"Houve aquele momento em que ficou só, na companhia dos outros mortos que nos esperam. Ele corria para lá das linhas de um campo de Futebol, continuará a correr para lá dos muros sujos de um cemitério manso.
DIA 6 de Janeiro foi um dia longo, longo. Na véspera, Eusébio voou com o vento. Era Lisboa e chovia, diria Castro Alves. Eusébio e o vento eram irmãos: sopravam ambos. Eusébio soprou sempre em rajadas contra o destino.
Dizem que chover é um verbo defectivo: que só se conjuga na terceira pessoa do singular. Mentira! Eusébio conjugava-o na primeira pessoa. Eusébio chovia. E relampejava, e trovejava e tempestuava sobre os adversários e sobre as balizas. Eusébio estava para lá do verbo. Era a imagem e a imaginação. Imaginem um golo, perfeito, irretocável: Eusébio marcou-o. Não sei em que diz, em que jogo, mas marcou-o. E pouco me importa se há ou não filmes e fotografias que o confirmem. A memória regista-o. A memória colectiva que fica um tudo nada para além do risco branco do impossível.
Dia 6 de Janeiro foi um dia tão longo.
Eusébio coxeava. Era como se fosse a sua bandeira. Quando o via agarrado à muleta, doía-me por dentro. Não por ele, que não se envergonhava das cicatrizes da sua guerra, mas por essa crueldade infinita do tempo que não respeita a perfeição momentânea dos homens.
Eusébio coxeava, e no entanto deu a volta ao Estádio da Luz. E deu a volta a Lisboa. Carregado aos ombros daqueles a quem nunca deixou cair. Sim, recuperem os momentos: sempre que precisámos de Eusébio ele esteve lá. Contra o Coreia, mas muito mais. Contra a derrota, contra o infortúnio, contra a vida vidinha deste país que o mar não quer, como escrevia Ruy Belo. Alegria do povo. Alegria de um povo tão triste.
Eusébio nunca nos falhou. Podíamos mentir: «Uma vez, era miúdo, vi o Eusébio marcar um golo de antes do meio campo, de costas para a baliza, sem deixar a bola cair no chão!» Verdade! Todos vimos! Eusébio existia para que o exagero pudesse existir. O exagero era ele.
O céu também chora o adeus dos seus preferidos.
Havia em cada um dos que se perfilavam pelas ruas da Lisboa cinzenta e aflita, a vontade de suplicar: «Não chovas! Por favor, não chovas!»
E o céu, calado.
O que é que foge de nós enquanto Eusébio foge?
EUSÉBIO percorre a cidade, devagar, pela última vez, e para mim é como se corresse, de novo com aquela passada vertiginosa de quem tem pressa, de quem tem tanta pressa, o braço no ar, comemorando o golo eterno, o sorriso um pouco tímido, um pouco travesso, de quem driblou o fado e o manto negro de um Portugal que continua a lamuriar-se pelas esquinas gastas de bairros sem tempo.
As pessoas aplaudem-no enquanto corre. Querem tocar-lhe. Algumas choram. Há qualquer coisa que desapareceu em cada um de nós, mas não sabemos ao certo o quê. Uma ânsia de conseguirmos ser o que não fomos? O que é que foge de nós enquanto Eusébio foge?
Também a mim, apetece dizer: «Parém de chover! Parém de morrer!»
Eusébio, amigo da Mafalala; Guirish, amigo do Gujarat. Ambos à beira do Índico, saudades de um país antigo que já não há.
A morte vem e leva-os, nos mesmos dias, com ou sem aplausos. A morte leva-os a todos. A morte leva-os a todos.
A morte e Eusébio não batem certo: nunca houve ninguém com tanta vida! Os gestos plásticos, os pontapés imparáveis, os arranques devastadores.
Um campo de Futebol era pequeno demais para Eusébio: 120 por 90 metros??? Deixem-me rir. Ele ia e vinha, chutava e ia buscar a bola ao fundo da baliza e voltava a correr, com ela debaixo do braço, com pressa, sempre cheio de pressa, para chutar outra vez e ser golo outra vez e correr outra vez, sempre a correr, hora e meia a correr, dias a correr, setenta e um anos e trezentos e cinquenta e cinco dias a correr, uma vida inteira a correr. E ainda há quem tenha esse descaramento divino de me vir dizer que ele morreu?
Um campo de Futebol era pequeno demais para Eusébio, como pode ele caber num caixão?
E no entanto, ele está lá. No centro do rectângulo relvado que foi o seu mundo mais íntimo. Alguém murmura: «Adeus...» Mas é um adeus com reticências. Com Eusébio nunca se sabe.
Dia 6 de Janeiro foi o dia mais longo. As lágrimas caíram sobre Eusébio. A noite caiu sobre Eusébio. A terra saiu sobre Eusébio. A chuva continua a cair sobre Eusébio. Pode ter o brilho de uma estrela, mas houve aquele momento em que ficou só, na companhia dos outros mortos que nos esperam. Eusébio corria para lá das linhas de um campo de Futebol, continuará a correr para lá dos muros sujos de um cemitério manso.
Mas, para já, está só. Talvez descanse um pouco. O dia foi longo, como vimos, e ele atravessou Lisboa ao colo do povo. Em redor há silêncio. E as gotas da chuva e o marcador dos ciprestes.
Um céu negro, cor de pele.
Um buraco dentro de nós."
Afonso de Melo, in O Benfica
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