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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Hiena ou a filha do Barão

"Violette Morris, ‘A Discóbola das Mamas Cortadas’, foi um fenómeno da capacidade atlética em todas as modalidades

Certo dia, Violette resolveu ser homem. Ninguém estranhou. Afinal passara anos a bater-se com homens. Não só durante a I_Grande Guerra, quando conduzia ambulâncias ao som dos canhões das batalhas do Somme e de Verdun, como no desporto ou nos bares: disputava as damas com uma ferocidade de hiena, predispondo-se a lutar por elas a punhos, fosse junto ao balcão onde se abusava do álcool, fosse nos ringues, se lhe respondiam ao desafio. Tinha estado casada durante nove anos com Cyprien Gouraud e vivera seis anos com Raoul Paoli, um boxeur e jogador de râguebi que a deixou quando ela decidiu fazer uma mastectomia. Dizia que tinha o peito demasiado grande para caber decentemente dentro do habitáculo de um automóvel de corrida. Outro dos seus fascínios. 
Violette, última de uma série de seis irmãs, era filha de um barão, Pierre Morris, capitão de cavalaria, e de uma palestiniana chamada Betsy Sakanini. Passou a adolescência num convento de freiras, em Huy, na Valónia, e tornou-se numa das atletas mais impressionantes da história: oito vezes campeã de França em lançamento do peso; quatro vezes campeã de França no lançamento do dardo; três vezes campeã de França no lançamento do disco. Mas não se limitava a lançar: foi avançado-centro do Olympique de Paris, em futebol; internacional francesa de polo aquático; ciclista (bateu o recorde do mundo dos 5 quilómetros, pedalando a 62,285 quilómetros por hora) e motociclista; halterofilista, tenista, lutadora de greco-romana; participou em provas de equitação. Não sei se há palavras capazes de descrever toda a energia que emanava daquele corpo em forma de barril com 1,66 de altura. Nem se, não havendo palavras, haverá palavrões. Sei que Violette tinha a fama de utilizar uma linguagem mais própria de um carroceiro do que de a filha de um barão. Em Violette Morris – Histoire d’une Scandaleuse, Gérard de Cortanze resume-a assim: «C’est um animal. Et une force de la nature, en plus». Nada de muito simpático se pensarmos que estava a descrever uma senhora. Ou talvez não.
A vida social de Violette foi sempre muito comentada. Quando passou a envergar exclusivamente calças ou fatos completos, já tinha deixado para trás a sua vida de heroína sem medalha e uma pleurisia que a obrigou a abandonar o exército. Fumava como uma chaminé, nunca menos de três maços por dia, e passeava orgulhosa as suas conquistas, indiferentemente viris ou melíobres. Mas tudo começou a mudar a partir de 1928. Não se andava por aí a escandalizar a sociedade parisiense por dá cá aquela palha. ‘La Discobole aux Seins Coupés’ tornara-se pouco atractiva aos olhos dos dirigentes da Federação Francesa de Desportos Femininos. Levantaram-lhe um processo com base numa decisão do intendente-geral da Polícia de Paris do ano IX, 16 de brumário, o calendário republicano francês: «Il est interdit aux femmes de porter culotte dans la rue». Embora o tribunal tenha declarado que não fazia parte das suas funções decidir a forma como os cidadãos se vestiam, deixou a federação à vontade para aplicar sanções desportivas. Violette foi impedida de competir fosse em que modalidade fosse. Respondeu com uma altivez não muito de acordo com a sua figura arredondada: «Ce pays de petites gens n’est pas digne de ses aînés, pas digne de survivre. Un jour, sa décadence l’amènera au rang d’esclave, mais moi, si je suis toujours là, je ne ferai pas partie des esclaves». E passou-se para o outro lado.
Em 1936, Violette Morris esteve em Berlim. Não pôde participar dos Jogos Olímpicos, mas foi convidada pessoal de Adolf Hitler. Há quem diga que foi aí que se tornou informadora da Geheime Staatspolizei, mais conhecida por Gestapo, a polícia política nazi. Outros asseveram que a ligação já tinha sido estabelecida anteriormente. Seja como fôr, a terrível filha do barão, ganhou uma aura de violência incomum.
Após a invasão alemã, instalou-se na Rue Lauriston onde funcionavam os serviços da Gestapo Francesa comandada por um canalha de 28 patas chamado Henri_Chamberlin, o detestável_Lafont. A sua força bruta deu muito jeito para fazer cantar alguns resistentes mais teimosos e menos dispostos a dar com a língua nos dentes.
Cortanze contrariou no seu livro esta face torcionária de Violette reclamando que não há uma única prova factual de que La Morris tivesse sido uma colaboradora dos nazis. E que o seu trabalho como dirigente da sucursal da Luftwaffe, no Boulevard Pershing, se deveu à sua incontrolável paixão por automóveis e aviões. Conduzia uma Citroên Traction Avant, que entre nós ganhou o nome de Arrastadeira, quando foi crivada de balas por um grupo de maquis numa estrada campestre. Com ela morreram os cinco passageiros que a acompanhavam. Entretanto, o povo alcunhara-a de Hiena."

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