"Alto, hirto, agudo, conservador empedernido chamava-se António de Oliveira Salazar. Nasceu, filho de pais camponeses, em 28 de Abril de 1889. Licenciou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, com a média de 19 valores, uma classificação de que só desdenham os que não conseguem alcançá-la. Como professor catedrático brilhou e tanto que os militares revoltosos do 28 de Maio de 1926 o escolheram para Ministro das Finanças e, em Julho de 1932, consegue tornar-se chefe do Governo. Em 27 de Abril de 1928, no ato de posse como ministro das Finanças, afirma pausado e persuasivo: “sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses”. Na prática, Salazar sobraçava a pasta das Finanças, mas ficou também com o controlo de todos os atos do Governo que implicassem despesas. Apontou depois o modelo de sociedade que, na sua opinião, devia inspirar o futuro estatuto constitucional do país, rejeitando o regresso à (muito avançada, para ele) Constituição de 1911 e assim, com outros episódios menores à mistura, nasceu uma ditadura dita nacional. No livro Flores do escritor Afonso Cruz, encontrei o seguinte: “Viver não tem nada a ver com isso que as pessoas fazem todos os dias, viver é precisamente o oposto, é aquilo que não fazemos todos os dias”. A frase aplica-se tanto ao homem vulgar, semi-sonolento e adepto interminável de um clube de futebol, como aos políticos, representantes principalmente dos sectores mais conservadores do país, que julgam trágica qualquer mudança, qualquer avanço do processo histórico, mesmo tão-só metafísico ou simbólico. Como Salazar o foi e não o escondeu, com a sua voz melíflua e pegajosa. No meu deambular constante pelos livros, folheei, há pouco, um do António Alçada Baptista, que relata o seguinte, com a graça e a leveza que lhe eram habituais. O livro foi editado pela Presença e tem o nome de A Pesca à linha – algumas memórias. Mas vejamos então o que nos diz o Alçada Baptista:
“Às vezes, gosto de observar papéis velhos. Num destes dias, estive a reler uns papéis que o meu sogro aí deixou. Ele era o engenheiro Nobre Guedes que foi fundador e primeiro Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. Conta aí que, quando foi do lançamento da Mocidade Portuguesa Feminina, fez um pequeno projecto sobre o que seria a iniciativa, para o Salazar ver e dar o seu concordo. Dizia nesse papel, entre outras coisas, que a mulher moderna devia ser “desenvolta”, que devia praticar desporto, inclusive “natação”. O papel foi ao Salazar e ele riscou as duas palavras “desenvolta” e “natação”. A verdade é que, no seu universo, não cabia a possibilidade de uma instituição pública fomentar isto de a mulher se sentir à vontade no mundo e muito menos a possibilidade de vestir um fato de banho” (p. 132). Mas o desrespeito pela mulher, a sua subordinação obsessiva ao machismo do marido é qualquer coisa de cultural, no nosso país, que lamentavelmente ainda persiste. Durante o salazarismo, era muito difícil ultrapassar o machismo oficial. Pensar era, em Portugal, uma estratégia de não pensar, pois que só podia pensar-se, publicamente, o que a censura permitia. Mas voltemos ao Alçada Baptista: “Eça de Queirós nas Prosas Bárbaras, não hesitou em evocar Proudhon: “La femme ne peut être que ménagère ou courtisane” e a mulher em toda a sua obra é uma consequência glosada dessa asserção. Podemos mesmo dizer que, como interpretação global do fenómeno feminino, a mulher atingiu em Eça de Queirós o seu ponto mais baixo” (p. 142). A Imprensa, de 3 do mês corrente, noticiou a medalha de prata de Isabel Figueira, de 39 anos de idade, nos 50 metros bruços dos Nacionais absolutos, empatada com a Raquel Pereira, do Sport Algés e Dafundo, 21 anos mais nova. Deixo, aqui, um abraço fraterno à Isabel Figueira e ao seu treinador e marido – ambos são um exemplo de que, no desporto, não se justifica a castradora omnipresença masculina.
Também, durante o jogo da última “Supertaça Cândido de Oliveira”, foram muitas as mulheres que descortinei, entre a assistência. Por seu turno, o futebol feminino ganha terreno e praticantes e público, no mundo todo. Enfim, a presença da mulher, no desporto, mormente no futebol, é um sinal de progresso, de uma visão da mulher (e até do homem) que nasce e doutra que morre. Como praticante, ela proclama, mesmo sem o dizer verbalmente, que deixou de ser uma sombra, resignada ao silêncio, ao absentismo que a reduziam eternamente a “dona de casa”. Nos meus tempos de rapaz, postava-me à porta das Salésias, para ver entrar os jogadores que fariam o espetáculo que eu idolatrava: um jogo de futebol! Quando chegavam os jogadores do Belenenses, corria para eles que, já a pensarem no jogo, me afastavam, num gesto amigo, plácido e risonho. AS mulheres e com as audácias de nudez das mulheres de hoje, pareciam perfeitamente insensíveis a um jogo de futebol. Aliás, só nos meus raríssimos passeios ao Estoril as descobria a correr e a saltar, a jogar e a nadar, na areia fulva e coruscante da praia. E a maioria destas “desportistas” da praia do Estoril eram estrangeiras que fugiam à guerra que, nesses anos distantes, afogava em sangue o centro da Europa. O nosso ruralismo, o nosso tradicionalismo, um tempo marcado pela liturgia de algumas cerimónias religiosas – não permitiam às pessoas, designadamente às mulheres, manifestações públicas de alegria que, para o reacionarismo ambiente, ofendessem o decoro e a decência. É evidente que mostrar duas pernas de linhas harmoniosas, na praia, ou no teatro, era um escândalo, uma perigosa diabrura, segundo a ideologia salazarista. Estou certo que, quando se fizer um balanço do pontificado do Papa Francisco, poderá concluir-se que, com este Papa, se aprendeu, na Igreja Católica, a ouvir com mais atenção a mulher, a respeitar mais a mulher, a entrelaçar as mãos com ela, numa aliança de valores e princípios, anunciadores de uma nova civilização.
Os jornais noticiaram, há poucos dias, que a australiana Sailly Pearson, de 32 anos de idade, campeã do mundo de 100 metros barreiras e recordista olímpica desta distância (Londres, 2012), anunciou o fim da carreira, praticamente a um mês dos mundiais do Catar. Emocionada, foi assim o seu discurso, nas redes sociais: “Estou aqui para vos informar que decidi abandonar a minha carreira, no atletismo. Foram 16 longos anos e o meu corpo decidiu agora que era a hora de desistir da prática do atletismo e de seguir em frente, noutra direcção”. E concluiu: “Chegou a hora de pendurar as sapatilhas. O meu corpo já não pode satisfazer as exigências de treinos intensivos e constantes e de alta competição”. A fortaleza psíquica e psicológica da mulher, a sua combatividade, a sua disciplina, a sua capacidade de sacrifício são conhecidas, na História de Portugal. De facto, descortinam-se mulheres heróicas, nas mais belas páginas da nossa História. A padeira de Aljubarrota; o saiote vermelho de Maria da Fonte; a Inês Negra, companheira indefectível do Mestre de Avis, nas suas lutas em defesa da integridade do território nacional – algumas seriam as portuguesas que, neste passo, poderíamos relembrar. O Dr. Júlio Dantas, que não é um historiador, acrescente-se, distingue, entre todas, a Inês Negra, que resgatou Melgaço do domínio castelhano. A Inês, “vinte anos robustos, pequena de corpo, roliça de braços, pele trigueira acobreada do sol, olhos negros e pestanudos, que tinha, mesmo entre os homens, fama de atrevida e de valente” (Eterno Feminino, Companhia Editora Nacional, S. Paulo, 1929, p. 186). Todas as praças da fronteira, no norte do país, já haviam sido conquistadas pelos portugueses. Só Melgaço resistia. O Mestre de Avis, com os seus soldados, apertava o cerco, mas a vitória final parecia trabalho duro e… para muito tempo! D. João I então propôs que duas mulheres, uma de cada um dos exércitos, decidiriam a contenda, numa espécie de luta livre, entre as duas. Se o Dr. Júlio Dantas não se engana, a Inês Negra, na claridade fresca daquele dia minhoto, despachou a sua rival com um arraial de pancadaria. E Melgaço entregou-se, sem resistência, aos portugueses. E termino com o conhecido provérbio italiano: “Si non é vero, é bene trovato”. Entretanto, em Amã, KIfaya foi violada pelo irmão. A família, com o machismo (e a estupidez) radical que por lá campeia, decidiu que a única forma de “limpar a honra” era matá-la. Antes do desporto feminino, há problemas doutra ordem a ter em conta. E que são os fundantes! Uma religião não existe, para tapar os buracos dos nossos interesses mais repugnantes!"
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!