"Generalizou-se a crítica: não se pode gostar mais de um estilo de jogo que de outros, como se havendo muitas maneiras de cozinhar bacalhau tivéssemos de apreciar igualmente todas elas. Não, a ditadura não é a dos que apreciam particularmente o jogo de iniciativa, feito de passe e posse, no conceito de jogo posicional desenvolvido a partir de Cruijff e particularmente com Guardiola. Aliás, nem é isso nem o seu contrário, que seria, por exemplo, um jogo feito de ataque à profundidade com duelos físicos sucessivos ou então a aposta numa organização defensiva forte e em saídas para o contra-ataque. Não, o que é proposto como alternativa a um tipo de jogo, é apreciarmos, à vez, todos os tipos de jogo. Ora, não faz sentido que a antítese de uma coisa seja todas as outras coisas, falemos de futebol, de música, cinema ou a literatura. Apreciar as artes, e o futebol tem tanto disso, com enormes artistas, nunca pode ser o mesmo que descrever as qualidades de um berbequim ou aspirador, em que o que conta é só o efeito, se fura a parede ou limpa o pó. No futebol tem-se falado demais de eficácia e desprezado a beleza, e nunca uma arte se pode esgotar na dimensão utilitária. A essência é estética. Como bem disse Diego Latorre, craque dos relvados e brilhante hoje a comentar e a pensar fora deles - em mais uma das admiráveis entrevistas que a Tribuna do Expresso nos tem dado - “a maior perda do futebol foi afastarmo-nos do gosto pela beleza”. Ver futebol nunca pode ser como aspirar a casa.
Há um factor normalmente associado a esta normalização do jogar, em que bem ou mal não interessa, feio ou bonito é indiferente: a sobrevalorização do resultado. Jogue-se como se jogar, contam as que batem na rede. É visão de curto prazo, muitas vezes ditada pelo trauma do despedimento, mas não deixa de ser uma grande mentira. O resultado é um ponto de chegada, não de partida. O discurso do “primeiro quero ganhar” ou “só me interessa o resultado nesta altura” é oco, vazio, mas – reconheço, na linha de Ángel Cappa, duplo de Valdano durante anos – “fácil de digerir para pessoas que são fáceis de convencer”. O futebol enquanto jogo que me apaixonou aconteceu sempre num relvado e nunca na análise de tabelas classificativas. Ainda Cappa: “no xadrez também se ganha e se perde e, no entanto, não tem essa sedução e a capacidade para chamar gente”.
Estou como o meu amigo Rui Malheiro, que não se joga bem e feio ao mesmo tempo. Certo é que se exige sempre mais a uns treinadores que a outros. Vejo questionar tantas vezes se não há criativos a mais numa equipa ou se não valeria a pena um jogar mais pragmático, evitando, por exemplo, uma construção curta e de risco desde trás. Nunca vi questionar com a mesma ênfase a acumulação de jogadores que só acrescentam esforço ou a facilidade com que tantas equipas, mesmo não pressionadas, abusam dos lançamentos longos tornando horrível o jogo. Que me perdoem os que jogam feio, mas a beleza é fundamental. E também há justiça no futebol, poética até, que a nossa memória regista, por regra, mais lances que resultados, mais emoções que datas. Poucos sabem, sem recurso à net, em que ano foi aquele golo de Zidane ao Leverkusen numa final dos Campeões, e pode ser até difícil lembrar o placard final, mas o golo em si, misto de pirueta de bailado com lançamento de catapulta, está gravado para sempre. Até na estirada inútil de Butt, o guarda-redes. E alguém se lembra, agora mesmo, como ficou aquele Suécia-Inglaterra em que Ibrahimovic fez a mais incrível chilena que o vídeo regista? Tirar o romantismo ao jogo é mexer-lhe na alma. Negar-lhe a beleza é condená-lo.
Sim, o Flamengo bateu recorde de pontos no Brasileiro, ganhou a Libertadores sonhada vai para 40 anos, mas o que guardaremos sempre serão as emoções dos minutos finais de Lima, as correrias de Bruno Henrique e o “tem gol do Gabigol”, e, antes disso tudo, o génio de Jesus que fez mudar a história. E eu guardo Everton Ribeiro, que no meu mundo feliz do belo jogo ninguém de rubro-negro joga melhor do que ele. Vibrei pelo Flamengo porque gosto do seu jogar. Mais que os resultados, interessa-me o mérito com que os conseguiu, e muito mais que ter sido um português é ganhar, é ter sido um português que mereceu ganhar, porque antes de cantar encantou. Este ano é assim: sou Jorge Jesus no Brasil como sou Paulo Fonseca em Itália, Paulo Sousa em França e Luís Castro na Ucrânia e na admirável Champions que tem feito. Torço sempre mais por quem mais me emociona. E prefiro não ter de aspirar, que não há maneira bonita de o fazer.
Nota colectiva: Atlético de Madrid – é uma equipa numa encruzilhada, porque tem um jogar consolidado, mas procura novos rumos que alimentem o talento à disposição. E assim não é hoje uma coisa nem outra, ou então é, à vez, uma coisa e outra, como em Turim. Na primeira parte vimos o “velho Atlético”, o tal em que não se negoceia o esforço, a correr atrás da bola, para acabar a correr também atrás do resultado. Depois, já com Félix, Correa e Lemar, um outro rosto, com Simeone a tentar ser menos Simeone. Foi melhor e mais dominador, também porque foi mais bonito. Perdeu na mesma, mas esteve bem mais perto de um final diferente.
Nota individual: Messi – Lamentavelmente já não teremos a vida toda para ver Messi. O que ele continua a fazer a cada semana, a cada jogo, é impossível de traduzir em palavras. Relaciona-se com a bola como Maradona, com o jogo como Cruijff, com o golo como Cristiano Ronaldo. Talvez nenhuma outra vez os deuses do jogo tenham dotado alguém de tantos talentos em simultâneo. O jogo com o Borussia de Dortmund, ainda agora, foi mais uma dádiva. Quem não viu que não perca a gravação, que um dia vamos ter mesmo muitas saudades."
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