"(...), um homem que ele julgava que “era mudo”, Rafa Silva: “Sempre que as câmaras detectam um ligeiro e quase imperceptível movimento dos lábios, parece exprimir-se num sussurro, como uma criança obrigada a pedir desculpa ou alguém a vender droga na Rua dos Fanqueiros
Uma das piores coisas que vieram atreladas aos canais de informação na televisão por cabo foram as maratonas nos dias de jogos grandes, vulgarmente designadas de antevisões, que começam por volta da hora do almoço e se prolongam, com interrupções pontuais, sejam publicitárias ou para provar que o mundo continua a existir, durante horas preenchidas com acompanhamento de autocarros em autoestradas, entrevistas a adeptos em vários pontos do país, normalmente sentados em cafés e a quem é pedido um prognóstico sobre o resultado e um vaticínio sobre os autores dos golos (pode parecer estranho, mas é raro o adepto que aposta num empate a zero), carrosséis de comentaristas e os pontos de situação à porta dos hotéis e nas imediações dos estádios. A emoção é tão habilmente construída, com relógios em contagem decrescente, como que prenunciando uma explosão nuclear, um lançamento espacial ou o Apocalipse, que a antevisão se torna um espectáculo em si, autorreferencial e autofágico, quase dispensando a existência do acontecimento que anuncia: um interminável rufar de tambor que acaba por ser o verdadeiro número. Aliás, é bem provável que ao fim de dez horas de “antevisão” o espectador se sinta defraudado com a visão do próprio acontecimento e a cor de vinte e dois jogadores sobre um relvado, as jogadas e os golos empalideça em comparação com a fanfarra televisiva precedente.
Quando a festa a sério começa eu já só tenho vontade de apanhar as canas. Sobretudo se o grande jogo em questão for um Porto-Benfica. Aos dezanove minutos quando Adrián López marcou aquele golo, o mesmo Adrián López que não marcava um golo no Dragão desde o Mesozoico ou quando João Félix ainda não era nascido, bateram-me com toda a força as saudades das imagens da tarde, dos comentários arrastados, dos prognósticos e vaticínios em esplanadas deste maravilhoso país e desejei que o grande espectáculo da antevisão, com cameramen em posições acrobáticas para captarem o melhor ângulo da retaguarda do Vermelhão, o interminável rufar de tambor, não tivesse mesmo terminado. Porém, com o desenrolar do jogo, aconteceu uma série de fenómenos sem precedentes, dos quais o menos espectacular foi a não desintegração da equipa do Benfica. Já no fim, tive de puxar a fita atrás, como se dizia no tempo em que os animais falavam e ainda não havia Seixal, para confirmar se a minha mente não me tinha enganado. Não, não foi para confirmar a expulsão de um jogador do Benfica, uma espécie de 18ª lei do futebol nesta época (os árbitros, muitas vezes benevolentes para não prejudicarem o espectáculo, têm revelado que a expulsão de um jogador do Benfica é um ingrediente quase indispensável ao espectáculo). Também não foi para rever uma formidável cueca do Pizzi, nem aquele passe elástico de Ferro, nem a combinação telepática entre Pizzi e Rafa, nem o corte de Samaris (que só não adjectivo de providencial porque seria um embaraço para a Divina Providência), nem a defesa de Vlachodimos a um remate de Felipe. Foi para rever aquele momento em que, na flash interview, se ouviu pela primeira vez a voz de Rafa.
Deus me perdoe, mas eu julgava que Rafa era mudo. Certos jogadores são tão expressivos que, mesmo na transmissão televisiva, tudo o que dizem se torna audível, e tudo o que dizem envolve normalmente sugerir aos adversários o trajecto mais curto até às partes íntimas da progenitora. Já Rafa, sempre que as câmaras detectam um ligeiro e quase imperceptível movimento dos lábios, parece exprimir-se num sussurro, como uma criança obrigada a pedir desculpa ou alguém a vender droga na Rua dos Fanqueiros. Em certa medida, Rafa lembra Fernando Chalana, na barba, embora mais aparada, na velocidade, embora menos genial, e na introversão, em que pede meças ao génio do Barreiro. Desde que chegou ao Benfica há três anos, contratado a troco de várias sacas de cimento e outros materiais de construção, Rafa tem sido um caso curioso de inadaptação. Não sendo um daqueles flops bombásticos, assemelha-se à encarnação do som de um balão a esvaziar-se lentamente, primeiro no tecto de um quarto de criança, depois cada vez mais frouxo até ficar esquecido atrás de peluches e casas de bonecas. Aquele semblante carregado, quase a dizer “eu fui amaldiçoado pelos deuses”, é um íman de infortúnio. De vez em quando, lá marcava um golo e os adeptos, subitamente relembrados da sua existência, punham-se com aquela conversa de missa de corpo presente “era muito bom rapaz, pena falhar tantos golos”. Rafa, com as suas barbas tristes e o seu olhar de cachorro abandonado dentro da própria casa, era o memento mori da sua passagem infeliz pelo Benfica quando essa passagem ainda não se concluíra, um artista a falhar golos feitos, o grande desperdiçador, um Mamede da concretização. Ao fim de duas épocas pensei que iria acabar onde acabam tantos jogadores como passagens deprimentes, mesmo que não catastróficas, por um dos três grandes: no Vitória de Guimarães.
Mas eis que Bruno Lage pega na equipa e, com os seus dons de curandeiro científico, transforma Seferovic numa máquina letal, devolve Samaris ao mundo dos vivos e tira dos ombros de Rafa o peso que o prendia ao chão. No sábado, os pés que antes arrastavam chuteiras de cimento pareciam ter asas e os dois remates, embora só um tenha entrado, saíram-lhe das botas com o fogo do golo. Na verdade, foi em campo, e não na flash interview, que vi Rafa falar pela primeira vez, com eloquência e confiança e já não com aquela sombra negra do pecador relapso que, no confessionário, aguarda pela penitência. Por uma questão de justiça, diga-se que não foi apenas Rafa a exibir a confiança que tantas vezes falta ao Benfica quando entra no Dragão. O que acontece é que quando até um jogador como Rafa, a personificação do medo cénico, joga como se estivesse no recreio da escola, a atitude de jogadores como Samaris, Gabriel, Rúben Dias e mesmo João Félix não parece assim tão espantosa. Depois de duas épocas estranhas, Rafa Silva libertou-se finalmente do peso imaginário que o vergava. O semblante continua triste, sim, mas agora joga com alegria e leveza e, em campo, fala que se farta.
Pequenas notas:
Foi apenas a 14ª vitória do Benfica em casa do Porto para o campeonato. Lembro-me de todas a que assisti e dos marcadores dos golos nesses jogos. Para o Benfica, ganhar no Dragão é como subir o Evereste. O mérito de Lage é ter transformado, na cabeça dos jogadores, o Evereste numa mais acessível Serra da Estrela. Mas há mais curiosidades: desde 2005/06 que um jogador português não marcava no Dragão e há mais de quarenta anos que não marcavam dois jogadores portugueses no mesmo jogo. Há 25 anos que o Benfica não ganhava três clássicos na mesma temporada e há 28 que não ganhava em casa dos dois maiores rivais. Marcar em Alvalade e no Dragão na mesma época como João Félix fez agora já não acontecia há dezasseis anos e para encontrar um jogador do Benfica que tenha facturado em três clássicos é preciso recuar aos tempos bíblicos do profeta Isaías. Quem disse que a estatística não aquece o coração?
Quando tanto se fala nos “bebés do Seixal”, é bom lembrar os matusaléns que continuam a fazer história, como se tivessem descoberto a fonte da eterna juventude. Neste fim-de-semana, Roger Federer conquistou o 100º título do ATP e, por falar em asas nos pés, o enorme Nélson Évora conquistou a 11ª medalha em grandes competições.
Escolher Bruno Fernandes como figura da semana todas as semanas seria uma espécie de batota para quem escreve uma crónica, embora o cronista não tenha culpa do que o nº 8 do Sporting tem feito jogo após jogo. Não é só a quem escreve que as palavras começam a faltar para falar do médio. Marcel Keizer não conseguiu dizer muito mais do que isto: “Ele está num bom momento, é bom jogador. É um jogador importante.” Pois, Shakespeare também foi um bom dramaturgo, um dramaturgo importante, vá lá."
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