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quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O chicote do dirigente português é do tipo «Amistad»

"É feio apontar e chamar nomes, mas há dirigentes no futebol português com ar de capataz de navio esclavagista. Ar sanguinolento e duas boas razões na alma – o coração, senhores, há muito desapareceu - para usar o chicote nas costas do prisioneiro. Perdão, do treinador: 1. Por tudo; 2. Por nada.
Para estes cavalheiros, o treinador não passa de um mal necessário. Bom, mas bom mesmo, era criar um staff técnico carregado de funções XPTO (estrategas militares, nutricionistas de pele e osso, tocadores de flautas, condutores profissionais de drones ou psicólogos de chaise longue aveludada) e eliminar a aborrecida figura do treinador principal. Uma maçada.
Estabelecer as opções tácticas, desenhar a metodologia de treino e definir o onze inicial? Meus amigos, para isso estaria lá o senhor presidente DDT, dono disto tudo. Um abolicionista de técnicos.
O dirigente português é, essencialmente, um visionário. Gosta de chicotear à moda antiga, mas sempre de olhos no futuro. Não vamos ter um dia automóveis sem condutor? E os robôs não vão tomar conta dos tarefeiros da comunicação social?
Antecipemos, então, o inevitável: criemos equipas profissionais de futebol sem treinador.
Os mais tolerantes poderão apelar à participação popular. O adepto passa a escolher o onze inicial através de voto secreto e em contrapartida deixa de poder assobiar a equipa na bancada.
Tudo isto parece uma piada de mau gosto, mas ao analisar algumas decisões de presidentes da I Liga só me apetece mesmo brincar. Há de tudo. Alguns escolhem um treinador como quem escolhe um brinquedo na Toys R Us. Tem muita graça até se fartarem dele.
Outros, provavelmente mal acompanhados, despedem um treinador defensor de uma ideia de jogo X e contratam outro que é partidário da ideia Y. É como se um protestante devoto passasse subitamente para o lado católico. Sem sentido.
Há semanas em que o futebol português se assemelha ao Amistad, um navio negreiro tristemente célebre e eternizado por Spielberg na Sétima Arte. Chicotear, levar ao limite das forças, punir o elo mais fraco sabendo que não haverá consequências.
Vamos aos números: 11 jornadas da Liga, seis treinadores despedidos. Destes, quatro transitaram da época anterior e dois era uma novidade absoluta. No verão deixaram de ser competentes? Ou terá sido a respectiva direcção incapaz de lhes dar boas soluções?
Não há estratégia a médio/longo prazo, não há escudo protector sobre a figura do treinador. Não há paciência e a tendência é para piorar. O ano passado, por esta altura, apenas o Sporting trocara de homem do leme: Peseiro por Keizer.
Solução para estes sinais de incompetência e inimputabilidade (do dirigente)? Escolher bem, saber o que a equipa de futebol precisa, acreditar mais nas ideias e menos nos nomes.
O futebol português deixou, há muito, de ser território seguro para os treinadores. É um mar de contradições ou, nas sensatas palavras do dr. Pimenta Machado, «o que hoje é verdade (o valor do treinador) amanhã é mentira (o valor do mesmo treinador)».

PS1: o artigo generaliza, sim, mas sei que há clubes e presidentes lúcidos e capazes de perceber que a estabilidade é um bem inestimável. Em todas as divisões.

PS2: há momentos em que a relação deixa de funcionar. Aí, no limite, a separação entre as partes é a solução certa. Não é isso que se passa hoje em dia. Portugal está a aproximar-se do Brasil e a criar a figura do treinador descartável. Não é bom para ninguém.

PS3: por falar em treinadores, vou dar uma de Mourinho e endereçar os meus parabéns públicos a Jorge Jesus. Tanto tem sido escrito sobre o herói do Rio que o melhor é encaminhar os meus caros leitores para esta editoria especial."

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