"A pancadaria no Sporting - Benfica que começou a arder no vendedor de gelados; O quartel onde o foram salvar
1. O pai era sapateiro na Travessa das Antas e, a ele, quando alguém o via a tirar encanto da bola no pé e lhe dizia: «Ainda o vamos ver no FC Porto» - solene e pomposo, afirmava: «Qual FC Porto, qual quê! Do Benfica, senhor!»
2. Acrísio, irmão que também jogava futebol, levou-o para o Académico do Porto.Tão bom se mostrou que, não podendo jogar pelos juniores por ter menos de 16 anos, um director puxou de uma manigância: pô-lo a jogar a final do campeonato, contra o FC Porto, com identidade falsa, como se tivesse 18. E não foi só...
3. Tinha tio fanático portista que não descansou enquanto não o arrastou à Constituição, a teste no FC Porto. Nem precisou de treinar para que logo lhe dessem ficha a assinar. Ao sabê-lo, o director do Académico fez pior do que já fizera ao pô-lo a jogar com nome que não era o seu - assinou por ele ficha que, de pronto, enviou para a AFP. Vendo-se duas nos serviços, abriu-se o imbróglio - e não foi apenas o director do Académico que acabou irradiado, irradiado também foi ele, por via das duas fichas e da falsificação da idade.
4. Passou a jogar apenas «futebol popular» pelo clube do bairro, o Monte Aventino. «Depois o filho do dono da Fábrica Ranito convidou-me para lá de modo a jogar pela sua equipa no Campeonato Corporativo». Ao bater dos 20 anos apuraram-no para a tropa, destacaram-no para o Regimento de Cavalaria 4 de Santarém - e o destino voltou a dar-lhe a volta à vida.
5. Pelo quartel apareceu-lhe, sorrateiro, alguém a perguntar-lhe: «O senhor pode dispor do seu tempo amanhã par vir comigo a Lisboa? É que o Benfica quer vê-lo treinar». Surpreendido, murmurou-lhe: «Não vale a pena, fui irradiado do futebol» - e Abílio Santos exclamou-lhe: «Se ficar aprovado, pode ser que deixe de estar irradiado, acredite». Os treinos saíram-lhe tão a primor que o Benfica correu a levar o pedido de amnistia à DGD. Com o caso resolvido, o FC Porto ainda tentou, em vão, desviá-lo de lá.
6. Pelo Benfica fez o primeiro jogo em Novembro de 1952, contra o Barreirense. Não tardou, passaram a tratá-lo como «Serrafeiro» - e seu primeiro de 7 títulos de campeão, o de 54/55, começou a desenhar-se com vitória por 1-0 em Alvalade. Campeão voltou a ser com Otto Glória em 56/57. A caminho desse título, com o FC Porto a morder-lhe os calcanhares, o Benfica tremeu ao empatar com o Belenenses por 2-2, depois de estar a ganhar por 2-0. Otto zangou-se: «Os jogadores não cumpriram o que lhes disse, deve ter-lhes dado alguma coisa na cabeça» - e, no dia seguinte, cada um tinha no seu cacifo multa de 500 escudos: «por negligência e não terem acatado as ordens do treinador».
7. Não, o chicote passava por isso e pelo Lar dos Jogadores que Otto criara: «Quem não cumprisse horários de repouso também era multado a doer. E não acontecia apenas aos solteiros do Lar. Uma vez, fui apanhado em casa duma vizinha às 23.10, na sua festa de anos, aplicaram-me 1000 escudos de multa - e eu ganhava 750 por mês».
8. Pior lhe sucedeu em Março de 59: o Benfica perdeu em Alvalade por 2-1, essa foi a derrota que abriu caminho ao título que o FC Porto ganhou no ano do «caso Calabote» - e a dado instante do jogo com o Sporting, a bola saiu do campo, o apanha-bolas que era vendedor de gelados, não lhe quis dar, ele correu pela pista para lha arrancar das mãos, Libório escorregou e caiu - incendiou-se a ira, no estádio.
9. Apesar da escaramuça continuou em jogo, a 25 minutos do fim acabou expulso: «Foi a primeira injustiça: quem fez falta sobre o Travassos foi o Alfredo, eu até estava longe. Como venderam bilhetes a mais, a pista estava cheia - e ao sair do relvado fui barbaramente agredido. O Artur Santos quis ajudar-me, levou cacetada de um polícia, ficou logo estendido no chão. Foram os jogadores do Benfica que o colocaram na maca, e levaram-no para o balneário...»
10. Mais contou da sua odisseia nesse Sporting-Benfica de ânimos a arder: «Com o Artur desmaiado, eu é que apanhei mais porque não desmaiei - e ainda me culparam de toda a confusão. Juntaram à ideia a agressão ao homem dos gelados, agressão que não houve, que só lhe tirei a bola e ele é que caiu. E foi assim que, tendo sido mais vitima que culpado, a FPF me suspendeu por um ano - foi uma vergonha»."
António Simões, in A Bola
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