"O caso Bruno de Carvalho mostra-nos a tendência portuguesa para se concentrar no acessório, em detrimento daquilo que é essencial. Hoje somos a “República da bola” - e da “bola rasca”
1. É o assunto que continua a animar os portugueses, pelo menos a comunicação social pátria, que encontrou no futebol o seu filão cimeiro de audiências: as tentativas sucessivas de resistência de Bruno de Carvalho na liderança do Sporting Clube de Portugal. Note-se que este “fenómeno” (não estamos certos de qual o epíteto mais adequado para descrever as ocorrências das últimas largas semanas: se fenómeno, se novela, se drama, se comédia…) ultrapassa largamente o estrito fenómeno desportivo; na verdade, o Sporting apenas consubstancia o culminar de uma tendência, que se tem desenvolvido em Portugal, de total simbiose entre futebol e política.
2. Política, aqui, não significa apenas uma identidade entre protagonistas (dirigentes desportivos que são políticos; políticos que se transformam em dirigentes desportivos) ou de práticas partidárias: política, para estes efeitos, significa todo o universo com incidência na política, incluindo jornalistas, agências de comunicação e formas de comunicação. Mais do que saber de futebol, importa saber falar do futebol. Mais do que ter consciência do que se afirma, importa criar a aparência de que se tem conhecimento daquilo de que se fala. Muitos têm desvalorizado o caso Bruno de Carvalho; no entanto, ele merece ser analisado na medida em que espelha o estado a que o nosso país chegou. Que o mesmo é dizer: o estado a que nós - enquanto povo - chegámos.
3. Antes do mais, registemos o protagonismo claramente desmesurado que foi atribuído a Bruno de Carvalho nos média portugueses. Ser presidente do Sporting Clube de Portugal é um cargo cujo relevo social é indisputável - falamos de uma associação desportivo-empresarial que move milhões e que muito tem contribuído para o desenvolvimento do desporto português. No entanto, o Sporting, por si só, não representa um assunto de Estado: o presente e o futuro do referido clube não consubstanciam uma prioridade nacional, uma matéria com incidência no desenvolvimento económico e social da nossa nação ou uma tragédia digna de conduzir a uma situação de emergência nacional ou de estado de sítio permanente. Estado de sítio - foi assim que parecemos viver em Portugal, devido às mudanças de humor de Bruno de Carvalho. Foi publicado mais um post no Facebook? Sim? Então, as televisões dedicam o dia, com painéis sucessivos, compostos por adeptos, sócios, ex-dirigentes, dirigentes atuais e até dirigentes futuros do Sporting, a discutir sobre qual será o próximo passo do presidente (presidente suspenso? ex-presidente? presidente suspenso ao mesmo tempo que é presidente-candidato? Que confusão…) leonino.
4. O pai de Bruno de Carvalho publicou um novo post? Convoque-se já mais um exército de adeptos, sócios e dirigentes do Sporting para se discutir a autoria (material e moral) do novo post: terá sido mesmo o pai? Ou terá sido o próprio Bruno de Carvalho a surripiar a conta social do seu progenitor? Nesta discussão (ridícula!) gasta-se mais uma semana inteira de tempo de antena televisivo e páginas de jornais. Ao mesmo tempo que se poupa em assuntos que são verdadeiramente relevantes, mais complexos e dispendiosos de cobrir: a maioria dos jornalistas não têm paciência para se dedicarem a matérias de tratamento difícil (até porque o salário não justifica) nem estão dispostos a correr os riscos que o escrutínio da actividade política implica; os “patrões” dos média tradicionais não querem despender dinheiro em trabalhos de grande fôlego, extremamente relevantes (sem dúvida), mas excessivamente desinteressantes para as massas (com toda a certeza). Falar do futebol (que não de futebol, como notou, inteligentemente, o treinador Sérgio Conceição) é um garante de audiências: as massas ouvem com atenção; os patrões ganham dinheiro; os jornalistas trabalham menos (porque é só deixar o Bruno, os sócios, os adeptos e os protossócios botarem faladura horas a fio); a publicidade interessa-se e paga; evitam-se as chatices próprias que os assuntos da vida política, nacional e internacional suscitam. Infelizmente, os capitalistas portugueses - já devidamente seguidos pelos seus pares internacionais, que são logo aculturados - têm receio de investir em projectos que marquem a diferença.
5. Que tenham a ousadia de desafiar o politicamente correto: daí que o jornalismo (não exclusivamente entre nós) se tenha convertido em mero instrumento de propaganda ou estratégia empresarial para potenciar outros setores de negócios. O caso Bruno de Carvalho mostra-nos, pois, a tendência portuguesa para se concentrar no acessório, em detrimento daquilo que é essencial. Hoje somos a “República da bola” - e da “bola rasca”. As polémicas, os telefonemas de Bruno de Carvalho, em direto, para os programas televisivos ofuscaram quase por completo o Mundial da Rússia, aquela que era tida como a última esperança para levar os debates sobre o futebol a não olvidarem o seu objecto: o futebol, o “jogo jogado” nas quatro linhas. Sejamos claros: um país que dedica uma parte significativa dos seus dias a debater os humores do sr. Bruno de Carvalho; que anda neste circo mediático há meses; que vive obcecado com as incidências do clube leonino é um país em decadência civilizacional. Não conhecemos fenómeno idêntico em qualquer outro ponto do globo: nem mesmo na tão badalada América Latina.
6. Por outro lado, quem são os adeptos, sócios e ilustres sportinguistas que pululam nas nossas televisões e jornais para comentar a publicação, a edição e a reedição dos posts de Bruno de Carvalho? Praticamente, sempre os mesmos. Às 21h vão à SIC; às 22h vão à TVI; às 23h vão à CMTV. Sempre para dizer o mesmo; e, no dia seguinte, repetem o ritual. Religiosamente. Quem são os gurus do Sporting? Ricciardi e Miguel Relvas. Quem são os gurus do sistema financeiro-político português? Ricciardi e Miguel Relvas. Pelo meio surgem uns deputados que ninguém conhece pelo seu trabalho político - apenas pelos seus dislates televisivo-futebolísticos. Por exemplo, sabia que há um deputado chamado André Pinotes Baptista? Não? Nós também não - mas é uma estrela do comentário futebolístico que se notabilizou na sequência do caso Bruno de Carvalho. Conhece o deputado Hélder Amaral? É um político muito esforçado, é certo - mas só logrou obter reconhecimento generalizado pelo facto de ser o único comentador que defende cegamente Bruno de Carvalho. Corre até nos corredores a informação (maldosa para a liderança do CDS, lisonjeadora para o visado) de que Hélder Amaral já só trabalha para os likes e os retweets: afinal de contas, o seu número de seguidores já supera os de Assunção Cristas…
7. Enquanto a novela Bruno de Carvalho segue o seu guião, com os tribunais a entrarem, em breve, em palco, António Costa e a sua geringonça respiram de alívio. A dívida pública está a tornar--se ainda mais insustentável? Isso não interessa. A economia portuguesa apresenta sinais (óbvios e expectáveis) de desaceleração? Vamos ignorar: olhem a assembleia-geral do Sporting! Olhem as novas diatribes de Bruno de Carvalho! António Costa também já participou nesta telenovela (com Ferro Rodrigues, o qual protagonizou uma rábula de antologia no parlamento), propondo… a criação de uma comissão contra a violência no desporto! Já o secretário de Estado que tutela o desporto, João Paulo Rebelo, serve apenas (não obstante o inúmero staff que emprega) para decorar o ambiente das idas do primeiro-ministro à bola… E parece que o próprio João Paulo Rebelo foi apoiante de Bruno de Carvalho!
8. Enfim, irresponsabilidade de muita comunicação social, a utilização do futebol como manobra de distracção política e de alienação do povo, conjugada com a promiscuidade entre políticos e dirigentes desportivos - eis o retrato da República Portuguesa em que vivemos. A nossa pátria (parece!) já não é Portugal: sejam bem-vindos ao “Portugalho”, ao país em que só existe Bruno de Carvalho. Ah, temos de acabar, vamos para o Facebook… Bruno de Carvalho já terá publicado mais uma bomba! Joana Ornelas já encontrou o anel? Chame-se o Dias Ferreira para comentar!
P.S. Agora muito a sério: quando poderemos discutir assuntos que interessem aos portugueses, para além da propaganda deste regime caduco?"
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