"De entre as muitíssimas qualidades de Cristiano Ronaldo – refreio-me aqui de as enumerar a fim de poupar a paciência do leitor – uma das mais apreciáveis é a contundência e o deleite que demonstra ao bater em mortos. Não se apressem os justiceiros de teclado em ler nestas palavras uma crítica protegida pela armadura da ironia. É sincero o meu apreço por tão rara qualidade nos jogadores portugueses que, até há bem pouco tempo, aproveitavam os desafios contra Andorras e Liechtensteins para um justo repouso após mais altas refregas que lhes consumiam energias e exauriam os parcos depósitos de concentração. O próprio Ronaldo era vítima destes lapsos de relaxamento competitivo à volta do qual se desenvolveu a teoria de que a nossa selecção só levava a sério os jogos com os grandes potentados continentais e encarava com sobranceria e enfado os confrontos contra grão-ducados, principados e os restos mortais do grande mamute que era a URSS.
Com o passar dos anos e a aproximação a recordes julgados imbatíveis, Ronaldo acelerou e, nos últimos tempos, tem marcado como nunca. Com o golo de ontem ao Luxemburgo, superou o seu máximo num ano civil com a camisola das quinas. A tibieza dos adversários não o desencoraja porque, no final, o que contam são os números e poucos, entre os quais os seus mais assanhados detratores, cuidarão de lembrar que entre as suas vítimas preferidas estão a Lituânia, Andorra, Arménia, Letónia, Estónia, Ilhas Faroé e o próprio Luxemburgo, que já não é o saco de pancada de outrora, sobretudo quando joga resguardado por um batatal, mas também não é adversário que inspire temor. Lembro-me daquela cena d’O Fugitivo em que Harrison Ford jura a Tommy Lee Jones que está inocente e este, empenhado na sua missão, lhe responde com frieza maníaca: “não me interessa.”
A Ronaldo também não lhe interessam as transformações geo-políticas, a gula da UEFA e da FIFA ou o calendário sobrecarregado de jogos desimportantes. Só o golo lhe interessa e, quando ultrapassar o mítico Ali Daei, pouco lhe importará nunca ter desfeiteado as redes de colossos como a Alemanha, a Inglaterra, a Itália ou a França. Para efeitos estatísticos, tanto conta o golo marcado aos campeões do mundo ou numa final de uma grande competição como o golo marcado a um ajuntamento precário de futebolistas em part-time. O pecúlio do avançado iraniano também foi amealhado contra adversários do calibre das Maldivas, Laos, Líbano, Sri Lanka, Nepal, Síria, Iraque e Guam e o facto é que o recorde dele continua ali à espera de ser batido, sendo certo que, mais ano, menos ano, será Cristiano Ronaldo a batê-lo.
Dizia que bater em mortos com tamanho gosto e proficiência é uma qualidade de Ronaldo e, ao dizê-lo, já revelo menos respeito pelos adversários do que ele. Ao entrar em campo sempre com o intuito de marcar, independentemente da valia objectiva do rival, CR7, ainda que o faça na perseguição da glória pessoal, enaltece o adversário. Nenhum é tão pequeno que não mereça o seu esforço e, como ele disse ontem, o seu sacrifício. A Lituânia sofreu quatro golos do jogador português em Vilnius? Melhor assim do que presentear os famintos (de espectáculo futebolístico) adeptos lituanos com a imagem de Cristiano Ronaldo no banco, de gorro enfiado até às orelhas e joelhos tapados por mantinhas.
O filho mais notável da ilha da Madeira não brinca em serviço e não condescende com os adversários que lhe aparecem à frente porque não é ele que os escolhe. Ao ciclista belga Eddy Merckx chamavam “o canibal” porque corria sempre para acabar em primeiro e não deixava que os outros ganhassem. Foi assim que ganhou 525 corridas ao longo da sua carreira profissional, conquistou cinco tours, quatro giros, uma vuelta, três campeonatos do mundo e um sem-número de clássicas de um dia.
À sua maneira, Ronaldo também é um canibal, um animal competitivo como raras vezes se viu na história do desporto. A sua ambição e voracidade são quase tão lendárias como os feitos que já alcançou. Ele quer sempre mais e é esse apetite insaciável que nos agarra ao televisor mesmo que seja para assistir a mais uma degola dos inocentes ou a uma sessão de futebol nas trincheiras. Porque, tal como ele, também nós estamos à espera que chegue aos 110 golos e pouco nos importa que o caminho para a glória esteja atapetado de adversários moribundos. Há momentos em que bater em mortos é um imperativo categórico."
O "morto" que dá pelo nome de Diogo Jota que o diga...
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