"O meu café da esquina é curioso. Antes de mais por ser *literalmente* de esquina, o que faz com que tenha uma arquitectura estranha, meio enviesada lá dentro, algo que a esplanada acaba por compensar, com a vista para o largo. Depois, parece estar sempre aberto, como que a abraçar tanto os finais de dia solitários como os domingos preguiçosos de quem teve compridos sábados. E, mais importante, o café continua a custar 60 cêntimos.
Depois também há a televisão invariavelmente a dar futebol, apesar do café ter lugar para pouco mais de uma dezena de pessoas lá dentro, o que me parece constituir o mais pequeno estádio do planeta. Mas, cheira-me, o mais pequeno estádio do planeta já teve grandes discussões planetárias, porque não se tem um papel a dizer “É proibido assistir aos jogos na TV ouvindo em simultâneo o rádio” se não houvesse para tal razão.
Mas adiante. No último sábado, entrei eu no meu café da esquina, onde sou nova cliente porque também nova no bairro sou, mesmo a tempo de pedir uma bica, sentar-me numa das poucas mesas e ver Teemu Pukki receber um cruzamento na esquerda, receber com classe e finalizar também em grande estilo na baliza do Tottenham. O finlandês com nome de desenho animado japonês festejou à grande, porque o golo foi muito bom, o Norwich é último e estar a ganhar 2-0 à equipa de Mourinho é interessante.
Acontece que há VAR, por estes dias a sigla mais discutida em Inglaterra, e o VAR viu que o cotovelo de Pukki estava uns centímetros à frente do último defesa do Tottenham e lá se foi o 2-0, lá se foi aquela jogada fantástica, aquela recepção de classe e aquela finalização de luxo. Por causa de uns milímetros de cotovelo.
Fast forward para domingo. Entro eu no meu café da esquina, onde sou a cada dia cada vez menos nova cliente, peço a bica e sento-me na mesa e já só apanho o início da 2.ª parte do Liverpool - Wolverhampton - porque o domingo é preguiçoso e o sábado foi comprido. Faço um scroll rápido na rede social do passarito e percebo que por pouco falhei o déjà vu, porque ainda na 1.ª parte houve mais bernarda por causa do VAR, desta vez um braço de Virgil van Dijk que passou incólume no lance que deu o golo do Liverpool e mais um fora de jogo tirado a régua e esquadro pelo VAR na jogada que daria o empate ao Wolverhampton.
E assim, meus caros, o país e o campeonato que se orgulhava de nunca falar de árbitros começou a falar deles desenfreadamente por causa da tecnologia que, supostamente, servia para não termos de falar mais dos homens do apito.
Tem sido assim semana após semana na Premier League: gente antes aparentemente imune ao insulto fácil e à crítica de cabeça quente a pedir guilhotina ao VAR, as redes sociais cheias de frames dos lances, cheios de linhas paralelas e perpendiculares, a várias cores, como se de repente o AutoCAD tivesse chegado ao futebol, linhas essas que provam foras de jogo antes absolutamente impossíveis de decifrar ao olho humano, por serem tão milimétricos, por envolverem partes da anatomia que antes achávamos nem contarem para essas contas.
O britânico não gosta disso porque o britânico é um liberal nisto do futebol: gosta da menor intervenção possível do árbitro e por isso é que os jogos na Premier League são tão frenéticos, tão intensos, com tão poucas paragens porque não é cá um empurrãozito que vai fazer o juiz sacar do apito. E o VAR veio baralhar essa realidade, muitas vezes por centímetros. Será justo?
No meu café da esquina comecei a problematizar a questão, a tentar encontrar uma solução, como se algum dia a resolução dos problemas do futebol saíssem de uma mesa de café num bairro lisboeta. E estas foram as minhas conclusões: ainda me parece evidente que o VAR é bom para o futebol e prova disso é a última jornada da fase de grupos da Taça da Liga, em que a sua falta foi mais que muita. O futebol sem VAR, pelo menos cá, é o futebol que privilegia demasiadas vezes o provocador, o piscineiro, o simulador. E pelo meio há erros colaterais, há esses foras de jogo demasiado zelosos, penáltis que continuam a ser uma questão ideológica. Na Premier League, como a cultura já não permite per se os provocadores, os piscineiros e os simuladores, talvez se notem mais os excessos de zelo.
Mas se o cotovelo está 3 centímetros adiantado, deixa de ser fora de jogo? Talvez não. Não sei se o futebol pode abarcar margens de tolerância, como no código da estrada, mas confesso que também me faz espécie que a popa do cabelo de um jogador seja a diferença entre um golo e um fora de jogo. Morto por uma ida ao barbeiro.
Saí do meu café da esquina sem qualquer tipo de solução para a paz no mundo, mas enquanto adepta de futebol tendo a acreditar que quando a Premier League pede discussão, a discussão deve ser feita. Como tudo na vida, as regras são mutáveis, ainda mais quando se estão a dar os primeiros passos.
Serve isto, quiçá, para o novo ano que aí vem. Que 2020 nos dê cabeça fria para discutir o que vale a pena ser discutido e para deixarmos de lado as batalhas que não podemos ganhar. O VAR está aí e não irá embora, mas não há mal nenhum em tentar torná-lo um pouco melhor."
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