado pelo futebol que se jogava lá por fora. Sobretudo pelo futebol inglês, com aquelas jogadas ao primeiro toque, as disputas rijas de cabeças contra cabeças, os remates inesperados, a opção pelos golos violentos em detrimento dos golos subtis.
Sempre que uma equipa estrangeira visitava Lisboa, fazia um esforço para ir. Restelo, Alvalade, Estádio Nacional, e sobretudo a Luz.
Em Outubro de 1980 eu estava no fim dos meus dezasseis anos e a vida era simples e clara como um nada. O futuro era distante demais e a morte ainda não começara a bater à nossa porta da forma sinistra que hoje bate e continua a bater.
O treinador do Benfica era um dos maiores cavalheiros com quem alguma vez cruzei, no futebol e fora dele: Lajos Baroti.
Portugal conheceu-o bem em 1966, quando foi o seleccionador da Hungria que batemos um Liverpool por 3-1 no jogo de estreia do Campeonato do Mundo de Inglaterra. Consta que, nessa tarde britânica, ficou furioso com a derrota. Mas limitou-se ao silêncio. Não estava no seu feitio ser desagradável.
Baroti era húngaro, não se esqueçam.
Os húngaros são os homens do futebol elegante, bola deslizando sobre a relva, movimentos de bailarino, identidade ofensiva e convicção na ideia de que assim estão certos e que assim vencerão.
No dia 1 de Outubro de 1980, o Benfica recebeu o Dínamo de Zagreb e tinha jogadores como Pietra, Chalana, Alves, Shéu, Humberto, Carlos Manuel, Nené e César. Gente que parecia ter mãos no lugar dos pés.
E era lindo, mas lindo, vê-los traçar velozmente aquelas órbitas arbitrárias do poema de Miguel Torga.
Podia dizer-se sem medo: a bola para eles era a mágica senhora das paixões!
Assim, com ponto de exclamação.
Os golos e o amuo...
O Benfica tinha empatado em Zagreb. Um convenientíssimo zero-a-zero.
Na Luz, nessa noite de Outubro a começar, foi magnífico.
Já se passaram quase quarenta anos, quem diria?
Talvez a memória me engane, cada vez mais, é natural que assim seja pela ordem natural da degradação humana. Mas eu tenho imagens vivas da forma como Chalana dobrou um adversário, lhe deu um nó cego impossível de desatar, e o deixou preso em si mesmo, mero espectador impotente do que viria a seguir. E o que veio a seguir foi o passe fagueiro para Carlos Manuel e o centro deste, preciso, irretocável. A bola veio numa bandeja, com pastelinho de bacalhau, palito e tudo, até Nené a desviar de cabeça para a festa conjunta do golo que ergueu as pessoas dos seus assentos frios de cimento num salto colectivo de alegria total.
Estava muita gente no velho estádio. Provavelmente mais de 70 mil.
Eram noites impressionantes.
Ainda por cima, aquelas em que o Benfica, lá em baixo, subia cá ao alto da nossa imaginação de um futebol absoluto.
Os croatas podiam ser croatas, mas eram jugoslavos para o resto do mundo.
Estavam perdidos, confusos, assustados. Não se entendiam os movimentos vermelhos, não compreendiam a forma como Shéu fazia desaparecer a bola como se fosse o Mágico Mandrake do Circo Moscovo. E depois ela reaparecia naquelas fintas de Chalana de ir e afinal não ir e acabar por ir mesmo, fantasma etéreo atravessando adversários com a facilidade de um Mercúrio de barbas com asas nos calcanhares.
Depois surgiu César, o brasileiro César. E foi augusto.
Jorge Gomes estava a aquecer, e César previu que seria para ocupar o seu lugar. Não quis sair incógnito de uma noite encarnada em flor. Num repente, ainda de longe, recebeu com o pé direito, trocou-o pelo esquerdo e fez o golo num pontapé fulminante, supimpa, de provocar comichões na sangue de um pobre Stincic, guarda-redes pregado ao solo, embasbacado, sofrido.
César nas alturas; Jorge Gomes amuado.
Vai daí recusa-se a entrar para substituir o companheiro. Bateu o pé, infantilmente, e desobedeceu às ordens de Baroti. Condenou-se. Viria a jogar pouco, muito pouco. Bem menos do que Reinaldo ou Vital que disputavam a mesma vaga.
No dia 1 de Outubro de 1980 eu estava no Estádio da Luz.
O Dínamo de Zagreb não passou de um tigre de papel. Entregue à feitiçaria daqueles que tratavam a bola como a mágica senhora das paixões."
Afonso de Melo, in O Benfica
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