"O grande destaque do fim de semana futebolístico na nossa terrinha não vai para o fantástico cabeceamento de Luiz Phellype, nem para os dois golos de Vinícius, nem para o tiraço de André Santos, nem para o meu querido Vitória de Setúbal que, apesar das agonias directivas, lá se vai aguentando na Primeira Liga. O destaque, com todo o mérito, tem de ir para a conferência no final do Belenenses SAD-FC Porto com jogadores e estado-maior do futebol portista a rodearem um árbitro cuja expressão esfíngica deve ter enervado ainda mais os seus desesperados interlocutores. Até Marchesín, excelente guarda-redes que arribou este ano a terras lusas, se sentiu autorizado a interpelar o juiz embora com um comedimento quase cavalheiresco em comparação com as furiosas perseguições que distinguiram gerações passadas do clube de Pinto da Costa.
A parada estava alta. O presidente do clube tinha criticado as arbitragens no dia anterior e é normal que jogadores e equipa técnica procurassem aí a desculpa para mais um tropeção. No final, os adeptos despediram-se da equipa com assobios. Nada que um bom departamento de comunicação não possa transformar numa crítica aos jogadores por não terem pressionado o árbitro com mais veemência, quem sabe aplicando-lhe uns calduços por não ter anulado um golo limpo ao adversário e por não ter dado vinte minutos de compensação. Porém, não quero com isto desmerecer a bonita coreografia oferecida aos escassíssimos espectadores em campo e aos milhares que tiveram o privilégio de a testemunhar na televisão. Houve ali uma harmonia, uma coordenação no assédio à equipa de arbitragem que não pode ser fruto do acaso. Todos, do treinador ao director desportivo, do guarda-redes ao antigo jornalista, conheciam o seu papel e respeitaram as suas marcações. Tivessem mostrado a mesma competência no jogo jogado e teríamos sido privados desta exibição de classe e virtuosismo do Bolshói das Antas na caça ao cisne negro.
Alguns poderão queixar-se desta tendência do nosso futebol para o teatro e o bailado pós-jogo. Não será o meu caso. Para bom futebol, vejo outros campeonatos, outros jogos. Como a estrondosa demolição do Manchester City pelos rivais do United, em meia-hora de futebol vertical e vertiginoso, com Marcus Rashford a comandar sucessivas vagas de ataque que deixaram com náuseas a defesa de Guardiola. Ou a receção milagrosa de Milinkovic-Savic no segundo golo da Lázio contra a Juventus. Ou o golo motorizado do coreano Son pelo Tottenham. Ou os dois golos de Messi contra o Maiorca, dois estupendos pontapés que só parecem banais porque saíram dos pés do argentino. Ou aquela obra de arte definitiva assinada de calcanhar por Luis Suárez. Se uma banana colada com fita adesiva exposta numa galeria de arte vale 120 mil euros quanto não valerá aquele golpe efémero e eterno do avançado uruguaio?
Disse que não queria destacar os dois golos de Vinicius no Bessa, mas já me arrependi. É que me lembrei do meu avançado sem golo, o infeliz De Tomás, ou RDT, tão elogiado pelo empenho defensivo e cuja falta de precisão na hora de atirar à baliza foi elevada por alguns teóricos a uma espécie de qualidade incompreensível para as cabeças modestas dos adeptos da bifana que não conseguem alcançar as virtudes imateriais de um avançado que não marca o raio de um golo. O aparecimento de Vinícius, com a sua obscena facilidade de remate e uma apetência ofensiva para o golo com golpes de primeira ou a dois toques, veio descomplicar o emaranhado científico-futebolístico em que alguns adeptos, na ânsia de salvarem RDT de uma crucificação precoce, se enredaram. Com Vinícius na frente de ataque, o golo voltou a parecer a coisa bela e simples que é, e não a obscura fórmula alquímica desenhada pelos passos e passes de Raúl De Tomás, cujo resultado era, invariavelmente, uma bola a centímetros do poste ou uma estirada impossível do guarda-redes adversário.
No entanto, a resolução simples de um problema aparentemente tão complicado também traz as suas próprias complicações. De repente, RDT não serve nem para as distritais e Vinicius está destinado ao Olimpo. Não sou isento desses exageros. Em certos momentos, o avançado brasileiro lembra-me o seu compatriota a quem chamavam “o Imperador” e que, durante breves temporadas, antes de sucumbir ao peso da sua cabeça leve, foi a encarnação do avançado do futebol moderno. Possante e tecnicista, Adriano era um panzer tropical, com as velhas virtudes do futebol brasileiro couraçadas por um físico de gladiador. Talvez seja um exagero que só os efeitos inebriantes da comparação com RDT poderão justificar. Ainda assim, não será menos descabido do que o de um jornal desportivo que, após o jogo, definia Vinicius desta maneira: “portentoso como Jonas, letal como Seferovic.” Até dou de barato o adjectivo que o compara a Jonas, mesmo que tenha o seu quê de sacrilégio, mas caracterizar Seferovic, um avançado que precisa de seis balas para acertar num coelho e depois ainda tem de o matar à paulada, como letal é de uma grave miopia ou de uma ironia cruelmente desnecessária. “Letal como Seferovic” é o equivalente futebolístico a “mortal como uma constipação” ou “fatal como uma infecção urinária”."
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