"Há 14 anos no Benfica, Renato Paiva passou por quase todos os escalões, desde os sub-10, onde começou em 2004/05, passando pelos sub-17, onde foi campeão nacional em 2017/18, até chegar aos sub-19, que vai liderar na época que já se iniciou. O treinador que diz ter "uma panca pelo futebol bonito" desde que viu o Brasil de 1982 acredita que em Portugal a formação está cada vez melhor, especialmente no Benfica, onde a evolução dos jogadores já é vista como mais importante do que as vitórias nos escalões jovens
Como viste o título de Portugal no Europeu de sub-19?
Acompanhei o Europeu e achei que fizemos uma prova muito boa, mas o que mais relevo é o trabalho de grande nível, obviamente também da Federação Portuguesa de Futebol, mas acima de tudo dos clubes. Praticamente todas as crianças portuguesas nascem com uma bola nos pés, mas depois é preciso trabalhar essa essência. A formação portuguesa está a habilitar-se cada vez mais, e os clubes estão a começar a perceber, finalmente, que a qualidade do treinador é muito importante naquilo que já tem de ser bom, que é o próprio jogador. Quanto mais as ideias dos clubes se virarem para isso, melhor. Destaco muito o trabalho dos clubes e o que fazem na procura de proporcionar aos seus jogadores mais crescimento sustentado e de melhor qualidade. Repara, somos campeões europeus com uma equipa não lhe vou chamar de segunda linha mas onde faltavam jogadores como Gedson, João Félix, Leão, Diogo Leite, Dalot... E faltavam porque já estão a trabalhar com seniores. É uma geração assinalável, que já tinha sido campeã europeia de sub-17, e é ainda mais assinalável como conseguiu regenerar-se com outros jogadores, fazendo com que eles aparecessem mais e melhores. Isto é um trabalho muito bem feito na formação do futebol português e a Federação com todas as qualidades que tem acaba também por aproveitar, porque acaba por escolher os melhores.
O que achaste dos jogadores?
Apareceu um Jota mais adulto, fez um torneio fantástico, o Trincão também, o Florentino... Todos eles estão integrados nas equipas B, ou seja, mesmo em idade júnior já tinham esse crescimento na dificuldade das equipas B, uma antecâmara preparatória de passagem do futebol de formação para o futebol profissional. O título é sempre importante também para o Benfica, uma vez que era o clube mais representado, e obviamente que este título dá uma chancela de qualidade não só aos miúdos mas também à forma como o Benfica trabalha na formação e como, nos últimos tempos, tem tido a capacidade de desenvolver o jogador jovem, no seu aspecto individualizado, trabalhando-o dentro de coletivos, mas trabalhando-o com um foco muito individual, para poder potenciar o seu crescimento. O clube está focado nisto, daí eles aparecerem cada vez mais preparados e desenvoltos. De há algum tempo para cá, o paradigma mudou, já não há o foco no resultadismo e sim no crescimento sustentado do jogador, para que ele possa chegar à equipa A e dar cartas de uma forma quase imediata, como aconteceu com o Renato, com o Guedes, com o Rúben Dias e agora com o Gedson. E irá acontecer com mais. Se por acaso a selecção tivesse perdido, o trabalho estava lá na mesma, não é de forma nenhuma invalidado, porque, em termos formativos, o crescimento é mais importante do que o resultado.
Na época passada estavas nos juvenis e este ano vais estar nos juniores. Muda alguma coisa?
Nada. Rigorosamente nada. Em termos de exigência, o emblema dá sempre isso. A paixão pelo que faço, também. Portanto, não preciso de combustível, em termos de subir de escalão ou não subir de escalão. Obviamente que quando sobes de escalão a responsabilidade aumenta pela visibilidade. Disse aos miúdos na apresentação que agora estão mais perto da elite, estão mais perto de concretizarem o sonho deles. A exposição é maior, mas para um treinador de formação a maior responsabilidade e o maior critério aplica-se nos mais jovens: sub-9, sub-10, sub-11, sub-12. Porque aí é que estás a criar bases importantes para que depois ao longo de toda a carreira eles cheguem ao treinador dos sub-19, que é o meu caso agora, praticamente como um "produto", se é que podemos dizer assim, quase feito - e nunca será feito, porque há jogadores que até aos 35 anos dizem que aprendem muitas coisas e é verdade. Mas aquela estrutura, aquela base, já vem de trás, portanto até acho que quem trabalha com essas idades é que tem mais responsabilidades. Nós só temos de receber todo o resultado desse percurso e ajustá-lo e adaptá-lo a esta idade, ajustando também expetativas, porque quanto mais próximo estás da meta, maiores são as expetativas que crias. Nada mais do que isso. É o costume: é o desenvolvimento individual como ponto primordial, porque o treinador do futebol de formação tem sempre, num clube destes, numa estrutura destas, de fazer desenvolver o indivíduo e o jogador em primeiro lugar, prepará-lo cada vez mais e melhor para o topo. Depois, quanto mais preparados os jogadores estiverem, penso - penso não, tenho a certeza - que o coletivo vai beneficiar disso e tendo um coletivo forte estamos então à altura de responder às exigências do Benfica no que toca a objetivos quantitivos, ou seja, títulos e vitórias. A verdade é que ninguém anda aqui para perder, toda a gente quer ganhar, obviamente, mas há diversas maneiras de lá chegar e, na formação, há que respeitar um processo, que tem a ver com a identificação do clube, a forma como o clube quer que nós preparemos esses jogadores e essas equipas, para depois o treinador da equipa A receber o jogador com uma evolução compacta, bem feita, criteriosa - essa é que é a nossa grande responsabilidade. Depois, se ganhamos ou não, isso às vezes decide-se num único jogo, porque nos campeonatos jovens é quase sempre assim, é uma espécie de final. E numa final pode acontecer tudo, menos pôr em causa um ano inteiro de trabalho.
Mas sabes perfeitamente que se calhar o título que conquistaram em juvenis na época passada dá-vos, a ti e aos miúdos, uma validação diferente aos olhos dos adeptos e dos dirigentes.
Dos dirigentes nem tanto, porque já de há algum tempo para cá estamos claramente a promover o crescimento do jogador e a querer perceber se o processo está a ser bem feito.
Estás no Benfica há quanto tempo?
Há 14 anos.
E quando entraste esse processo não era assim?
Não. No início o que se queria era ganhar. Bom, também se queria obviamente desenvolver os jogadores, mas era muito focado no ganhar. Pondo isto num forma prática: os melhores jogadores de cada escalão estavam nesse escalão, independentemente de se achar que o escalão já não dava resposta às necessidades de crescimento do jogador. Era para ganhar. Quando tu te viras para o desenvolvimento individual do jogador, começas a perceber que ele é o foco principal e que o escalão onde ele está já pode ser curto para ele, logo, o processo de evolução está a ser revertido. Então tens de dar continuidade a esse processo, passando-o para um escalão superior, com novas exigências, novos desafios, novos problemas, onde ele às vezes se calhar nem terá uma capacidade de resposta imediata, porque vem de um escalão onde ele responde com uma perna às costas e acha que é o Cristiano Ronaldo do contexto dele. Mas depois chega a outro escalão e tem de levar com este choque para perceber que se calhar não é nenhum Cristiano Ronaldo.
Quando é que começaste a notar essa diferença na forma de olhar para a formação?
Acima de tudo, quando nos mudámos para o centro de estágio [Caixa Futebol Campus]. Antes não tínhamos centro de estágio e ainda sou do tempo, como diz a outra senhora, de andar com a casa às costas. Dos Pupilos [campo em Lisboa junto ao Estádio da Luz] íamos para Odivelas, porque treinávamos sub-10 e depois íamos treinar sub-17, portanto tínhamos de atravessar Lisboa em hora de ponta. Não tínhamos uma identificação de uma forma de jogar, não tínhamos nada mesmo. E o projecto de criares tudo o que temos aqui à nossa volta [Caixa Futebol Campus] foi com este intuito de formar. Ninguém vai estar aqui a investir milhões de euros para ganhar títulos. As pessoas quando pensaram no centro de estágio pensaram nisso primordialmente para que houvesse uma estrutura de formação que potenciasse e alimentasse a equipa sénior. O nosso presidente passou-nos sempre essa mensagem e foi sempre uma mola que tentou alavancar tudo isto, por querer um Benfica à Benfica, com jogadores criados na casa. Depois fomos aprimorando, fomos avaliando, até com exemplos lá de fora, e fomos retirando alguma carga ao ganhar e não ganhar e demos mais carga ao processo, à forma como o jogador começa e acaba a época, à forma como a equipa começa e acaba a época... Mas isto é mais difícil de explicar ao adepto do Benfica, porque o adepto do Benfica quer ganhar. Se perguntares a dez adeptos um sinónimo da palavra Benfica, provavelmente vai ser ganhar. Acresce ainda que vivemos num país em que, na minha óptica, a cultura desportiva é muito baixa, onde o adepto normal não vai ao futebol ver futebol, vai ao futebol ver a equipa ganhar, nem que seja com a mão e a jogar mal. Ou melhor, nem se importa com o modo como a equipa joga. Quer é que a bola entre na baliza do adversário e não entre na dele. E esta cultura do resultadismo, do adepto que sai de casa não para ver o jogo mas para ver a sua equipa ganhar depois leva a este tipo de excessos: quando ganhas, está tudo bem e idolatras tudo até valores inacreditáveis e quando perdes és o pior do mundo, não tens qualidades e não há nada de positivo na derrota. Isto às vezes em espaços temporais de semanas ou meses, dentro de uma época, o que é ridículo. Mas é o que temos, portanto temos de saber viver com isto.
O problema essencial aqui é olhar-se para os miúdos como seniores e para a formação como alto rendimento?
Tal e qual. As pessoas não conseguem segmentar análises, nem sequer contextualizá-las. Tu és adepto do Benfica, então o Benfica em sub-9 tem de ganhar, ponto. Nem que jogue contra sub-11. Porque, lá está, outra coisa que mudou na nossa formação foi começar a inserir equipas mais novas a competir em campeonatos mais velhos, para dar outros estímulos aos jogadores. E, às vezes, nestas idades, é difícil ganhar, mas o adepto não consegue perceber isso e vai fazer o transfer daquilo que é a mola real do clube, que é o futebol profissional e a equipa sénior do clube, e depois acha que tem de ser tudo a direito, com régua e esquadro. E não é assim. Não consigo perceber como é que alguém faz uma análise do que quer que seja sem a contextualizar. Isso é só fazer por fazer. Ninguém vende radiadores no deserto e ninguém vende gelo no pólo norte. Mas nós estamos assim naquilo que é a cultura desportiva em Portugal. Chegas inclusive a estar num jogo de miúdos e os adeptos estão a insultar os miúdos, tal e qual como insultam um sénior. Chegamos a este ponto. E acho que todos nós temos culpa nisto: os agentes desportivos, os meios de comunicação social... Porque os programas são cada vez mais, os jornais são cada vez mais e a discussão e a informação sobre o jogo, sobre os processos do jogo e sobre o que é a formação e o que é o futebol de alto rendimento são praticamente inexistentes. Fala-se de tudo, menos do essencial. E é isso que leva a que as pessoas não tenham essa cultura desportiva.
Fazem alguma espécie de palestra para explicar aos pais ou aos adeptos o que é a formação?
Aos adeptos não tanto, isso cabe ao nosso presidente e à estrutura, ao director do Caixa Futebol Campus - são essas as pessoas responsáveis para fazer apelos à nação sobre isso, explicando que agora mudaram algumas coisas e evidentemente há jogadores que vão estar em patamares superiores de exigência, não vão estar no campeonato dessas idades e isso pode realmente custar um título. O clube tem essa noção, mas o que o clube quer é que o jogador chegue lá acima. Acho, no caso do Benfica, como já estamos há alguns anos com este processo, que quanto mais jogadores - porque isto depois vai ser cíclico, vai demorar, mas vai ser cíclico - colocares na primeira equipa com sucesso, mais o adepto vai olhar para este resultado final do processo e não para o resultado final dos dígitos. É algo que vai levar algum tempo. Mas vejamos: Rúben Dias. Afirmou-se na primeira equipa do Benfica e não foi campeão nem em iniciados nem em juvenis. Não deixou de ser o jogador que é. E quem diz o Rúben Dias diz muitos outros jogadores. Todos gostamos de ganhar, obviamente, e neste clube ainda mais, faz parte do currículo ganhar. As pessoas costumam dizer: "Ah mas temos de saber ganhar". Sim, mas o Benfica faz 35 jogos nos escalões de formação e ganha 33 ou 32 ou 30. Pode até só perder um, que depois até é decisivo. E eles têm cultura de ganhar, obviamente que têm - é isto que as pessoas têm de perceber. Nós, num primeiro momento da época, recebemos os pais, no dia da apresentação, e transmitimos estes valores aos pais, para que eles os percebam, e aos jogadores também. Porque eles podem ir acima, podem ir abaixo, mas acima de tudo o nosso foco é o desenvolvimento deles.
Crês que as pessoas têm a ideia de que um jogar mais simples e pragmático é o que dá resultados, enquanto que um jogar mais construído e elaborado é visto apenas como romantismo?
Sim, as pessoas têm a perspectiva de que ganhar não é jogar bem e o jogo, no futebol de rendimento, transmite isso. Olha este Mundial. Mas percebo, as selecções têm pouco tempo para trabalhar, para definir um conjunto, e é muito mais difícil criar do que destruir. Podes levar um ano a criar uma coisa e basta um segundo para deitá-la abaixo. Como não tens tempo para trabalhar colectivos e criar sinergias entre os jogadores, porque vêm de diversas realidades, diversos campeonatos, e como estás num Mundial, que é a prova suprema do futebol e onde as decisões são ao detalhe, as pessoas jogam pelo seguro. E eu, aí, aceito esse resultadismo, porque estamos a falar de futebol de elite, num contexto difícil de criar uma ideia macro nos jogadores que tens à tua disposição, portanto vai-se pelo mais fácil - e o mais fácil é, obviamente, não arriscares tanto. E depois, como estamos a falar de selecções, tens alguns dos melhores jogadores e os melhores podem definir muita coisa. Se calhar neste Mundial 90% das pessoas apaixonaram-se pela Bélgica e pela Croácia - e talvez tenham ficado com um bocadinho de pena pelo Brasil e pela Espanha, se bem que a Espanha foi diferente daquilo a que estávamos habituados. E acaba por ganhar a França. No futebol de formação, a influência vem de cima e, lá está, a análise não é contextualizada. Ou seja, eu, treinador do Benfica, tenho de expor os meus jogadores ao risco. Vou dar-te o exemplo da primeira fase de construção. É um momento de risco máximo, em que sujeito o guarda-redes e os defesas a tomarem muitas decisões, em termos de posicionamento, de dinâmicas e com a bola. Mas depois os médios também. Os meus médios jogam de costas para o jogo, algumas vezes, têm de perceber as superioridades numéricas e voltar a tomar mais decisões. E isto de forma consciente, sabendo que quando erras um passe numa fase de construção o teu adversário está pertíssimo de fazer golo. E isto não é compreensível para quem está de fora a ver o jogo.
Pegando nesse exemplo: mesmo que estejam a pressionar os teus dois defesas centrais, vais sair a jogar por trás na mesma?
Sim. Porque temos dinâmicas criadas para isso. Há depois um 'SOS', mas o 'SOS' nunca é um pontapé para cima, ok? É um 'SOS' criado por nós. Também não vamos ser líricos ao ponto de ver que é completamente impossível sair a jogar naquele momento e mesmo assim querer sair a jogar. Desde o início, nós aprendemos isto nos cursos: os princípios ofensivos são criar igualdade numérica e superioridade numérica. Ora bem, a superioridade numérica no jogo começa onde?
No guarda-redes.
Portanto é aí que temos de tirar partido da superioridade numérica e depois a partir daí ir criando mais superioridades numéricas...
Para ir encontrando o homem livre.
Exactamente, até que consigas chegar de forma sustentada à baliza adversária. O chegar de forma sustentada, em vez do pontapé para a frente, não é uma questão romântica, é um processo de crescimento e de evolução que é altamente rico para o jogador, porque é algo que o obriga, sob pressão, a tomar ene decisões, não só posicionais - que têm a ver com onde deve estar e como devem estar os seus apoios, por exemplo -, mas também no que diz respeito à tomada de decisão, porque quem tem a bola tem de assumir. Quanto mais tomadas de decisão tu tiveres durante o jogo, melhor é o processo de formação, porque vais errar mais vezes e depois perceber por que razão erraste, vais acertar mais vezes e depois perceber por que razão é que acertaste, e vais fazendo este processo de tentativa e erro até te tornares melhor jogador. O pontapé para a frente o que é que te dá? Dá-te uma incerteza brutal quando a bola vai no ar, porque não sabes quem é que a vai ganhar, não há tomadas de decisão nem ginástica mental dos defesas e dos médios, e pronto. Lembro-me sempre do [Juan Manuel] Lillo, que diz assim: "O pontapé para a frente só tem lógica da seguinte maneira: se o central que bater a bola para a frente for o Maradona e o avançado que receber a bola na frente for o Maradona". Aí ja tem todo o sentido que seja pontapé para a frente, porque a bola vai lá chegar direitinha e o outro vai recebê-la no pé direitinha. Tudo o que seja diferente disto... Nós estamos a ensinar. A en-si-nar. O Ederson não foi vendido da forma que foi por acaso. Um dos fatores pelos quais ele foi vendido foi pela qualidade do seu jogo com os pés. E o jogo com os pés não é só passar bem, é a tomada de decisão aí envolvida, é a análise tática que ele tem de ter do jogo - isto é tudo muito treino. Só que as pessoas, quando estão na bancada... Eu estou no banco e muitas vezes quando há dois ou três passes na defesa já oiço: "Mete a bola na frente! Tira a bola daí!" E é quando eu digo aos jogadores para continuarem a fazer aquilo que nós treinamos. Isto é um processo de evolução. Se me disseres assim: estamos no futebol profissional, estamos a decidir um campeonato ou uma Liga dos Campeões, estamos a ser super pressionados, eh pá, ok, aí é futebol de rendimento, são coisas completamente diferentes, pode haver outras abordagens. Daí a importância da análise contextual, que as pessoas não fazem.
Imagino também que todas as dinâmicas sejam trabalhadas repetidamente nos treinos e jogos, para deixar os jogadores confortáveis, enquanto que o adepto se calhar está a ver isso pela primeira ou segunda vez - ele é que fica nervoso e não os jogadores.
Exactamente. O adepto fica mais nervoso do que os jogadores. E já nos aconteceu, obviamente, sofrer um ou outro golo depois de perdas de bola na fase de construção e o meu primeiro feedback para os jogadores é: "Meus amigos, errámos a fazer o que trabalhamos. Errámos a fazer aquilo que vos faz crescer e que vos prepara para altos patamares". Porque pontapés lá para acima qualquer um dá. O mais difícil é treinar e ter estas dinâmicas, mas depois quando elas saem, não saem por acaso. Esta geração de 2001, de juvenis, ao longo da época teve três ou quatro jogadas - uma delas, no Qatar, os miúdos até me vieram dizer que estava num site de golos bonitos ou lá o que era - que não saem de uma varinha mágica, nem da intuição dos jogadores, por muita qualidade que eles tenham, porque tem de haver muito trabalho no treino. Agora, é um trabalho que nós não fazemos só porque sim, fazemos porque o nosso objetivo é colocar centrais, guarda-redes, laterais e por aí fora na equipa sénior do Benfica, que normalmente joga contra blocos médios e blocos baixos, onde o espaço é ínfimo... Estávamos a falar sobre a construção sob pressão. E então e a construção em que não estás sob pressão, tens 20 metros à tua frente em que podes progredir com a bola e depois tens de tomar decisões. Vais baixar médios para o pé dos defesas? Para aglomerar jogadores? Ou vais deixar os médios no coração das equipas adversárias, para criares linhas de passe por dentro e por fora? Mas para fazeres isso o jogo tem de começar cá atrás, com quem? Com os centrais, com os laterais - e são eles que vão ter de tomar decisões, têm de ter boa relação com bola, tem de estar habituados e a bola tem de fazer parte deles. Este é o trabalho que o treinador dos seniores tem de exigir de nós. Agora, com todo o respeito, se eu treinar um clube em que me dizem que não têm capacidade nem o modelo de jogo, historicamente, é de assumir o jogo, então se calhar aí é um contexto diferente. Agora, aqui, o nosso contexto é este e funcionamos em função do contexto.
Na formação ainda se veem muitas equipas a chutar para a frente e seja o que Deus quiser?
Sim, sim, muitas equipas [respira fundo]. Custa-me tanto. Custa-me ver equipas a não querer jogar e, como dizes, à espera que apareça um milagre na frente para resolver. Até pode resolver e se calhar ganham 1-0, mas vamos lá ver... Outro problema do futebol português, do futebol de formação... Benfica, FC Porto, Sporting e Braga não têm este problema, porque são milhentos a quererem estar nesses clubes e há uma exigência e ou queres ou não queres. Agora, se tu treinas uma equipa de dimensão baixa, onde o grande atractivo não é a dimensão, nem o financeiro, então tem de ser o quê? Tem de ser a qualidade do treino e a proposta de jogo. E isto começa tudo com a bola. Vamos lá ver. Ninguém quis ser jogador de futebol sem uma bola. Quis ser jogador de futebol porque, entre os objetos que me foram oferecendo em criança, a bola foi sempre aquele ao qual achei mais piada e apaixonei-me imediatamente. Mas nunca saberia o que era o futebol se não me mostrassem uma bola. Portanto, estes miúdos chegaram a estas equipas a querer jogador por causa da bola. Mas depois os treinadores dizem: "Ah, o mister diz isso mas treinar o Benfica é fácil, porque ninguém falta, mas connosco à quarta-feira os miúdos faltam por causa da Liga dos Campeões, à terça porque vão ao cinema com a namorada e depois é porque têm Playstation..." E eu digo: "Está certo, mas quando faz o treino, faz o treino para si ou para os jogadores?" É que o treinador tem um problema grande: quando constrói um treino, a maior parte das vezes constrói para ele. Está magnífico este treino. Mas é para o treinador, não é para os jogadores. Nós estamos a fazer um treino para os jogadores, por isso temos de lhes dar prazer. Às vezes estou aqui nos jogos e tento meter-me na cabeça dos miúdos que acordam às 6h30 ou 7h da manhã para jogarem aqui no Seixal às 11h e depois chegam aqui e estão de um lado para o outro a bascular, sem sair do sítio, a ver a equipa do Benfica, e tocam na bola uma vez de dez em dez minutos. Levantei-me às 7h da manhã para isto? É isto que eu quero do futebol? Não é. Quando comecei a pensar em ser jogador de futebol, foi para tudo menos para isto: eu queria era tocar na bola, jogar, assumir, fintar, passar... Mas isso tudo só se faz com bola, não é sem bola. A proposta que tu dás tem de lhes dar prazer: primeiro, no treino. O jogador tem de ir para o treino com prazer, ponto. Depois, no jogo, igual. Mas depois vamos bater no mesmo... Ou os directores dos clubes fazem para que isso aconteça, ou os pais fazem força para que se empate no Seixal, ou em Alcochete ou no Porto, porque isso é que é bom, mesmo que eles não toquem na bola sequer - e esta cultura vem de onde?
Do foco nos resultados.
Do resultadismo.
Há falta de cultura sobre processos, sobre o crescimento que o jogador jovem tem de ter. O jogador jovem, repito. Se há um empate, é uma festa que se faz, mas depois... Aconteceu-me em dois anos, o mesmo clube, com dois treinadores diferentes: o primeiro treinador veio aqui e aos 60 minutos, a 20 minutos do final [os jogos no escalão de juvenis têm 80 minutos], estava 0-0 e os seus jogadores não tinham saído do meio-campo. Mas literalmente não tinham saído do meio-campo. Nos últimos 20 minutos, fizemos quatro golos e ganhámos 4-0. E o mesmo clube, no ano seguinte, com outro treinador, veio com uma proposta de jogo completamente diferente, a atacar, e perdeu 5-2. E eu pergunto: quem é que se divertiu mais e quem é que evoluiu mais? Essa é que é a questão que nós temos de perceber, enquanto treinadores de jovens: o que é que os ajudou a evoluir mais e o que é que lhes deu mais prazer. Porque também há outra coisa da qual não nos podemos esquecer: são crianças. Nós treinamos jovens, treinamos crianças, adolescentes. Temos de deixá-los ser também. Muitas vezes os treinadores também têm culpa. Os treinadores muitas vezes fazem a ponte directa e o transfer directo do sénior para o jovem. Às vezes esquecemo-nos disso. Temos de deixar que eles sejam jovens, crianças, que disfrutem e tenham prazer. Quem joga no Benfica tem tanta exigência e tanta pressão e tantas horas absorventes que também é nossa responsabilidade lembrarmo-nos que eles são crianças, temos de deixar que eles sejam crianças, às vezes até no treino. Eu fecho os olhos a muitas coisas que são coisas de crianças, porque tem de ser assim. Porque se eles não conseguem ser crianças lá fora então tenho de deixar que eles sejam um bocadinho crianças aqui dentro.
Pontualmente há treinadores que têm essa perspectiva mais formadora, mas como é que isso pode ser generalizado? Têm de ser a Federação a formar os intervenientes, pedindo-lhes outra abordagem?
Acho que não, porque não pode ser uma coisa instituída, tem de haver muito trabalho de sapa de todos os agentes, para uma maior consciencialização. Há uma frase simples que resume isto: o resultado comanda tudo na formação. E não pode. Um treinador de uma equipa de menor dimensão, quer dizer, não gosto de dizer de menor dimensão, mas que tem jogadores com menos talento, diz que não pode ter uma abordagem positiva ao jogo porque os jogadores não têm qualidade para isso. Isto é a forma mais simples de sacudir a água do capote. Não é verdade. Há jogadores que chegaram ao alto nível com talento limitado, porque foram muito bem trabalhados - os posicionamentos, as dinâmicas, as tomadas de decisão estão lá todas, ou seja, estás sempre a ensinar jogadores. Mas quem se quer desculpar diz que não pode ter uma fase de construção trabalhada porque os dois centrais com a bola nos pés são um terror, portanto é mais fácil bater na frente. Claro que é mais fácil bater na frente. Então e trabalhares melhor os teus centrais para que eles amanhã tenham melhor qualidade? Porque tudo é treinável. Se não, treinamos para quê? Juntávamos só os onze ao domingo e jogávamos. Não é assim porque é tudo treinável. Depois há uns que têm mais talento do que outros, é verdade, mas isto é tudo treinável, podem melhorar. Só que o problema é que o que manda é o resultado. E enquanto o resultado mandar, especialmente nas cabeças dos diretores... Porque depois o lado do treinador também é complicado: ele tenta duas ou três vezes, se por acaso corre mal, o diretor chama-o e diz-lhe: "Estás a brincar com o clube, não ganhamos nada e não sei quê". Se a cultura do diretor e de quem vai ver o jogo, sejam pais ou adeptos, for de que isto é um trabalho formativo, que vai demorar... Este central pode começar a época e ser mau na relação com bola, mas há coisa melhor do que um treinador dizer que no dia 15 de julho este central tinha imensas limitações e uma relação com bola deficitária, e em janeiro olhar para ele e dizer que já consegue fazer passes que nunca tinha feito e que tem uma relação com bola muito superior à que tinha? Mas há coisa melhor do que isto? Este é que é o nosso trabalho na formação. "Ah, o Benfica e o Sporting? Isso para vocês é fácil, têm os melhores jogadores, é tudo fácil". Não, não, é mentira. É mentira. Existe muito trabalho por trás, mas as pessoas muitas vezes não estão para isso, porque o trabalho custa e demora e as pessoas não querem perder. Ponto final parágrafo. Esta ideia comanda tudo. Ou vem dos diretores ou vem dos adeptos... E custa-me às vezes ver equipas que, lá está, têm argumentos menores, mas se esforçam para fazer coisas e há ali implícito um trabalho muito bom de crescimento de jogadores, mas porque perdeu um jogo depois é tudo posto em causa. Isso no futebol jovem é perfeitamente ridículo. Por que razão é que se diz que isto é futebol de formação? Podia ser outro nome qualquer. Mas é de formação porque estás a formar, estás a fazer crescer, a fazer evoluir. Quando as pessoas não querem ter isto em conta, então estão a ignorar a essência do futebol de formação.
Então, um exemplo ao contrário: se o teu central tem a bola e não está pressionado e tem espaço para progredir, mas, naquele momento, por estar ansioso ou outra razão qualquer, envia a bola para a frente indiscriminadamente. O que fazes?
Para já, vou dizer-te que é muito difícil que isso aconteça, porque desde o primeiro dia de treinos isso não é treinado. Ou houve ali um bloqueio cerebral ou o jogador viu na frente alguma coisa que lhe chamou a atenção - um colega a isolar-se, talvez. Agirei em função do contexto. Pode acontecer que haja uma linha defensiva adversária alta, com espaço nas costas, e haja um movimento de ruptura de um dos nossos médios, ou de um avançado ou de um ala, e o meu central ou o meu lateral pode querer meter lá a bola, isso obviamente não é criticável. Há maneiras e maneiras de fazer as coisas e isto também é perceber o jogo, perceber a linha adversária, se há espaço nas costas ou não... As correcções dependem sempre do contexto. Estou defendido em relação a uma coisa: o treino. Porque o treino é o criar de hábitos e eles no treino não criam esse hábito. Portanto teria de perceber se foi um bloqueio cerebral ou alguma coisa assim [risos].
Tens então preferência por construir de determinada forma, mas depois também preparas outro tipo de abordagens? Por exemplo, no último jogo da época dos juvenis, contra o FC Porto, houve um golo que surgiu numa transição ofensiva muito rápida.
Vamos voltar ao mesmo: formação. Para formar um jogador, tenho de lhe apresentar os momentos do jogo, todos eles. A transição ofensiva é um momento que se baseia em decisões rápidas. Se ganhas a bola e podes isolar um colega que está na frente sozinho, então não vais passar para trás, vais lá meter a bola, não é? Como estamos a formar, temos de lhes mostrar as coisas, para prepará-los. Agora dizer-lhes: "Meus amigos, vocês vão estar em organização defensiva, baixa ou média, eh pá, 5% da época, provavelmente." Mas tu tens de lhes ensinar como devem estar nesse momento do jogo. E depois, se só vais estar em organização defensiva nesses 5%, também só vais ter 5% de hipóteses de pôr em prática a transição ofensiva, porque um clube grande na formação, em competição, trabalha essencialmente dois momentos de forma massiva: organização ofensiva e transição defensiva - sendo que a transição defensiva é reacção à perda e em 20 segundos tens a bola outra vez. Agora, tens de ensinar o resto. Se não, chegam lá acima e quando o treinador do seniores quiser defender de forma um bocadinho mais baixa, o jogador não sabe. Como estás a formar, tens de passar por tudo. Claro que eles sabem que vão experimentar muito mais determinados momentos do que outros. Mas depois és tu que tens de criar condições para que eles tenham uma resposta efectiva.
Como se faz isso?
Por exemplo, tens cinco ou seis jogos durante a época em que realmente há equipas que te obrigam a defender mais baixo. Depois vais a torneios internacionais, porque os quadros competitivos em Portugal não dão mais do que isto. Nós aqui, sensivelmente após três ou quatro meses de trabalho, quando sentimos que os conteúdos estão mais ou menos adquiridos, nós trocamos uma unidade de treino por um jogo contra seniores. Isto foram estratégias próprias, nossas. Porque... "Ok, vamos trabalhar organização defensiva: posicionamentos, basculação da linha, permutas e tal..." Fazes isto no treino, mas depois no jogo não experimentas. E mesmo que no treino cries jogo que potencie isso, não é a mesma coisa, até porque quem ataca já sabe o que tem de fazer e quem defende também, em pólos opostos. Portanto, decidimos jogar contra equipas seniores, com alguma qualidade, e sabemos que durante grande parte do jogo teremos testes de organização defensiva. É algo que tem várias vantagens, porque eles ficam com uma ideia do jogo completamente diferente, o que também é importante, porque eles às vezes habituam-se aos 4-0, 5-0, 6-0 e então chegam a casa e pensam que são fantásticos, e o pai, a mãe, o tio, toda a gente diz que vai ser isto e aquilo. E esta é regra, não é a excepção - excepção é quando jogas com o FC Porto, Sporting, Braga, Belenenses, Vitória de Setúbal, aí tens mais dificuldades. Quando chegas aos jogos com seniores, tudo muda. Porque o jogo é mais rápido, porque não vais ter tanto sucesso nos duelos individuais, porque é mais físico. E aí já percebem que vivem num contexto de futebol diferente e que estamos a prepará-los para mais. É um abre olhos.
Mesmo psicologicamente, porque normalmente não precisam de grande capacidade de sacrifício e superação.
Por exemplo, na época anterior (2016/17), o primeiro jogo que fizemos contra seniores foi contra o Cova da Piedade. Perdemos 8-0. Houve malta que ficou um bocado escandalizada, mas eu fiquei todo contente. Estava lá o Silas, o Marco Bicho, creio, gente rotinada. Era o que nós queríamos, para eles perceberem. Só lhes faz bem. E pronto, é isto. Tens de passar em treino pelos diversos momentos e é como te digo, é um processo formativo. Se treinasses só organização ofensiva e transição defensiva então estarias a ser treinador de rendimento e não de formação, já estarias a inverter o processo. Temos de tentar ensinar-lhes tudo.
No último jogo da época dos juvenis, contra o FC Porto, houve um golo de livre concretizado de uma forma pouco vista, com um passe por cima da barreira. Foi trabalhado antes?
Trabalhámos. Mas é 50%/50%. Ou seja, ali, o livre em si, foram eles os dois que combinaram, tivemos zero de intervenção naquele livre específico. Mas tivemos 100% de intervenção numa ideia que é a seguinte: de um livre, fazeres um livre combinativo. Ou seja, a velha máxima de "se estás com fome, não te dou um peixe, dou-te uma cana e ensino-te a pescar". É um bocadinho isto. Aliás, nós na 2ª parte desse jogo temos outro livre combinativo que depois não sai. Todos os livres que nós temos têm sempre duas versões: ou directo na área ou então combinativo - trabalhamos muito os livres combinativos -, porque queremos sempre que o adversário nunca saiba bem qual deles vamos escolher, Porque, ao fim ao cabo, se tu andas no jogo a combinar, a fazer combinações directas, a procurar o homem livre, o terceiro homem, então por que razão é que não podes fazer isso num livre? Nós temos livres afixados no balneário antes do jogo, que são os livres que trabalhamos especificamente para aquele jogo. Esse livre a que te referes, comentei com o meu adjunto logo na altura: "O futebol é engraçado, porque tivemos zero de intervenção directa neste livre, mas deu golo." E ele disse-me assim: "Tiveste sim, tiveste a essência. É eles perceberem que podem fazer dali qualquer coisa."
Tinha essa curiosidade porque, tanto no futebol de rendimento como no de formação, muitas vezes há comportamentos que parece que se repetem só porque os outros também fazem, seja o bater bolas para a área a partir do meio-campo ou enviar a bola longa num pontapé de saída, por exemplo.
Exacto. Por exemplo, o livre frontal a meio do meio-campo. Eh pá, arranja-me um golo de livre frontal a meio do meio-campo - desde que haja um guarda-redes na baliza. Eu tento sempre que esse livre seja jogável e vá a uma das laterais e depois, aí sim, pode haver um cruzamento. Porque senão tu estás a jogar contra a tua equipa, porque tens uma defesa de frente que quer é que tu metas ali a bola. Bater uma bola no corredor central para a área não tem lógica nenhuma. Às vezes vês aquele clássico de últimos minutos: bate na frente, no desespero. Está bem, mas porque é que não jogas ao lado e cruzas lateral? É muito pior para o adversário. Quando crias um livre, aquilo vai de encontro ao que o adversário pode fazer em reação a um estímulo. Eu tenho a bola, por isso eles vão reagir a um estímulo. Este estímulo é: quando há um passe para trás, a equipa sobe. Então, se vier alguém de trás, em contra movimento, vai surpreender-te. A base é isto e depois a partir daqui há ene combinações. Por exemplo, temos livres laterais em que os jogadores interpretam o que se passa: se não há um jogador a defender à zona, para além da barreira, há um tipo de livre que se pode fazer, mas se estiver um jogador na zona, então já é muito difícil fazer.
Hoje em dia no rendimento fala-se muito do lado estratégico do jogo, do analisar o adversário e ajustar coisas na própria equipa em função disso. Na formação, em que medida é que a forma como o adversário joga influi no teu treino e na tua preparação para esse jogo?
O nosso campeonato de juvenis divide-se em três fases. Na primeira fase, não fazemos observação dos adversários. Estamos a iniciar a época, há que continuar a processar a ideia de jogo do Benfica, trabalhar os nossos conteúdos. Em termos de esquemas tácticos, podemos ver os posicionamentos nos cantos defensivos e nos cantos ofensivos e pouco mais. Para mim, é o quinto momento do jogo, por hierarquia de importância, claramente. Quer em termos de trabalho, quer em termos de planeamento. Na 2ª fase, fazemos uma observação um bocadinho mais detalhada ao Sporting, porque é um dérbi e é um jogo ao qual toda a gente dá imensa importância. Costumo dizer aos jogadores: "Vocês quando saem de casa, o beijo e o abraço da mãe e do pai, no dia do jogo contra o Sporting, é completamente diferente do que é no dia do jogo contra o Odivelas", com todo o respeito. Porque há uma rivalidade e as pessoas dão importância ao jogo - e nós não somos inconscientes ao ponto de dizer que não é importante. Obviamente que um Benfica-Sporting é importante e então aí já fazemos alguma observação do adversário e podemos criar uma ou outra estratégia. Na 3ª fase, fase da decisão do título, quando já levas cerca de dez meses de trabalho - e como eu costumo dizer, são dez meses a formar e um mês para ganhar - aí sim, já há alguma observação mais detalhada e mais próxima, com mais interesse também nos esquemas táticos, que são momentos de detalhe que podem decidir jogos equilibrados, mas isto sem nunca hipotecarmos a nossa identidade e a nossa ideia de jogo. Eu disse isso neste último ano e nós dizemos e fazemos: nós jogamos igual em todos o lado. Fomos pressionar a saída de bola do Porto no Olival, jogámos em pressão alta, e fizemos o mesmo em Alcochete e fizemos o mesmo em Braga, porque é a nossa maneira de estar e ver o jogo. É a maneira em que acreditamos para impor o nosso jogo e não deixar que o adversário, que tem qualidade, e muita, exponha o jogo dele, porque isto é um jogo de oposição. A minha ideia é esta: o mais fácil para nós é não deixar que eles joguem. Em vez de ficar à espera, não deixar que eles joguem. E temos de metê-los em zonas de desconforto, porque se eles estão em zonas de conforto... Eu levo o ano inteiro a fazer uma coisa, se vou jogar com uma equipa que me deixa fazer essa coisa, então eu estou confortável.
Aqui há sempre muitos jogadores convocados para as selecções. Quando eles voltam, a readaptação é difícil?
Não é muito difícil, mas há algumas dificuldades - depende muito dos períodos em que estão entregues à selecção. Se vierem depois de um Europeu em que estão sensivelmente um mês na selecção, obviamente há missões individuais que a selecção pede aos jogadores que são diferentes das nossas. Um lateral a subir mais ou menos, e se calhar aí é um bocadinho mais difícil, porque temos de ter um trabalho de retorno às origens, para fazê-los voltar ao nosso modelo. Se bem que os modelos até não são muito díspares, apesar de terem diferenças, claro. Quando eles vão dois ou três dias, é mais fácil. Quando é uma grande competição e o hiato é grande, aí é que precisas de um trabalho quase de brainwashing, é preciso recordar muita coisa. Depois tens é a parte psicológica para gerir e essa é um bocadinho mais difícil. Repara: há os que fazem parte do processo e depois quando chega a altura de um grande momento não vão, esse é o primeiro problema para gerir, mas esses ficam cá e a gente gere cá; depois há os que vão com expectativas altas de jogar e não jogam tanto e tens de recuperá-los quando eles voltam; e há aqueles que vão com expectativas de jogar e ganhar, e depois jogam mas não ganham, ou não se qualificam, que foi o que aconteceu este ano com os juvenis. Portanto, tens um processo de apanhar e colar cacos que não é nada fácil, porque há diversos patamares e tens, acima de tudo, de fazer com que eles entendam que há objectivos que se fecham e depois há outros que se abrem. Nessa altura, falharam a qualificação na selecção, mas havia o título no clube. "Já que estão a falar em títulos, pensem entre vocês se querem ir para a praia sem nenhuma taça ou se querem ir campeões nacionais".
É difícil treinar com os que ficam para trás, quando a maioria vai à selecção?
Sim, este ano treinávamos com 11 ou 12. Primeiro, temos de gerir também as expectativas de quem não foi, porque todos eles se acham elegíveis. Depois, com um número tão exíguo de jogadores para treinar, temos de carregar ainda mais naquilo que é o treino individual, no foco nos detalhes. E depois também tentamos ter jogos de treino, para que eles também tenham alguma competitividade e algum ritmo de jogo similar aos que estão na selecção.
A determinada altura da época falou-se muito sobre a quantidade de jogadores do Benfica na convocatória da selecção de sub-17, havendo muitas críticas sobre o que se dizia ser um número exagerado de convocados. Como viram essa situação?
Para nós foi fantástico. Foi super fácil. Todas essas pessoas fizeram 50% do meu trabalho para a fase final do campeonato. Com este grupo altamente competitivo, que tem qualidade, habituadíssimo a ganhar... Tu tens ego e se te fazem um ataque ao ego, os jogadores reagem. Posso dizer isto, não é segredo nenhum: fiz um Powerpoint com três slides em que copiei vários comentários de diversas pessoas a atacar... Lá está: é um ataque à estrutura sénior do Benfica, dizendo que o Benfica manda nisto tudo, mas depois vai por aí abaixo e as pessoas nem ligam se estão a falar de crianças. A falta de respeito pelos jovens é tanta que nem ligam. Foi um campanha baseada no patamar sénior e os jovens pagaram por arrasto. Mas não foi um momento difícil, porque fizemos isso que te digo. Mostrámos o Powerpoint, afastei-me e deixei-os ler aquilo em silêncio. E disse-lhes: "Agora é convosco: ou dão razão ao que está aqui escrito ou não. Jogo após jogo têm de mostrar que são a melhor geração portuguesa, que são a melhor equipa. Só se mostra é dentro do campo, mas não é só a ganhar - é a ganhar com qualidade". Seja exibicional, seja em termos de números, e acho que eles foram irrepreensíveis nisso. Aliás, a qualidade do jogo é absolutamente inquestionável e só pode questionar quem não perceber nada do jogo ou quem estiver de má fé. Ponto. Porque o que estes miúdos fizeram é anormal para miúdos de 16 anos, houve momentos de jogo anormais para miúdos desta idade. E isto não é querer calar ninguém, trata-se apenas de dar uma resposta ao que foi uma evidência. Há seis anos, quando comecei nos sub-17, o FC Porto metia entre nove a onze jogadores na selecção e não vi nenhuma campanha destas. No futebol de formação, o melhor exemplo é dizer que isto é como os vinhos: tem anos. Tem colheitas melhores e colheitas piores. E cabe às estruturas de prospecção e às estruturas directivas o mérito e a capacidade de recrutar o maior e melhor número de jogadores. E nós, nesta geração de 2001, tivemos esta capacidade de juntar num número anormal de bons jogadores na mesma equipa. Na época 2016/17 não fomos campeões, mas tivemos um ano de evolução brutal, e se calhar para ganhar dava jeito ter tido mais três ou quatro dos que tivemos na época passada. Mas isto não dá para escolher. Esta época eram os que nasceram em 2001 e ainda fomos buscar o Tiago Gouveia ao Sporting, que também era internacional, ou seja, era internacional pelo Sporting e depois passou a ser pelo Benfica. Tenho é pena de duas coisas, que acho graves: houve um ataque a um colega meu, chamado Rui Bento, e a uma estrutura similar à minha, que é a Federação Portuguesa de Futebol. Estavam a dizer que ou havia compadrios ou que as pessoas que estavam ali não percebiam nada. E depois foi um ataque ao clube, a quem trabalha no clube e aos miúdos. São dois ataques que não se devem admitir de forma nenhuma.
Tem a ver com aquela cultura desportiva? Por exemplo, após o jogo com o FC Porto, correu pelas redes sociais uma imagem tua a confortar um jogador do FC Porto, como mostra de um gesto de fair play raro no futebol.
Nós almoçámos aqui com os jogadores depois do jogo e o abraço que eu tive da minha filha... Já tinha tido um logo depois do jogo, por termos sido campeões, mas depois apareceram essas coisas nas redes sociais e a minha filha deu-me um abraço e disse-me que tinha um orgulho brutal em mim. Eu não tenho orgulho nenhum na dimensão que aquele gesto ganhou. Honestamente. Porque quando um gesto daqueles ganha uma dimensão viral, então é porque está tudo ao contrário. Tudo. A regra passou a ser a excepção e a excepção passou a ser a regra. E ninguém percebe os valores fundamentais do desporto, muito mais na formação. Volto a dizer: estamos a lidar com jovens, com crianças. Perguntaram-me o que me passou pela cabeça. A mim? Nada. Já me tinha mentalizado, ao 3-0, que íamos ser campeões nacionais, porque senti o jogo fechado. Digeri, analisei o jogo e continuei a fazer o meu trabalho de correcção até ao minuto 80. Até ao último minuto da época, foi sempre a pensar na evolução dos jogadores. Depois, passou-me pela cabeça ser aquilo que sou: o espelho do meu pai e da minha mãe. Costumo dizer: o meu trabalho é fruto da minha pesquisa, da minha paixão pelo jogo e pelo treino, da minha insatisfação e das pessoas que trabalham comigo. Isso vê-se dentro das quatro linhas e nos jogadores. O resto é o espelho do meu pai e da minha mãe, que me fizeram ser assim. Quando acabou o jogo, fui cumprimentar quem valorizou de forma extraordinária a nossa vitória. Essencialmente no ano anterior tinha custado muito para nós perder o campeonato, porque achámos, dentro daquilo que se pode dizer que é injusto, achámos injusto perder para o Sporting. Mais do que para mim, adulto, foi difícil ver os jogadores, jovens, depois de ganharmos 5-0 na Academia, com o amargo que nos ficou de não sermos campeões. Eu já tinha sentido isso e sabia que muitos dos jovens do FC Porto estavam a sentir o mesmo. Cumprimentei os treinadores e quando ali cheguei vi aquele jogador, que era o Gonçalo, que até foi nosso jogador aqui no Benfica, e que era o que estava mais inconsolável. Disse-lhe: "Meu amigo, daqui a um mês estás a treinar nos juniores e a lutar por seres campeão de juniores. E por fazeres parte das opções para depois seres da equipa sénior do FC Porto ou de outra equipa qualquer, porque o mundo não acaba aqui". Foi tão simples quanto isto. Ganhou uma dimensão viral porque a nossa sociedade está como está. Está tudo ao contrário e é uma pena. Estou a falar a sério, não me orgulhei nada.
A tua postura e as tuas ideias enquanto treinador vieram de onde?
Mais do que atraído pela teoria, comecei atraído pela prática.
Jogaste futebol?
Não joguei futebol.
Eras fraquinho?
Não, o scouting nessa altura é que era muito fraquinho [risos]. Ainda joguei nas camadas jovens, até porque era canhoto e havia poucos canhotos na altura, mas depois não deu mais. Na altura, tive de escolher entre estudos e futebol. Eles agora são uns felizardos, porque estudam e jogam ao mesmo tempo. Tive de optar pelos estudos, mas nunca me desliguei. Depois passei pelo futsal, pelo andebol e era quase sempre capitão de equipa, porque era muito chato, fazia muitas perguntas, por isso diziam-me que ia ser treinador. Aquilo foi ganhando sentido para mim e entusiasmou-me bastante. Mais do que teoria, entrei pela prática, querendo perceber como é que aquilo funcionava.
Então começaste a jogar Championship Manager.
[risos] Joguei CM, claro, o antigo CM. Não posso dizer que tudo começa aí, mas jogava muito. Agora gostava de poder jogar, mas já não tenho tempo. Comecei a fazer estágios. O primeiro estágio que fiz foi com o Carlos Carvalhal, no Vitória de Setúbal, porque moro em Setúbal e o Vitória estava na 2ª Liga naquela altura. Fiquei o ano inteiro a ver treinos e jogos. Foi há 16 anos. Já estava a treinar no futsal do Vitória, como adjunto, depois de deixar de jogar, e comecei logo ali a meter a mão na massa. Fiz os treinos todos e o Carvalhal até brincava a dizer que eu era mais pontual do que alguns jogadores [risos]. Estava eu no banco de suplentes, a ver o treino, e o director desportivo ao meu lado era o Quinito, portanto vê bem a riqueza daquelas manhãs. A partir daí, muita coisa começou a fazer sentido para mim. Entrei no Benfica no ano do Trapattoni [2004/05] e vi todos os treinadores do Benfica a trabalhar, fiz todas as pré-épocas. Com o Quique Flores, fiz o ano inteiro. Inclusivamente eles foram estagiar para Óbidos e eu levei a minha filha para uma praia lá onde a água quase fracturava os perónios, de tão fria que era [risos], e ela queixava-se, mas tinha de ser. Reconheço que foi uma semana dolorosa para ela [risos]. Vi Jorge Jesus, Fernando Santos, Camacho, Koeman...
Qual gostaste mais de ver?
Ainda me falta dizer que, por fora, ainda fui passar dez dias no Barcelona, em La Masia, onde vi toda a formação e onde vi como trabalhava o Guardiola e isso acho que foi o melhor investimento de tempo e dinheiro que fiz na vida. Esse foi o clique final na minha percepção do jogo, fui muito influenciado por aquilo que vi. Também vi o Simeone de perto, o Sampaoli no Sevilha, e depois tenho uma relação próxima com o [Juanma] Lillo, com quem falo praticamente todas as semanas, porque ele é um bocadinho a alma mater daquilo que é a influência do treino e da percepção do jogo. Vi muito da escola espanhola. Mas pronto, daqui já podes ver a quantidade de influências que tive, umas melhores, outras piores. Mas a minha estadia em Barcelona e a minha relação com o Juan foram as minhas grandes influências. Mas também há coisas que são de natureza, porque eu lembro-me como se fosse ontem que uma das vezes que eu chorei a ver futebol foi quando o Brasil de 82 perdeu aquela meia-final com a Itália. A Itália foi campeã do mundo e eu não achei piada nenhuma àquela Itália e nunca mais me esqueci daquele Brasil. Já nesse altura eu tinha a panca do futebol bonito, do futebol elaborado, do futebol trabalhado. Uns dizem que é um romantismo ou um lirismo. Mas para mim é associativismo, triângulos, proximidade entre jogadores, levar a bola de uma baliza à outra com uma ideia trabalhada. De quem gostei... Gostei de todos, seria obviamente deselegante estar a apontar. Uma palavra especial para o Carvalhal, porque naquele momento abriu-me a porta de uma época inteira, sem me conhecer de lado nenhum, só porque eu estava ali no Vitória. E essa abertura não é para toda a gente, porque cada vez se fecha mais as coisas. Depois não me posso também esquecer do Jaime Graça, o meu pai disto tudo, porque foi ele que, do nada - quer dizer, do nada não, porque eu estava aqui como adjunto, mas ele um dia chegou ao pé de mim e disse: "Rapaz, daqui a um mês vais treinar uma equipa: os sub-14 do Benfica".
Ficaste com medo?
Um bocadinho. Porque logo a seguir ele disse-me: "Para a semana vamos para um torneio. O Bruno vai com os juvenis para a Suíça e tu vais com os juniores para outro, comigo e com o Bento". E eu, ok, tudo bem. Só que ele no avião diz-me assim: "Olha, eu não vou fazer nada, quem vai fazer tudo és tu". [risos] Fui um bocadinho lançado às feras. Mas foi a pessoa mais importante no concretizar de um sonho, porque ele acreditou em mim numa altura de muitas dúvidas, porque eu ainda não tinha muita experiência. Alguma coisa ele viu e eu costumo dizer que as coisas que faço é por ele e para ele. Estarei eternamente grato.
Dos muitos craques que têm passado pelas tuas mãos, quem achaste mais talentoso e, pelo contrário, quem achaste que não iria conseguir continuar?
Não trabalhei directamente com o Bernardo Silva, por isso... Se me falas em mais talentoso, o mais talentoso foi o João Félix. É imprevisível, consegue fazer coisas inacreditáveis, tem recursos técnicos espantosos, tem um repentismo e a forma como conhece e pensa o jogo é fabulosa, e como tem esses atributos técnicos óptimos, consegue sempre dar seguimento ao que pensa para o jogo. E depois ainda por cima dá para tudo: à direita, à esquerda, à frente, mais atrás - joga em todo o lado e é claramente o mais talentoso que treinei.
Esse é um dos que, mesmo ainda nos juvenis, se vê logo que vai dar jogador?
Sim, sim, via-se logo. Só não dava se ele tivesse um outro perfil de personalidade, mas até nisso ele dava indicadores de que iria lá chegar. Outro que eu diria que lá chegava, pelo perfil, era o Rúben Dias. Estive dois anos com ele, porque sendo ele sub-16 fez logo sub-17 e depois no ano seguinte voltou a fazer sub-17. Era um capitão puro e duro, com um perfil altamente competitivo, um animal de treino, de querer aprender, com humildade e perseverança. Via-se claramente que o Rúben ia chegar ao futebol profissional. Aquele que mais me surpreendeu, não por lá chegar, mas por lá chegar tão rapidamente foi o Renato [Sanches]. O Renato era um anarca dentro daquilo que era a nossa organização, pela sua disponibilidade de querer estar sempre no sítio, sempre a ajudar, sempre a ser protagonista - onde estava a bola, ele queria estar, fosse a defender ou a atacar. Ele chamava tudo para ele, pelo protagonismo, por querer ajudar, para se sentir útil. Claro que tinha muitos recursos técnicos e físicos, mas essa anarquia dava-nos às vezes a ideia de que ele tinha alguma dificuldade na percepção do jogo e aí tu começas a pensar que se ele não mudar... A verdade é que ele melhorou, mas ainda estava impreparado. Mesmo quando o Rui Vitória o colocou a jogar na equipa principal ele ainda tinha bastantes defeitos a esse nível, na tomada de decisão, mas depois tinha as outras coisas todas a favorecê-lo e evoluiu bastante, porque o Renato é um produto da vontade dele, da ambição dele, do descaro, no fundo. Aquela parte selvagem deixava-me um bocadinho de pé atrás em relação ao que era o rendimento e a elite. Surpreendeu-me pela rapidez com que lá chegou.
Queres ir para o futebol sénior?
Quero, sendo honesto. Acho que todos temos etapas na vida. Não querendo ofender ninguém com isto, tenho uma teoria: um treinador de rendimento ou de seniores será muito melhor treinador se tiver passado pela formação, porque acho que na formação estás habituado a ensinar e a ir ao detalhe, ao pormenor. Acho que isso é muito importante. E acho que todos temos fases na vida, não só na vida profissional como pessoal. Já levo aqui uma fase considerável no futebol de formação e gostava obviamente de experimentar o futebol de rendimento, porque vou falando com jogadores que vão passando por nós e que depois se fixam no futebol sénior. Porque eu quando faço estágios em equipas... ah! O Luís Castro, com quem estive no ano passado, em Chaves, noutro momento excecional, é outra pessoa com quem falo e que é, além de um amigo e de um treinador excecional, uma fonte de inspiração. Também é uma pessoa muito importante na minha formação enquanto treinador. Porque quando faço estes estágios gosto de ver como funcionam, ver novidades, ver aplicabilidades, mas acima de tudo autoavalio-me, vejo em que patamar estou. Na intervenção no treino, na elaboração do exercício, no planeamento, na análise do jogo... a que distância estou daquela realidade? Cada vez que chego a uma zona daquelas, além de aprender, estou a autoavaliar-me. E considero que começo a aproximar-me dos parâmetros exigíveis para o futebol de rendimento. Claro que depois treinar homens é diferente, no convívio, não é no jogo, porque o jogo é igual, não me venham cá com essa conversa do futebol dos miúdos e do futebol dos homens - há as adaptabilidades mas a essência do jogo é a mesma. O que difere é a questão do relacionamento com homens, da gestão do balneário.
No rendimento, terás as mesmas ideias de jogo que tens agora ou nessa altura se calhar irás jogar de outra forma menos elaborada?
Vou ter rigorosamente as mesmas ideias que me levaram a chegar onde cheguei agora. Porque isto não é uma teimosia nem é um porque sim, é a forma como eu vejo o jogo. Aqui vejo dentro de um modelo Benfica, mas é uma forma próxima daquilo que eu entendo e porque acredito nesta forma de jogar e porque acredito que esta forma desenvolve muito mais o jogador a nível individual, como já te disse. Acredito em algo sustentado e não em algo do acaso, porque para mim mandar um pontapé para a frente é uma coisa do acaso. Um passe longo é que já é diferente. Mas não vou renegar tudo o que aprendi e vivi, porque tive capacidade de selecionar o que me interessava. Não posso chegar lá acima e, quer dizer, fiz um percurso todo de determinada forma e depois vou mudar. Não tinha sentido, seria contra natura. Eu estou no futebol por paixão, por prazer. É disto que mais gosto na vida, com todo o respeito por todas as outras profissões, eu tenho a melhor profissão do mundo, não a troco nem por nada, mesmo quando perdemos ou jogamos mal. Se isto me dá tanto prazer, não vou fazer disto uma coisa enfadonha, que não me dê prazer nenhum. Sou um privilegiado, porque faço passo de um lote restrito de pessoas que fazem o que gostam, portanto não vou converter isso em fazer algo que não me dá gosto. É chegar lá, fazer mesmo e acreditar, porque tenho convicção que poderei ter sucesso, porque também vejo muita gente a ter sucesso ao pensar o jogo desta forma. Se vou ter muitos inimigos? Vou, os resultadistas vão andar todos atrás de mim com um taco de basebol. Mas acho que o benefício é sempre melhor e maior. A tua preocupação é o desenvolvimento do jogador e isso é respeitar o jogador e respeitar o jogador é respeitar o jogo, porque o jogador é o mais importante do jogo, e se respeitares o jogo, respeitas o público, portanto os benefícios são sempre maiores. Os resultados não me vão fazer mudar de ideias.
Vamos começar a tua carreira de alto rendimento: Setúbal ou Benfica?
[risos] Bem, primeiro, vou já dizer-te...
Vitória, desculpa.
Ahhhhh, bom [risos]. Setúbal é uma cidade, que tem um rio maravilhoso, restaurantes de peixe fantásticos, praias extraordinárias e um clube que se chama Vitória Futebol Clube. [pausa] Eh pá... Cheguei a Setúbal em 1982, com 12 anos, mas eu antes, com quatro ou cinco anos, já sabia o que era o Benfica. E, portanto, pela paixão, pelo coração, pela identificação que tenho com o clube por já estar aqui há tantos anos, ao ponto de já nem sentir a pressão, tenho de dizer o Benfica, claramente. Agora, posso dizer que é um sonho e um objetivo treinar o Vitória, porque é um clube onde fui atleta e foi o clube que me abriu a porta para o treino. Por um lado há a questão clubística e por outro lado há a questão do agradecimento e o Vitória é um clube com uma história enorme e tem uma coisa com que me identifico bastante: tem uma massa adepta que se ganhas mas não jogas como eles gostam não tens muita sorte em Setúbal. Ou seja, o adepto do Vitória quer que a equipa jogue, não se contenta só em ganhar. Eu percebo: quem teve Jacinto João, quem teve Jaime Graça, Tomé, sei lá, tantos jogadores de qualidade... Quem teve isto habituou-se a ter qualidade. Eu assisti a um Vitória de Setúbal 4 FC Porto 4. 4-4 e não era hóquei em patins, era futebol, e aquelas bancadas... o Malcolm Allison treinou o Vitória num dos anos de futebol mais fantástico do clube, futebol espectacular mesmo. O adepto do Vitória identifica-se com o jogo de qualidade e isso tem muito a ver com a forma como eu vejo o jogo. Portanto, sem me querer estar a oferecer, obviamente [risos], é um casamento que poderá dar certo."
(versão completa)
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