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terça-feira, 26 de junho de 2018

Nós e o Mundial

"Se vivêssemos em tempos decentes, todas as selecções de países da NATO, pelo menos, teriam imediatamente boicotado a sua participação no evento. Não vivemos.

Organizados por uma organização que faz da corrupção a sua actividade principal e fonte de rendimento quase exclusiva, os Campeonatos do Mundo da FIFA tornaram-se nos últimos anos num instrumento de engrandecimento e encenação de normalidade usado por regimes igualmente corruptos para fingirem que não são o que são.
Em 2010, a África do Sul e o seu pouco honesto governo viram no “primeiro Mundial em África” uma oportunidade de promoverem a imagem do país, objectivo em nome do qual raptaram e esconderam milhares de sem-abrigo dos olhos dos turistas.
Em 2014, foi a vez do Brasil do Mensalão, da Lava-Jato, da Petrobras e todos os outros casos que os limites da memória humana não deixam ter na ponta da língua, gastar milhões em estádios que hoje estão a cair aos bocados para tentar mostrar que os seus duvidosos governantes o tinham transformado num país desenvolvido.
Em 2022, será o Qatar a usar o trabalho de milhares de escravos para fazer propaganda enquanto se sujeitam os jogadores (figuras irrelevantes num Campeonato do Mundo de Futebol) a temperaturas pouco convidativas até à mais pachorrenta corrida.
Este ano, como toda a gente sabe, a sorte coube à Rússia e como seria de esperar, aos jogos, resumos dos jogos, comentários aos jogos e “notícias” acerca do que aconteceu antes e depois dos jogos, têm-se juntado as inúmeras reportagens que pretendem mostrar como é a vida na Rússia. Realizar um “Mundial” pode ser um péssimo investimento segundo critérios “normais”, mas para alguém como Vladimir Putin, a cobertura “noticiosa” do que rodeia o torneio faz com que cada cêntimo dos muitos milhões de rublos desperdiçados em estádios de futebol que nunca mais serão usados tenha valido a pena ser gasto.
Num excelente artigo no The Ringer, Andrew Helms nota como “eventos como o Mundial ou os Jogos de Sochi” são “actos calculados que forçam a comunidade internacional a interagir com a Rússia como se esta fosse um actor normal”, esquecendo a sua “beligerância no palco internacional e a sua repressão autoritária interna”, para não falar do programa estatal de doping que o regime patrocina, ou da corrupção que lhe permitiu conquistar o direito a organizar o próprio Mundial (o artigo menciona como Miguel Poiares Maduro terá sido afastado do lugar que tinha na FIFA para não hostilizar o governo russo) bem como encher os bolsos de Putin e seus protegidos.
O comportamento interno e externo do regime russo não só não foi suficiente para que lhe fosse retirada a organização do Mundial, como não desencoraja alguns políticos de países democráticos, que deviam ter mais juízo, de caucionarem com a sua presença tudo o que o regime russo faz e a propaganda com que pretende mascarar a sua verdadeira natureza.
Como bem lembra Helms, ainda recentemente a Rússia foi responsável por uma tentativa de assassinato de um antigo general russo tornado agente do Reino Unido. Tendo tido lugar em solo britânico, e sido realizado com armas químicas (que vitimizaram pelo menos um cidadão inglês), o acto constituiu um ataque ao próprio Reino Unido, e como tal deveria ser tratado.
Se vivêssemos em tempos decentes, todas as selecções de países da NATO (pelo menos) teriam imediatamente boicotado a sua participação no evento. Como não vivemos, Theresa May garantiu que o seu país não enviaria qualquer representante oficial às festividades, mas só a Islândia lhe seguiu o exemplo, enquanto todos os outros continuam a comportar-se como se nada se passasse.
O “nosso” Marcelo, por exemplo, com a falta de vergonha e desejo de aparecer na televisão que o caracterizam, até se deu ao luxo de ir dar uns abraços a Putin, um acto insultuoso para com um aliado como os britânicos e de uma irresponsabilidade só mesmo ao alcance do “Presidente dos afectos”.
A culpa, em parte, também é nossa. Marcelo e os da sua laia fazem questão de se mostrarem a assistir ao Mundial porque este lhes oferece uma oportunidade de também eles (como Putin) fazerem propaganda. O Mundial oferece aos políticos uma oportunidade única de parecerem “próximos” de nós, porque nós assistimos ao Mundial, porque nós prestamos atenção a tudo o que rodeia o Mundial, porque nós, durante um mês, não conseguimos prestar atenção a outra coisa que não ao Mundial.
Eu próprio, embora menos do que em anos anteriores, tenho passado os últimos dias a ver jogos, a ler sobre os jogos, a falar sobre os jogos. Se também nós não fechássemos os olhos ao carácter do regime russo e, em consonância, votássemos o seu Mundial ao merecido esquecimento, os políticos fariam o mesmo, e a máfia que governa aquele desgraçado país não teria o que queria.
Tal como os apoiantes russos de Putin que por causa de umas quantas vitórias militares contra inimigos fracos vêem o “regresso” da “grandeza” da Rússia e esquecem a pobreza que afecta grande parte da sua população, também nós deixamos que baste que nos ofereçam o espectáculo do circo futebolístico para esquecermos tudo o resto. Como escreveu Simon Kuper num outro excelente artigo sobre o assunto, “no futebol, como no resto, o mundo é dos autocratas”."

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